Durante uma “batida policial”, em 1924, autoridades de Igreja Nova, cidade do interior de Alagoas, foram acompanhadas pelo prefeito, até a casa de um senhor de 70 anos. Encontraram por lá uma pequena plantação de maconha que ele e a mulher mantinham no quintal. Questionados, ambos disseram não fazer a menor ideia de que a prática era ilegal, já que o tal senhor fumava a erva desde menino. Não mentiram. Policiais de diferentes partes do país descobriam, justamente naquela época, o quanto o hábito de cultivar maconha no quintal e servir-se dela para fumar um cigarro, algo outrora recomendado para tratar de asma a problemas de digestão, era mais comum do que se imaginava
Casos
como esse são narrados por Jean Marcel Carvalho França, professor de História
do Brasil da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no livro “A história da
maconha no Brasil”, que acaba de ganhar uma nova edição pela Jandaíra. Munido
de uma vasta pesquisa entre documentos e jornais de diferentes épocas, ele
descortina a saga da cannabis em solo brasileiro desde os tempos da Colônia,
quando era amplamente utilizada como matéria-prima para a produção de velas e
cordas de navios. “Tentou-se, inclusive, cultivá-la em larga escala na
província de Santa Catarina, mas o empreendimento não vingou. Quanto ao uso cotidiano,
fumado ou bebido na forma “de chá, até a segunda metade do século XIX, não há
restrições ou menções, o que significa que não era um problema social digno de atenção”,
conta.
As
primeiras restrições apareceram, segundo ele, em portarias de câmaras
municipais e, em geral, diziam respeito à venda indiscriminada da erva nos
herbanários das cidades. “Na maior parte das vezes, alegavam que o consumo
excessivo entre escravizados e libertos comprometia a produtividade do
trabalho. Proibições relativas ao uso e um discurso voltado aos impactos
sociais e os seus efeitos sobre a mente e o corpo apareceram somente nas
décadas iniciais do século XX”, narra.
Embora muito utilizada na indústria naval, o
professor salienta que a maconha não teve a importância comercial do tabaco e da
cachaça, o que responde por parte da abordagem sucedida. “Gilberto Freyre dizia
que o tabaco era o derivativo dos ricos, a ‘caninha’ uma paixão de todos e a
maconha o relaxante dos escravos e dos trabalhadores braçais. Talvez essa
partilha explique um pouco por que o tabaco e a cachaça ganharam larga aceitação
social e a maconha, não”, comenta. Nessa toada, o país foi, segundo ele,
parcialmente eficiente em coibir o uso da erva até meados da década de 1960.
“As campanhas não puseram fim ao consumo entre as classes populares, mas o hábito
se tornou mais reservado. Todavia, o objetivo principal dos médicos, psiquiatras,
juristas, pedagogos, enfim, dos que inicialmente combateram o uso recreativo,
foi alcançado. O consumo não se alastrou por toda a sociedade, não se tornou, como
se dizia na época, um ‘vício elegante’, isto é, não chegou às classes médias e
ricas. O ‘maconheiro’ das décadas de 1960, 1970, das classes abastadas, é filho
do movimento hippie e da contracultura, não das tradições populares.” Até mesmo
os estudos sobre as propriedades medicinais da planta foram praticamente
suspensos no início do século XX, já que a criminalização diminui o interesse
das indústrias farmacêutica e de cosméticos. “A proibição criou obstáculos aos
pesquisadores, que não viam atrativo em dedicar a sua atenção a uma espécie
botânica difícil de ser obtida e que não interessava a ninguém”, comenta Jean.
As mudanças nesse sentido são recentes e se devem a esforços de organizações como
a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), que
anunciou a primeira fazenda legalizada para o cultivo da planta do Rio, no
começo do ano. Fundadora da entidade, Margarete Santos de Brito afirma que
obras como a de Jean são importantes para promover o esclarecimento sobre um
tema ainda cercado de tabus. “A maconha foi demonizada e colocada no mesmo
patamar que a heroína, como uma droga que vicia e mata”, ela diz. “Hoje,
conseguimos mostrar o quanto ajudamos diferentes pessoas com as suas propriedades,
como pacientes de cancro e crianças com epilepsia.”
A
Anvisa permite, desde 2015, a importação de medicamentos com cannabis, mediante
receita e, em 2019, tornou legal a venda de quase duas dúzias de produtos importados
à base da planta nas farmácias. O cultivo, contudo, ainda é proibido e vem sendo
judicializado em muitos casos, como o de Margarete. Devido à mudança do perfil
do usuário e à visibilidade alcançada por grupos de pressão, Jean reconhece que
a opinião pública está, de fato, mais permeável à discussão. A estrada, porém,
ainda está longe do fim, ele avisa. “Excetuando grupos muito específicos, essa
discussão, goste-se ou não, interessa pouco à maioria da população brasileira.
Daí o Legislativo não dedicar muita atenção a ela: os seus eleitores não cobram
tal atitude.” In “Milénio Stadium” – Canadá com “Globo”
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