Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Brasil - Livro conta a história da maconha e elucida preconceitos que a cercam

Durante uma “batida policial”, em 1924, autoridades de Igreja Nova, cidade do interior de Alagoas, foram acompanhadas pelo prefeito, até a casa de um senhor de 70 anos. Encontraram por lá uma pequena plantação de maconha que ele e a mulher mantinham no quintal. Questionados, ambos disseram não fazer a menor ideia de que a prática era ilegal, já que o tal senhor fumava a erva desde menino. Não mentiram. Policiais de diferentes partes do país descobriam, justamente naquela época, o quanto o hábito de cultivar maconha no quintal e servir-se dela para fumar um cigarro, algo outrora recomendado para tratar de asma a problemas de digestão, era mais comum do que se imaginava

Casos como esse são narrados por Jean Marcel Carvalho França, professor de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no livro “A história da maconha no Brasil”, que acaba de ganhar uma nova edição pela Jandaíra. Munido de uma vasta pesquisa entre documentos e jornais de diferentes épocas, ele descortina a saga da cannabis em solo brasileiro desde os tempos da Colônia, quando era amplamente utilizada como matéria-prima para a produção de velas e cordas de navios. “Tentou-se, inclusive, cultivá-la em larga escala na província de Santa Catarina, mas o empreendimento não vingou. Quanto ao uso cotidiano, fumado ou bebido na forma “de chá, até a segunda metade do século XIX, não há restrições ou menções, o que significa que não era um problema social digno de atenção”, conta.

As primeiras restrições apareceram, segundo ele, em portarias de câmaras municipais e, em geral, diziam respeito à venda indiscriminada da erva nos herbanários das cidades. “Na maior parte das vezes, alegavam que o consumo excessivo entre escravizados e libertos comprometia a produtividade do trabalho. Proibições relativas ao uso e um discurso voltado aos impactos sociais e os seus efeitos sobre a mente e o corpo apareceram somente nas décadas iniciais do século XX”, narra.

Embora muito utilizada na indústria naval, o professor salienta que a maconha não teve a importância comercial do tabaco e da cachaça, o que responde por parte da abordagem sucedida. “Gilberto Freyre dizia que o tabaco era o derivativo dos ricos, a ‘caninha’ uma paixão de todos e a maconha o relaxante dos escravos e dos trabalhadores braçais. Talvez essa partilha explique um pouco por que o tabaco e a cachaça ganharam larga aceitação social e a maconha, não”, comenta. Nessa toada, o país foi, segundo ele, parcialmente eficiente em coibir o uso da erva até meados da década de 1960. “As campanhas não puseram fim ao consumo entre as classes populares, mas o hábito se tornou mais reservado. Todavia, o objetivo principal dos médicos, psiquiatras, juristas, pedagogos, enfim, dos que inicialmente combateram o uso recreativo, foi alcançado. O consumo não se alastrou por toda a sociedade, não se tornou, como se dizia na época, um ‘vício elegante’, isto é, não chegou às classes médias e ricas. O ‘maconheiro’ das décadas de 1960, 1970, das classes abastadas, é filho do movimento hippie e da contracultura, não das tradições populares.” Até mesmo os estudos sobre as propriedades medicinais da planta foram praticamente suspensos no início do século XX, já que a criminalização diminui o interesse das indústrias farmacêutica e de cosméticos. “A proibição criou obstáculos aos pesquisadores, que não viam atrativo em dedicar a sua atenção a uma espécie botânica difícil de ser obtida e que não interessava a ninguém”, comenta Jean. As mudanças nesse sentido são recentes e se devem a esforços de organizações como a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), que anunciou a primeira fazenda legalizada para o cultivo da planta do Rio, no começo do ano. Fundadora da entidade, Margarete Santos de Brito afirma que obras como a de Jean são importantes para promover o esclarecimento sobre um tema ainda cercado de tabus. “A maconha foi demonizada e colocada no mesmo patamar que a heroína, como uma droga que vicia e mata”, ela diz. “Hoje, conseguimos mostrar o quanto ajudamos diferentes pessoas com as suas propriedades, como pacientes de cancro e crianças com epilepsia.”

A Anvisa permite, desde 2015, a importação de medicamentos com cannabis, mediante receita e, em 2019, tornou legal a venda de quase duas dúzias de produtos importados à base da planta nas farmácias. O cultivo, contudo, ainda é proibido e vem sendo judicializado em muitos casos, como o de Margarete. Devido à mudança do perfil do usuário e à visibilidade alcançada por grupos de pressão, Jean reconhece que a opinião pública está, de fato, mais permeável à discussão. A estrada, porém, ainda está longe do fim, ele avisa. “Excetuando grupos muito específicos, essa discussão, goste-se ou não, interessa pouco à maioria da população brasileira. Daí o Legislativo não dedicar muita atenção a ela: os seus eleitores não cobram tal atitude.” In “Milénio Stadium” – Canadá com “Globo”


Sem comentários:

Enviar um comentário