Seria
muita ingenuidade acreditar serem as notícias falsas (fake-news) uma
exclusividade da extrema-direita. A mentira faz parte do cardápio político, sem
ela muita gente importante nunca teria chegado às prefeituras, governos,
parlamentos e muito menos ao senado e à presidência. E os grupos econômicos e
potências com ou sem religião também precisam delas.
Existem
as grandes mentiras capazes de provocar golpe de Estado, como a de haver fraude
nas urnas eletrônicas, mentira explorada ao máximo pela extrema direita
brasileira nas redes sociais, nos canais youtube, nos discursos e até nas
igrejas pelo grupo Bolsonaro, a ponto de provocar depredações em Brasília numa
tentativa frustrada de Golpe. E existem as mentiras mais brandas destinadas às
pessoas simples mal informadas e desatualizadas, do tipo se o Lula ganhar vão
fechar as igrejas, vão tomar sua casa e terreno para alojamentos coletivos. Há
sempre crédulos, dando mesmo dinheiro pelo pix e redistribuindo a mentira para
ela ir mais longe.
Mas,
atenção, ser bem informado, ter formação secundária, colegial ou universitária
não é imunidade garantida e nem nos impede de acreditar em mentiras cabeludas,
para alegria da Fox News, Al Jazeera e outras Tv que, conscientes ou
inconscientes, redistribuem. Entretanto, antes de tratarmos do que poderíamos
chamar de uma fake-news de esquerda, precisamos reencontrar o cineasta
iraniano Mohammad Rasoulof, que deixámos para nos dedicarmos às inundações no
Rio Grande do Sul.
O
filme de Rasoulof, A Semente da Figa Sagrada tinha sido selecionado para a
competição principal do Festival de Cannes. E, como prêmios por essa seleção,
ambicionada por tantos cineastas brasileiros, o cineasta iraniano foi proibido
de sair do Irão, condenado a cumprir 8 anos de prisão e a receber um certo
número de chibatadas. Castigo doloroso e arcaico, aplicado geralmente nas
costas, e por pena judicial, o uso da chibata ou do chicote subsiste ainda em
numerosos países, na maioria muçulmanos. A Marinha brasileira punia os
marinheiros negros e afrodescendentes com chicote até 1910, quando houve a
chamada Revolta da Chibata.
Diante
da prisão iminente e da humilhação das dolorosas chicotadas, Mohammad Rasoulof
decidiu fugir do Irão com o apoio de conhecedores das rotas pelas montanhas.
Foram 23 dias de caminhadas até atravessar a fronteira e mais alguns dias, com
apoio de amigos, até chegar à França. A imprensa francesa, informada da fuga,
tão logo Rasoulof conseguiu sair do Irão, estava atenta à sua chegada, pois o
Festival de Cannes ia começar.
Para
fazer o filme, Rasoulof se inspirou nas manifestações em Teerão e outras
cidades contra o assassinato pela polícia iraniana da jovem curda Mahasa Amini,
violentmente agredida por não ter colocado corretamente na cabeça o véu ou
hijab. Mais de um milhar de jovens e mulheres foram presos nessas
manifestações, e houve cerca de quinhentas mortes, a mando do presidente
Ebrahim Raissi.
Após
a exibição do filme no último dia do festival, o cineasta iraniano Rasoulof foi
alvo de uma verdadeira consagração pelo público de Cannes, que o aplaudiu de pé
por mais de dez minutos. E recebeu o Prêmio Especial do Júri. O filme é a
história de um juiz, Iman, recentemente nomeado por sua fidelidade ao regime,
responsável pelas condenações à prisão e à morte de opositores ao governo, no
caso enforcamentos. Pai de duas filhas e com uma esposa devota, a família de
Iman vive sob tensão durante a onda de indignação, fortemente reprimida pelo
regime responsável por uma sociedade patriarcal e teocrática. É uma homenagem à
coragem das mulheres iranianas. Embora com eleições, o Irão não é uma
democracia, havia também eleições durante a ditadura militar no Brasil.
Podíamos
parar por aqui, mas houve um acidente e uma coincidência importante. Alguns
dias antes da exibição em Cannes do filme A Semente da Figa Sagrada, caiu o
helicóptero presidencial iraniano nas montanhas. Para Ebrahim Raissi as
montanhas foram o obstáculo que lhe impediu de retornar ao Irão depois de uma
viagem ao Azerbaijão; para Mohammad Rasoulof as montanhas foram a proteção de
que precisava para deixar incógnito o Irão.
E
quem era ou quem foi o falecido presidente iraniano? Uma resposta está no Canal
GGN, "seria um humanista como se diz no Irão?" Resposta - "era
um discípulo de Ali Khamenei, muito cotado, era um homem muito rigoroso no que
se refere às regras morais, como na questão da vestimenta das mulheres. Nas
últimas manifestações que houve no Irão, ele reprimiu com mão de ferro... e não
houve nenhuma reformulação depois disso".
Ora,
dizer apenas que Ebrahim Raissi era "muito rigoroso na questão da
vestimenta das mulheres" e deixar passar, sem comentar, a versão iraniana
do presidente "humanista", vai de encontro a todas as informações da
imprensa internacional, direita e esquerda reunidas, sobre quem era considerado
um "carrasco" com a fama de "açougueiro do Irão".
responsável por cerca de 5 mil mortes na forca. Em síntese, de longe muito pior
que o coronel Carlos Brilhante Ustra, o torturador e assassino do DOI-Codi.
Driblar a verdade é uma forma de fake-news. O entrevistado pelo Canal
GGN deveria ter lido, pelo menos, as informações divulgadas pela Anistia
Internacional.
Ainda
no mesmo Canal, a correspondente de Londres refuta ter havido violações e
estupros de mulheres no ataque do 7 de outubro aos kibutz israelenses,
referindo-se a desmentidos feitos pelo próprio New York Times. Tem havido esse
tipo de negacionismo por certos setores de esquerda, porém o New York Times
colocou fim a essa fake news, numa declaração definitiva bastante
divulgada. É sempre estranho ouvir ou ler mulheres deixando de se solidarizar
com mulheres israelenses ou iranianas, como notamos também no Canal Opera
Mundi. Sem esquecer que as mulheres palestinas vivem submissas e sem direitos
no regime autoritário teocrático islamita do Hamas. Rui Martins – Suíça
______________
Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Sem comentários:
Enviar um comentário