Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Moçambique – “O comboio que andava de chinelos”, de Pedro Pereira Lopes ‒ [um oásis para a nossa criançada]

UM POEMA

«… um poema

é a pedra duma escola

com palavra giz

para a gente apagar

ou guardar».

                                                                                                                                                  (Saúl Dias)

“O comboio que andava de chinelos” é título do livro de poesia escrito pelo escritor e poeta Pedro Pereira Lopes; é livro com o qual, Lopes ganhou o concurso literário prémio Maria Odete de Jesus, ano 2016, cujo tema foi a “Paz em Moçambique”. Este concurso tinha como objectivo: «contribuir para o incentivo à leitura, despertar o gosto pela poesia e incentivar e valorizar a produção literária infanto-juvenil». Tem ilustrações de Walter Zand.

[Lopes dedica este livro a duas mulheres – que têm [mantenho este tempo verbal por razões próprias] a afoiteza de escrever para crianças, jovens e adolescentes – Angelina Neves e Fátima Langa, esta última com obras – [de entre várias que escreveu] – como: O rapaz e a raposa, 2012; O coelho e a água, 2012, ambas em bilingue (português e cicopi). Publicou, ainda, a primeira obra em braille. Ao escrever em cicopi, sua língua materna, mostrava a preocupação em ver a sua obra lida, mesmo por aqueles que não falam português. E, em braille, para ter uma literatura inclusiva; leva a sua obra, também, para as crianças com deficiência visual. – terão sido estas e outras razões, creio, que fizeram que Lopes dedicasse este livro a esta escritora, por valiosa contribuição que deu à literatura moçambicana.]

É um livro com 17 poemas e igual número de figuras. Todas a cor. A combinação destas figuras a cor com textos tem um impacto para a criança-leitora. Motiva-a a manusear o livro. Deste acto, nasce-lhe o gosto pelo livro, pela leitura; desde cedo, cultiva-se-lhe esta paixão. Nasce-se-lhe o amor pelo “verbo” – entenda-se como metáfora.

Os poemas que compõem este livro são de versos curtos, porém, profundos, isto é, com uma boa mensagem. Educativa. Posso dar o exemplo do poema CRUZAR A AVENIDA, pág. 33, em que o autor chama a atenção aos meninos ao atravessar a estrada, para evitarem acidentes: «Quem me oferece a mão/ para atravessar a avenida?// Quem me dá atenção/ para vigiar a esquerda?// Quem me abre o coração/ para espiar a direita?// Aqui não fico o dia inteiro/ não há sinal nem sinaleiro!// A avenida não pára parada/ e eu não quero ser atropelada!», e este DENTINHO, pág. 17: «Tenho um novo dente/ é pequeno e afiado// nasceu de noite/ de repente// para fechar a baliza/ que eu tinha à frente.//  É branco como leite/ e muito cometente/ que belo enfeite/ para se ter de repente»., em que se nota um ensinamento; uma transmissão de valor estético dental.

Lopes apresenta os seus versos em diferentes formas gráficas.  É um estilo que ele adopta. Uma criatividade pura. Por exemplo, o poema POEMINHA BRINQUEDO, «Um poema brinquedo/ nem é poema de verdade/ é poeminha poemeto/ coisa de criança sem idade»; cuja ilustração que o acompanha é um pião, xindiri, a arrumação dos versos deste poema é interessantíssima: parece-se com um traçado ou marcas desenhadas pelo pião em movimento, naquele seu gira-gira, ao ser “açoitado”. Belíssima arrumação.

Esta técnica de pôr os versos, dando-os a ideia de movimento, é, quanto a mim, para espevitar, à criança, o interesse pela leitura do livro.  É bem divertida. Os poemas POEMINHA DO ARCOS-ÍRIS, AS PALAVRAS, SONHO, O GATO ROMEU E O VÔ ABREU, [neste, as palavras dão-nos a impressão de estarem a se perseguir [entre aspas], talvez à mesma velocidade levada pelo gato(!) e, o signo onomatopeico: “PLOFT!”, a acompanhar os tracejados [= signos cinéticos] – propositadamente, colocados pelo ilustrador – que indicam o movimento e a queda. Outros signos onomatopeicos patentes no livro: MIAU! MIAU!]. e de admirar esta sincronia entre o poeta e o ilustrador Zand.

Vamos ver alguns poemas, claro, não na forma gráfica em que o autor os apresenta: POEMINHA, «O bolo da rã/ é branco como lã/ tem gosto de avelã/ e no meio uma vela.//  A vela é da irmã/ coaxa aqui e acolá/ e, então vejam lá/ pôs uma fita nela.// Cantaram aos anos da rã/ e falou a irmã tagarela/ sopraram todos a vela/ e comeram o bolo da lã». Pedro Pereira Lopes brinca com a anáfora, usa, ainda, o encadeamento, a metáfora e a comparação, neste poema. Lopes dispõe os versos – isto, já o tinha dito – numa forma que faz transparece um movimento. Aliás, o próprio título do livro, já nos dá essa ideia.

E, em POEMINHA BRINCADEIRA, pág. 27, «Maria brinca na areia/ enche o pote e sorri/ se passam por ela, ri// faz do quintal cozinha/ mistura água e areia/ e faz papas de aveia.// Faz também chá/ serve uma bolacha/ e come de mentirinha.// Brinca e o tempo foge/ suja o vestido bege/ e põe-se logo a chorar.// Tocada pela aflição/ aparece a sua avozinha/ e com água e sabão/ fica a Maria/ lim-pi-nha». Lopes traz-nos um sujeito poético do género feminino que brinca com areia e água… fica aflita por ter sujado o seu vestido. Chora. Várias lições tiram-se deste poema.

Conclusão: este livro de Lopes educa. Tem uma linguagem simples. Poemas lindos, cujas ilustrações estão, sob ponto de vista temático e artístico, bem ajustadas aos textos. É um livro que, mesmo um leitor-adulto poderá lê-o com volúpia. Bom livro para a iniciação à leitura de textos poéticos. Cativa, finalmente! Recomenda-se!

Parte das obras do autor: O homem dos 7 cabelos (2012, prémio Lusofonia 2010), Kanova e o segredo da caveira (2013), Viagem pelo mundo num grão de pólen e outros poemas (2014), A história do João Gala-Gala (2017), em co-autoria com o Chico António (músico), O comboio que andava de chinelos (2019). Organizou várias antologias. Matos Matosse – Moçambique in “O País”

Matos Matosse - Professor, escritor, poeta e ensaísta literário



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