“É um
livro que insiste, que continua a insistir no dizer do colapso, persiste em
manter em evidência aquilo que ainda não passou: seja a devastação biológica,
sejam suas consequências econômicas, subjetivas e sociais”, escreve no posfácio
o editor Gabriel Morais Medeiros. Mas não se trata de uma literatura panfletária,
acrescenta, “e por isso, sempre sedutora”. De fato, são contos de palavras
medidas, enxutas, cortantes, como as dez linhas de “a quina do equilíbrio”,
talvez o melhor conto do volume. Um texto afiado de dor e doação extrema de pai
a filho, fatias de desespero e amor.
Do
mesmo nível, “nossa terra” (o sorriso, o “temor” e o “arrebatamento” de uma
criança diante dos primeiros mistérios da vida). Há várias outras histórias
dolorosas em que narrador, personagens e leitor enfrentam de mãos dadas medo, dor,
susto, ansiedade, pânico, tudo desfrutado por demônios. Esse clima prevalece em
quase todos os 70 textos do volume, a maioria com menos de uma página, muitos
com poucas linhas, esmeradas linhas. Alguns das dezenas de textos maiúsculos do
livro (curioso: o autor não use letras maiúsculas), sempre com títulos
instigantes: “cuidado com o embrulho na calçada”, “a dor”, “surpresa”, “rodoviária”,
“embuste”, “eclosão”, “profilaxia de muros”, “germinação”, “a decomposição do
aço”, “todo sinal”, “a menina que ri”, “duelo”, “a guerra nas unhas do abismo”,
“onde estará o pai?”, “dois profissionais não se amam”, “ela está no quarto”.
Etc. etc.
De
certa forma, e ressalvada a diferença entre os gêneros poesia e conto, vale
para as narrativas de Usufruto de
demônios o que Mário de Andrade (1893-1945) escreveu sobre o poeta Manuel
Bandeira (1886-1968) no artigo “A raposa e o tostão”, de O empalhador de passarinho (Livraria Martins Editora, 2ª edição, 1955):
“[...] um escritor culto, um esteta, que sabe o dinamismo de um ritmo, o
segredo de adequação de uma forma ao seu conteúdo, o valor da expressão
linguística exata, e o perigo de uma palavra em falso, capaz de sacrificar uma
mensagem”. Whisner Fraga adota esse cuidado desde o título da coletânea.
O
escritor detalha em vídeo no Acontece nos livros o sinuoso e consciente percurso
da definição do título Usufruto de
demônios. Didático, em linguagem simples, Whisner como que orienta novos
autores e candidatos à carreira literária. Ao usar a preposição de, em vez de dos, ele parece ter preferido não destacar o sutil “segredo de
adequação” citado por Mário de Andrade. O genérico “de” exclui o sentido
digamos religioso de “demônios”, que nos contos não são os capetas do inferno
além-túmulo ainda pregados por certas crenças, mas os transformam em símbolo,
em metáfora de tudo e todos que infernizam a vida na Terra. Como esse novo
volume de contos, de dor cristalizada, lapidada, Whisner Fraga segue em
trajetória ascendente. Hugo Almeida - Brasil
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Whisner Fraga é autor, entre outros
livros, dos romances As espirais de
outubro (Nankin, 2007) e O privilégio
dos mortos (Patuá, 2019), dos contos Abismo
poente (Ficções, 2009), Lúcifer e
outros subprodutos do medo (Penalux, 2017), O que devíamos ter feito (Patuá, 2020). Participa das antologias Os cem menores contos brasileiros do século,
(Ateliê Editorial, 2018), organização de Marcelino Freire, e Geração zero zero (Língua Geral, 2011),
organizada por Nelson de Oliveira, que mapeou os melhores escritores
brasileiros surgidos no início deste século. Whisner tem textos traduzidos para
o inglês, alemão e árabe. Engenheiro mecânico com doutorado pela USP, é professor
titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
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Hugo Almeida (1952), mineiro
residente em São Paulo desde 1984, é autor de mais de dez livros de ficção,
entre eles o romance Mil corações
solitários, Prêmio Bienal Nestlé-1988, que teve três edições pela Scipione,
o infantojuvenil Viagem à Lua de canoa
(PNBE-2011), lançado pela Nankin em 2010, e os contos Certos casais (Laranja Original, 2021). Tem inédito o romance Vale das ameixas. Organizou as coletâneas
de contos Nove, novena: variações
(Olho d’Água, 2016) e Feliz aniversário,
Clarice (Autêntica, 2020), selecionado pelo PNLD de 2021. Jornalista pela
UFMG e doutor em Literatura Brasileira pela USP, Almeida organizou Osman Lins: o sopro na argila (Nankin,
2004), que reúne ensaios de dezoito osmanianos, como Modesto Carone e Sandra
Nitrini.
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