I
Com textos que misturam diálogo, descrição, fluxo de consciência, vozes cruzadas e, às vezes, a combinação disso tudo, Hugo Almeida (1952) chega ao seu quarto livro de contos, Certos casais (São Paulo, Editora Laranja Original, 2021), dentro de uma extensa obra que inclui livros dos gêneros infantil e juvenil, romance, ensaios e uma tese de doutoramento, além da organização de coletâneas de contos e ensaios. Dividido em duas partes, Livro I e Livro II, Certos casais reúne nove contos inéditos, alguns escritos há duas ou três décadas, mas que receberam ajustes para esta publicação.
O
livro está dividido em duas partes distintas, mas os oito contos da primeira
podem ser lidos como uma espécie de romance ou minirromance porque as
personagens fazem parte de três gerações de uma mesma família. Seja como for,
os relatos podem ser lidos separadamente, sem que haja dependência de um texto
para outro.
O
livro abre com o conto “O sono do vulcão”, que põe o personagem Gil a colocar
em dúvida um episódio erótico que teria ocorrido durante um voo noturno,
quando, inadvertidamente, trocara carícias com uma desconhecida. Escrito com
frases curtas, o texto exibe uma técnica talvez inédita em que o autor coloca
frases insinuantes ou ditas em sussurros e que aparecem com letras em corpo
menor e outras em itálico, como a chamar a atenção do leitor.
Como
esse conto de abertura, os demais também recorrem ao discurso indireto-livre,
por meio do qual as personagens expõem suas dúvidas e anseios. É o que se vê no
segundo conto, “Outra vida para dona Olímpia”, de 1991, que, escrito em
primeira pessoa, permite ao leitor acompanhar a breve trajetória de uma viúva
numa igreja da cidade de Diamantina, em Minas Gerais, à época da Semana Santa.
Ela fica de olho no procedimento de um jovem padre que, fora do confessionário,
pousa sua mão-boba no braço de uma adolescente que se confessa ao lado do
altar. E mostra-se igualmente muito solícito, quando aparece outra moça para
fazer a confissão, mas que imediatamente muda de postura, assumindo um
semblante pesado, quando a próxima serva de Deus a ser atendida é uma “senhora
negra, humilde”, da mesma idade da viúva observadora. E o padre faz a mulher se
sentir mais culpada ainda por seus pecados veniais.
Eis
um trecho do conto: “(...) Chega ao meu lado um senhor bem-vestido, banho
recém-tomado, cabelos úmidos, barba recém-feita, óculos grandes. Esse tem
grana. Quer saber se há fila para confissão. Digo-lhe que ali ao meu lado, não,
mas do outro, sim. O próximo é um rapaz negro, pobre, quase mendigo, bem
malvestido, deve ser sua roupa mais limpa e nova. A mulher se ergue. O padre
olha para os bancos (os de lá. Não há mais nenhuma moça. O próximo será o pobre
negro – pobre – ou mulato) e se levanta, estica o corpo, ai que cansaço (...).
II
No
conto “A brisa na varanda”, lê-se a história de um casal que, sem a
possibilidade de ter filhos, adota um bebê, a Tâmara, que viria a mudar a sua
vida insossa. César, o marido, muito se empenharia para ajudar a criar a menina
com todo o conforto. Os problemas viriam quando a Tâ, como a chamavam,
tornar-se-ia uma adolescente rebelde. Eis um trecho que constitui um fluxo de
consciência da mãe adotiva: “(...) César não aceitava, de nenhuma forma, que
Tâ namorasse. Mato quem se atrever, eu mato, repetia. Era sério ou loucura?
Tive ódio, muito ódio, ele que sempre me prendeu, me sufocou, agora queria
tolher a menina. (...) Quase enlouqueci. Tâmara era aplicada nos estudos,
entrou fácil na faculdade, logo conseguiu um bom estágio. Aí, conheceu Gilberto,
agora meu genro. Parecia um rapaz de ouro, o companheiro que ela merecia e
nunca tive. Se César se atrevesse a impedir o casamento, ah, eu o teria matado,
mataria sim, sem dó (...).
Por
aqui se vê a habilidade de Hugo Almeida em trabalhar com a linguagem e ser fiel
aos pensamentos da personagem. Na impossibilidade de se resumir os demais
contos, diga-se que em todos se observa a capacidade rara do autor de alternar
os narradores, caracterizando cada um com suas peculiaridades, hábitos e
manias.
Já a segunda parte do livro, “Amor
radioativo”, é uma narrativa que reconstitui a trágica história de um famoso
casal de cientistas, Pierre Curie (1859-1906) e Marya Sklodowska (1867-1934), uma
polonesa que ficaria mais conhecida como madame Curie, depois de ganhar o
Prêmio Nobel de Química em 1911, cuja vida ficaria também marcada pela perda do
marido, em 1906, atropelado por uma carroça numa rua de Paris. Como observa o
escritor Francisco de Morais Mendes, no texto escrito para a contracapa, a
rigor, este conto trata-se de “uma biografia que o talento de Hugo Almeida
converte em pura literatura”.
III
Mineiro
radicado em São Paulo desde 1984, Hugo Almeida (1952), doutor em Letras na área
de Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Mil
corações solitários (São Paulo, Editora Scipione, 1988), que conquistou o Prêmio
Nestlé de 1988 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1987, com o título de Carta
de navegação.
Filho
de engenheiro e professora, ele baiano, ela mineira, Hugo Almeida nasceu em
Nanuque-MG, mas deixou a cidade natal antes de completar dois meses. Passou a
maior parte da infância em Jequié, cidade banhada pelo rio de Contas, que
aparece em Viagem à lua de canoa (São Paulo, Nankin Editorial, 2009),
livro selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do
Ministério da Educação, em 2011, e um ano em Alagoinhas, na Bahia. Aos 9 anos, mudou-se
com a família para Belo Horizonte, onde se formou em Comunicação Social na área
de Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1976. Viveu
22 anos em Belo Horizonte, onde estreou com Globo da morte, contos (Edição
Alternativa), em 1975.
Publicou
ainda os livros juvenis Porto Seguro, outra história, novela (São Paulo,
Nankin Editorial, 2005) e Que dia será o dia, novela (Nankin Editorial,
2007), e os infantis Mais
rápido do que a luz (São Paulo, Editora FTD, 1993), Todo mundo é
diferente (São Paulo, Lê Editora, 1996) e Pare, olhe, siga: boa viagem
(São Paulo, Editora Ícone, 2000), além da novela Meu nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora
Dimensão, 2009), do livro infantojuvenil Cinquenta metros para esquecer
(São Paulo, Didática Paulista, 1996) e do romance Minha estreia no crime - Estação
111 (São Paulo, Lê Editora, 1997), inspirado do massacre do Carandiru,
ocorrido a 2 de outubro de 1992, em São Paulo.
Autor
de tese de doutoramento na USP sobre a obra A rainha dos cárceres da Grécia,
de Osman Lins (1924-1978), organizou (e prefaciou) Osman Lins: o sopro na
argila, ensaios, 2004), e, com Rosângela Felício dos Santos, Quero falar
de sonhos (2014), artigos deste escritor. Organizou ainda as coletâneas de
contos Nove, novena: variações (São Paulo, Olho d´Água, 2016), que reúne
narrativas inspiradas na obra de Osman Lins, e Feliz aniversário, Clarice:
contos inspirados em Laços de família (Belo Horizonte, Autêntica Editora,
2020), obra da romancista e contista Clarice Lispector (1920-1977). Profissionalmente, sempre trabalhou como
jornalista, com longa carreira na redação do jornal O Estado de S.Paulo.
Adelto Gonçalves - Brasil
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Certos casais, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Laranja Original, 112 páginas, R$ 45,00, 2021. Site: www. laranjaoriginal.com.br E-mail: contato@laranjaoriginal.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os vira-latas da madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o
poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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