Rui
Knopfli, nascido em Inhambane, a 10 de Agosto de 1932, faria este mês 90 anos.
Um acaso está na origem da minha descoberta juvenil de o “Reino
Submarino”, publicado em 1962.
Esse encontro desencadeou um tumulto, difícil de descrever, em mim. Aquele tom
estava fora do tom. Aquela poesia parecia estranha. Aquelas imagens, aquela
sonoridade, aquelas metáforas. Aquele poder discursivo, barroco, torrencial por
vezes, alegórico. Sempre cativante, sedutor e encantatório. Quase sempre
pungente, língua dilacerada e dilacerante. Voz dos eleitos. Oriundo de uma
educação literária onde avultava a poesia engajada e revolucionária, no lídimo
contexto de afirmação de um novo país, desconhecia este poeta tão impressivo.
Aliás, havia um ensurdecedor silêncio à sua volta.
Não se falava à época, meados dos anos 80, de
Rui Knopfli. Nascera em Inhambane. Filho de um funcionário da
Administração, a sua família vivia, nos anos 30, em Vilanculos. A mãe foi tê-lo
à Inhambane onde estavam asseguradas condições de assistência médica mínimas. O
poeta só aos 20 anos irá conhecer a cidade que lhe dá naturalidade. Viverá na
Moamba, na Namaacha, em Magude. Curiosamente, Magude tem uma importância
capital sob o ponto de vista literário. Foi lá, aos 15 anos, que começou a ler
livros emprestados. Estava-se nos finais dos anos 40.
No final da juventude e já na capital teve
encontros decisivos: Fonseca Amaral e João Mendes – os mentores da sua geração
-, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar ou Ricardo Rangel. Em casa da
Noémia, a pretexto de ouvir o mítico Daíco, empreendem conversas subversivas.
Não estavam isentos da perseguição política. Aquando das eleições de 1949 e da
candidatura desafiante de Norton de Matos (que concitou tantos jovens africanos
em Moçambique e em outros países) colam cartazes, promovem reuniões, conspiram.
Alguns são presos, interrogados e mesmo espancados. Aníbal Aleluia é
violentamente sovado. Rangel e Noémia não são isentos da bordoada pidesca.
Knopfli, por conta da raça, é humilhado verbalmente. Era branco e a PIDE
tinha critérios epidérmicos no seu acto incriminatório. Mais tarde, em 1952,
foi parar aos calaboiços por um dia. Tinham importado livros inobedientes.
Em 1959 publica, aos 27 anos, o seu primeiro
livro. Alguns companheiros de juventude tinham emigrado ou se exilado noutras
latitudes. Rui terá, no entanto, uma passagem por Joanesburgo onde estuda e
escreve alguma poesia em inglês. Aliás, no seu livro de estreia essa influência
anglo-saxónica já é visível: “Velho poema da cidade do ouro”. Mais tarde
ver-se-á ampliada. Sobretudo no seu encontro com T.S. Eliot, que traduz e
glosa. Mas é a evocação da sua cidade, do seu tempo de infância, “da sociologia
de esquinas”, dos jogos “pueris de sexo”, mas também a consciência de um lugar
e de um tempo em tumulto, em transição, em transformação. O título do livro é
uma provocação ou, se quisermos, o assumir dessa consciência de um tempo que
mudaria, inexoravelmente: “O País dos Outros”.
Como disse intentei o seu conhecimento
através de “Reino Submarino” (1962). Os poemas
elegíacos foram aqueles que mais me impressionaram: “A Menina do Retrato”,
“Encontro”, “Monólogo”, sobretudo “A Uma Criança Longe”: “Escrevo-te estas palavras/ sabendo que
as não lerás” ou ainda: “A morte é isso, é acabar/
simplesmente, não acontecer mais.” Este é um dos poemas que mais
remotamente recordo, um poema dolorosamente biográfico.
Rui Knopfli: “Nada me auxiliam as lágrimas/ que me
salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio
gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a
consciência/ da tua cada vez maior ausência. / E teu pequeno corpo moreno, /
que nem todo o meu amor aquece, / é um palmo de ternura/ que apodrece.”
Este livro dedicado à memória da filha é
atravessado por esse tom pungente de versos elegíacos. O poema “Pequena Elegia”
termina com estes versos que nunca me esqueci: “Inteira, a tua morte/ viaja dentro de
mim.” O livro tem outras elegias, como aquela dedicada ao
poeta Reinaldo Ferreira, que morreu em 1959: “O que na vida repartiu seu poema/ por
alados guardanapos de papel, / o criador de sonhos logo perdidos/ na berma dos
caminhos, / o mago que pressentia o segredo/ da beleza perene”.
Este ano, pleno de efemérides literárias, foi também o ano do centenário de
Reinaldo.
Deste livro destaco ainda o poema “Adeus
Xico”, uma dolorida memória da juventude, poema que eu declamei inúmeras vezes.
O poema é uma longa homenagem a um companheiro da juventude morto aos trinta
anos. Ainda hoje quando recordo este texto oiço os acordes da “Patética” que o
poeta cita profusamente neste texto. Seria, porém, “Winds of change” e “Velho
Colono”, dois dos mais reveladores poemas deste impressivo “Reino
Submarino”, que me acompanhariam, mais frequentemente, ao
longo destas quatro décadas de convívio apertado com a poesia de Rui Knopfli.
Rui Knopfli: “Sentado no banco cinzento/ entre as
alamedas sombreadas do parque. / Ali sentado só, àquela hora da tardinha, / ele
e o tempo. O passado certamente, / que o futuro causa arrepios de inquietação.
/ Pois se tem o ar de ser e o passado, / os dois ali sentados no banco de
cimento. // Há pássaros chilreando no arvoredo, / certamente. E, nas sombras
mais densas/ e frescas, namorados que se beijam/ e se acariciam febrilmente. E
crianças/ rolando na relva e rindo tontamente. // Em redor há todo o mundo e a
vida. / Ali, está ele, ele e o passado, / sentados os dois no banco de frio
cimento. / Ele, a sombra e a névoa do olhar. / Ele, a bronquite e o latejar
cansado/ das artérias. Em volta os beijos húmidos, / as frescas gargalhadas,
tintas de outono/ próximo na folhagem e o tempo. // O tempo que cada qual, a
seu modo, / vai aproveitando.”
Citei o poema na íntegra. Aqui está já o
grande poeta que se iria revelar, na plenitude, no livro “Mangas Verdes com Sal”
(1969), depois de “Máquina de Areia” (1964). Apetecia-me citar na
íntegra também o “Winds of change”. Li-o até à exaustão. Há outros poemas
extraordinários neste livro. Como “Fim de tarde no café”. Como tantos outros.
Não há aqui espaço para os acolher. A segunda obra de Rui Knopfli que eu li foi
esse inigualável “Mangas Verdes com Sal”, o livro da sua
completude. Tinha um sulfuroso prefácio do Eugénio Lisboa. Recordo-me de poemas
e versos que me ficariam para sempre na memória. Do poema “Não obstante”: “nunca
escrevi versos que não fossem de amor”. Ou “o meu Paris é Joanesburgo”,
do poema “À Paris”. O poema aforístico “Progresso”: “Estamos nus como os gregos na Acrópole/
e o sol que nos mira também os fitou. / Mas fazemos amor de relógio no pulso”.
Livro sardónico, como sempre, pungente, dolorido, profundo. Ali se amplia o
estro que fala do seu quotidiano, do seu profundo humanismo. Ali está o poeta
erudito e, sobretudo, a mestria do seu labor limae. O seu depurado
labor oficinal.
Durante anos impressionou-me o poema
“Aparição”, li e reli “Hackensack”, que cito no frontispício do “Maputo
Blues” e como o título revela é uma referência a Thelonious
Monk. Citei abundantemente o poema “Velasquez”: “Só de perto te apercebemos: é de baixo/
que os gigantes te miram”, li e reli “A Descoberta da Rosa”,
declamei “Mangas Verdes com Sal”, glosei “Lembranças do futuro”: “só
os poetas têm lembranças do futuro”, comovi-me com “Praça Sete de
Março”, exultei com “Disparates seus no Índico”, pilhei versos como em
“Contrição” ou consignei ao futuro a minha escolha da melhor poesia moçambicana
do século XX o título “Nunca Mais é Sábado”.
A mitologia da Ilha como tema central da
poesia moçambicana devemo-lo a Rui Knopfli e ao seu roteiro belíssimo sobre a “A
Ilha de Próspero” (1972): “Ilha, velha ilha, metal remanchado, /
minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto
do minarete, / Alá – o grande saca! – sorria/ aos tímidos versos bem
comportados/ que eu te fazia”. Este livro é notável, uma alquimia
perfeita entre texto e imagem, com fotografias belíssimas do poeta e fotógrafo.
O livro tem uma origem remota – o poema “Ilha Dourada” -, que vem no seu livro
de estreia O País dos Outros.
Rui Knopfli: “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados
flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. /Tudo mais são ruas
prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na / voz/ uma
vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa
da Amizade.
/ Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e
faço-te estes versos/ de sal e esquecimento”.
Se “Mangas Verdes com Sal” era,
indubitavelmente, o seu alto canto, a plenitude, a maturidade, “O
Escriba Acocorado” (1978), publicado depois de o poeta
abandonar “a capital da memória”, coagido pelos ventos da História, seria
aquele que haveria de me parecer o seu livro mais conseguido. Aliás, tanto este
título, como “Máquina
de Areia”, “A Ilha de Próspero”, ou,
mais tarde, “O
Corpo de Atena (1984) são poemas únicos em vários cantos.
Rui Knopfli: “Servidor incorruptível da verdade e da
memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis/ de ignomínia e
acusação” – começa assim o poema “Proposição”, que termina: “A
História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A
estas palavras não.”. O poema seguinte chama-se “Pátria” e foi
glosado por outros tantos poetas, entre os quais Heliodoro Baptista ou Luís
Carlos Patraquim. “As árvores chamavam-se casuarina, / eucalipto, chanfuta.
Plácidos os rios também/ tinham nomes por que era costume designá-los”.
O poema que mais me impressionou deste livro
– “As Imagens Quebradas” – um diálogo intertextual com Eliot: “Uma
última vez percorro a cidade no dia / em que começa a minha morte. Reconheço/
estes lugares apesar da mudança e a sua / esquiva familiaridade roça-me as
tolhidas/ asas da memória. Aqui escrevi. Naquela // sombra imaginei. Entre uma
e outra coisa, / vivi. (…) // Caminho// pelos lugares queridos, sem tristeza,
nem mágoa, / altas, condoídas árvores, lagos serenos escorrendo/ de meus olhos,
hálito azul da tarde que, por cair, / de sombras vai tranquilizando o
horizonte. Só, / meu coração, bate contra a pedra e o silêncio.”
Publicaria antes, como aludi o livro “O
Corpo de Atena”, em 1984, no qual recupera um belíssimo poema –
“Notas para a regulamentação do discurso próprio”, inicialmente dado a conhecer
nos cadernos Caliban, que promoveu com o poeta João Pedro
Grabato Dias. Há depois um longo interregno, um ínterim poético que dura treze
anos. “O
Monhé das Cobras” (1997), a sua derradeira obra, é publicada
meses antes do seu falecimento, que ocorre no dia de Natal desse ano.
Rui Knopfli dizia-me, numa remota entrevista,
quando lhe perguntei como via a questão da nacionalidade literária, o seguinte:
“A nacionalidade literária é aquela que é proclamada pelos livros que nós
escrevemos, pela conjuntura cultural, pela inteligência social que os
produziram. Os meus livros – mesmo aqueles que eu escrevi desde que saí daqui –
o seu referente é sempre, obrigatoriamente, moçambicano”. Nessa mesma conversa,
nobilitava Craveirinha: “Ele é o maior de todos nós, com a Noémia ao lado e eu.
Honra minha.”
O poeta, que retornaria a Moçambique, numa
comovida visita em 1989, não ficou apenas na “exclusividade da memória
privada”. Encontrou-se, num jubiloso convívio, com uma nova geração, que o
reivindicava. Vivia então em Londres, o seu “exílio doirado”. Haveria só de ir
a Portugal para, no final da vida, se entrevistar com os deuses. No poema “As
Origens”: “Paro
diante do jazigo de família, / Vila Viçosa, Alentejo profundo. Afinal tudo/
principiou aqui. O apelido seria, / puramente como outros, alentejano, / não
fora a incursão oportunista// do estrangeiro, que perturbaria o resto, /
confundido o futuro e as interpretações.”
Seria despiciendo, nesta homenagem,
referir-me, com exaustão, à extensa polêmica sobre a nacionalidade literária e
a dificuldade que sempre houve em enquadrar a obra de Rui Knopfli, sobretudo em
Portugal. Isso caberia numa outra circunstância, não sendo o escopo desta breve
evocação neste dia em que celebramos os seus 90 anos. Regozijo-me, a esta
distância, por verificar que há uma geração, muito mais nova que a minha, que o
reivindica, cultua e mitifica. (Rui Knopfli: “Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. /
Mas dentro de mim há savanas de aridez/ e planuras sem fim/ com longos rios
langues e sinuosos, / uma fita de fumo vertical, / um negro e uma viola
estalando.”)
Quando o descobri, há quarenta anos, estava
de certo modo proscrito. O tempo, esse grande escultor, devolveu-o ao nosso
convívio. O tempo, que é a matéria primordial da sua fecunda poesia, uma das
mais altas expressões líricas deste país. Felizmente, remido: lemo-lo,
cultivamo-lo, amamo-lo. Citamo-lo e glosamos a sua obra. Há teses
universitárias, há livros evocativos, os poemas circulam, na medida do
possível. Esta recidiva acontece apenas dentro da tribo literária? Não
importa. Ele está tão esquecido e deslembrado como estão tantos outros poetas.
Coisas desta pátria, que é nossa, esta pátria que também é sua. Mesmo quando
ele quer, como Fernando Pessoa”: “pátria é só a língua em que me digo”,
Rui Knopfli é também, ou sobretudo, poeta moçambicano. Um grande poeta
moçambicano.
Rui Knopfli: “Porque eu teimo, / recuso e não alinho.
Sou só. / (…) / Não entro na forma, não acerto o passo, / não submeto a dureza
agreste do que escrevo / ao sabor da maioria. / Prefiro as minorias. / De alguns.
De poucos. De um só se necessário/ for. Tenho esperança porém: um dia /
compreendereis o profundo significado da minha / originalidade: I am really the
Underground.” Nelson Saúte – Moçambique in “O País”
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