Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

“Usufruto de demônios”, a lapidação da dor

Nos anos 1970/80, o escritor Ricardo Ramos (1929-1992) era considerado nos meios literários o maior conhecedor do conto brasileiro contemporâneo. Como sempre houve, hoje existem vários grandes leitores de contos de autores nacionais. Entre os primeiros está Whisner Fraga (Ituiutaba-MG, 1971; vive em São Paulo), também um grande contista, a exemplo do filho de Graciliano Ramos (1892-1953). Desde que criou o canal Acontece nos Livros, no YouTube, há seis anos, Whisner já comentou cerca de 200 obras de ficção, a maioria contos de escritores brasileiros, principalmente publicados por pequenas editoras. Whisner acaba de lançar o seu 12º livro, Usufruto de demônios (Ofícios Terrestres Edições), volume de minicontos, alguns editados em vídeos no YouTube. Em 2020, ele havia lançado O que devíamos ter feito (Patuá), contos originais, poéticos e por vezes cruéis. Na nova coletânea, prevalecem o tom e o tema da dor, como da pandemia da Covid-19, mas agora ainda mais incisivos, em narrativas lapidadas, concisas. Atravessa os contos um sopro de revolta, por vezes recheada de candura.

“É um livro que insiste, que continua a insistir no dizer do colapso, persiste em manter em evidência aquilo que ainda não passou: seja a devastação biológica, sejam suas consequências econômicas, subjetivas e sociais”, escreve no posfácio o editor Gabriel Morais Medeiros. Mas não se trata de uma literatura panfletária, acrescenta, “e por isso, sempre sedutora”. De fato, são contos de palavras medidas, enxutas, cortantes, como as dez linhas de “a quina do equilíbrio”, talvez o melhor conto do volume. Um texto afiado de dor e doação extrema de pai a filho, fatias de desespero e amor.

Do mesmo nível, “nossa terra” (o sorriso, o “temor” e o “arrebatamento” de uma criança diante dos primeiros mistérios da vida). Há várias outras histórias dolorosas em que narrador, personagens e leitor enfrentam de mãos dadas medo, dor, susto, ansiedade, pânico, tudo desfrutado por demônios. Esse clima prevalece em quase todos os 70 textos do volume, a maioria com menos de uma página, muitos com poucas linhas, esmeradas linhas. Alguns das dezenas de textos maiúsculos do livro (curioso: o autor não use letras maiúsculas), sempre com títulos instigantes: “cuidado com o embrulho na calçada”, “a dor”, “surpresa”, “rodoviária”, “embuste”, “eclosão”, “profilaxia de muros”, “germinação”, “a decomposição do aço”, “todo sinal”, “a menina que ri”, “duelo”, “a guerra nas unhas do abismo”, “onde estará o pai?”, “dois profissionais não se amam”, “ela está no quarto”. Etc. etc.

De certa forma, e ressalvada a diferença entre os gêneros poesia e conto, vale para as narrativas de Usufruto de demônios o que Mário de Andrade (1893-1945) escreveu sobre o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) no artigo “A raposa e o tostão”, de O empalhador de passarinho (Livraria Martins Editora, 2ª edição, 1955): “[...] um escritor culto, um esteta, que sabe o dinamismo de um ritmo, o segredo de adequação de uma forma ao seu conteúdo, o valor da expressão linguística exata, e o perigo de uma palavra em falso, capaz de sacrificar uma mensagem”. Whisner Fraga adota esse cuidado desde o título da coletânea.

O escritor detalha em vídeo no Acontece nos livros o sinuoso e consciente percurso da definição do título Usufruto de demônios. Didático, em linguagem simples, Whisner como que orienta novos autores e candidatos à carreira literária. Ao usar a preposição de, em vez de dos, ele parece ter preferido não destacar o sutil “segredo de adequação” citado por Mário de Andrade. O genérico “de” exclui o sentido digamos religioso de “demônios”, que nos contos não são os capetas do inferno além-túmulo ainda pregados por certas crenças, mas os transformam em símbolo, em metáfora de tudo e todos que infernizam a vida na Terra. Como esse novo volume de contos, de dor cristalizada, lapidada, Whisner Fraga segue em trajetória ascendente. Hugo Almeida - Brasil


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Whisner Fraga é autor, entre outros livros, dos romances As espirais de outubro (Nankin, 2007) e O privilégio dos mortos (Patuá, 2019), dos contos Abismo poente (Ficções, 2009), Lúcifer e outros subprodutos do medo (Penalux, 2017), O que devíamos ter feito (Patuá, 2020). Participa das antologias Os cem menores contos brasileiros do século, (Ateliê Editorial, 2018), organização de Marcelino Freire, e Geração zero zero (Língua Geral, 2011), organizada por Nelson de Oliveira, que mapeou os melhores escritores brasileiros surgidos no início deste século. Whisner tem textos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Engenheiro mecânico com doutorado pela USP, é professor titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.

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Hugo Almeida (1952), mineiro residente em São Paulo desde 1984, é autor de mais de dez livros de ficção, entre eles o romance Mil corações solitários, Prêmio Bienal Nestlé-1988, que teve três edições pela Scipione, o infantojuvenil Viagem à Lua de canoa (PNBE-2011), lançado pela Nankin em 2010, e os contos Certos casais (Laranja Original, 2021). Tem inédito o romance Vale das ameixas. Organizou as coletâneas de contos Nove, novena: variações (Olho d’Água, 2016) e Feliz aniversário, Clarice (Autêntica, 2020), selecionado pelo PNLD de 2021. Jornalista pela UFMG e doutor em Literatura Brasileira pela USP, Almeida organizou Osman Lins: o sopro na argila (Nankin, 2004), que reúne ensaios de dezoito osmanianos, como Modesto Carone e Sandra Nitrini.



 

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