Os rolos carbonizados de Herculano, cidade que, tal como a vizinha Pompeia, ficou soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C., dão informações valiosas sobre a filosofia antiga. Mas só uma fração foi lida. Encontrar e decifrar muitos dos seus textos era uma tarefa quase impossível. Até agora. Novidades sobre a morte de Platão, 2300 anos depois
Não
será normal os media internacionais fazerem manchete com a notícia de
que foi descoberto o lugar onde um determinado indivíduo foi enterrado há 23
séculos e meio. Exceto, claro, se se tratar de um ícone universal. Quando há
semanas soubemos que um velho papiro nos tinha revelado o lugar onde Platão
foi sepultado, mesmo pessoas que não leem uma linha do filósofo grego desde
as aulas do Secundário, ficaram curiosas. É verdade que o nome de Platão
subsiste na linguagem comum em forma de adjetivo para indicar uma relação
sexualmente abstémia entre duas pessoas, ou nalguma das inumeráveis
metáforas a que isso se presta. Mas o que tornava intrigante a história,
além da distância no tempo, era a forma como a descoberta foi realizada: num
velho papiro carbonizado cuja decifração se tornou possível graças à
tecnologia de ponta, que chegou a envolver grandes aceleradores de partículas
em diversos pontos da Europa.
Além
de revelar, ou confirmar, que Platão foi enterrado junto a um santuário
dedicado às musas nos jardins da sua escola, a Academia (outro legado
linguístico dele que sobrevive), o papiro contava um episódio das horas
finais do filósofo: para aliviar o seu sofrimento, alguém requereu os
serviços de uma escrava da Trácia que tocava flauta. Mas Platão não
apreciou a performance, criticando a artista por falta de ritmo. É o
género de pormenor que parece dar credibilidade a uma narrativa, lembrando a
um nível menos solene as palavras finais do mestre de Platão, Sócrates,
descritas em “Fédon” pelo próprio Platão. Já quase totalmente paralisado com
a cicuta que fora condenado a ingerir, Sócrates lembra a um dos seus
discípulos presentes que devem um galo a Esculápio, o deus da medicina. Foi a
sua derradeira lição, na hora de morte: cumpridor até ao fim.
No
caso de Platão, esteticamente exigente até ao fim. Platão é um dos
filósofos europeus mais importantes de sempre, talvez o mais importante.
“Alguém disse que toda a história da filosofia ocidental se resume a notas de
rodapé a Platão e Aristóteles”, lembra ao Expresso o diretor de filosofia da
Faculdade de Letras de Lisboa, António Pedro de Mesquita. Com a descoberta
agora anunciada, Platão torna a aparecer, e logo a partir de textos de outro
filósofo grego anterior a Cristo, Filodemo de Gadara (110-35 a.C.), autor do
“Índice dos Filósofos”, a mais antiga história da filosofia grega de que há
conhecimento. Filodemo não foi contemporâneo de Platão, que morreu em 348
a.C., mas certamente recebeu as suas narrativas de uma tradição contínua,
talvez de livros hoje desaparecidos, e à partida não há razões para julgar
que a cena da morte de Platão tenha sido inventada, embora a esse respeito as
opiniões divirjam um pouco.
O
papiro foi encontrado em Herculano, uma cidade vizinha de Pompeia que também
acabou soterrada quando o Vesúvio eclodiu em 79 d.C. Bastante mais pequena do
que Pompeia, Herculano era o lugar onde muitos membros da elite romana tinham
as suas residências. Ao contrário de Pompeia, não ficou debaixo de uma chuva
de cinza e pumita e sim de correntes bastante mais densas de gás e matéria
vulcânica que atingiram temperaturas de 1000 graus e permitiram a
preservação de materiais orgânicos como comida, madeira — ou papiro. Esse
pormenor fez toda a diferença para os historiadores de filosofia. Quase 17
séculos passaram até Herculano ser redescoberto, em 1709, antes mesmo de
Pompeia. Em 1750, camponeses que abriam um poço depararam com um chão de mármore.
Era uma grande villa, a maior da cidade, como depois se constatou. Tinha
pertencido a um particular, sem dúvida alguém muito rico (mais tarde serviria
de modelo para a villa Getty em Los Angeles, onde hoje se encontra o
museu com o mesmo nome). Rodeada por jardins e pomares, ocupava uma área
costeira de 250 metros e tinha quatro andares abaixo do piso principal.
Outra
indicação do elevado estatuto social do seu proprietário é que numa das
alas constava uma biblioteca particular com centenas de rolos de papiro que
tinham ficado carbonizados em 79. Esses rolos, à primeira vista
indistinguíveis de simples bocados de carvão, chamaram a atenção dos
estudiosos não muito depois de a villa ter sido descoberta. Percebeu-se que
eram, ou haviam sido, livros, mas a leitura de muitos deles era extremamente
difícil, se não impossível; desde logo, pelo facto de qualquer tentativa de
os desenrolar produzir considerável destruição, como aconteceu aos primeiros
com que isso foi tentado. A biblioteca continha sobretudo obras de filosofia,
44 delas escritas por Filodemo, que provavelmente fora amigo do dono da propriedade
e o criador original da biblioteca. Em 1756, o padre Antonio Piaggio, curador
de manuscritos antigos no Vaticano, inventou uma máquina para tornar menos
lesiva a operação de abrir os papiros. Ainda assim era inevitável continuar
a haver danos, até porque a máquina começava o seu trabalho puxando as
extremidades dos papiros, o que desfazia logo essas partes. "O material é
muito frágil devido ao choque termal do Vesúvio", explica ao Expresso
Paolo Romano, investigador do Instituto di Scienze del Patrimonio Culturale,
sediado em Nápoles. "Durante esse processo, muitas partes dos papiros
ficaram danificadas ou permaneceram coladas às outras folhas."
Em
boa parte dos papiros desenrolar não era uma opção. Estavam demasiado
"grudados". E assim, enviados para a Biblioteca Nacional de Nápoles,
boa parte deles guardaram o seu mistério até hoje. Os estudiosos continuaram
a trabalhar naqueles em que isso era viável — essencialmente, os fragmentos
que fora possível abrir. A partir de finais do século XIX, a história da
filosofia de Filodemo foi conhecendo várias edições que, embora parciais
(mesmo hoje, apenas uns 5-10 por cento dela terá sido decifrada), forneceram
informações preciosas sobre escolas de filosofia e filósofos individuais.
Entretanto, as escavações em Herculano tinham parado, após protestos de
residentes locais. Retomadas nos anos 80 do século XX, encontram-se longe de
terminadas, e julga-se que em andares inferiores da villa possam existir mais
papiros, talvez com obras de outros autores gregos e até de autores latinos. A
imaginação saliva com a perspetiva de encontrar não apenas obras de
filosofia mas dramas, poemas, tratados médicos de autores clássicos, alguns
eventualmente desconhecidos até hoje.
A força da tecnologia
Nas
últimas décadas, essa possibilidade cresceu e fortaleceu-se. O que mudou tudo
foi a utilização de técnicas de visualização importadas da medicina.
Exploradas originalmente por um professor de ciência de computadores na
Universidade do Kentucky, Brent Seales, têm dado resultados por vezes
espetaculares na decifração de texto oculto — seja em fragmentos já
desenrolados, como aquele em que agora se encontraram as referências à morte
de Platão, seja nos que é impossível tentar desenrolar sem os destruir.
Seales, cujo foco é a exploração do legado cultural da Antiguidade, começou
há 20 anos a examinar os papiros de Herculano, mas não foi fácil.
Em
declarações ao Expresso, conta que começou por trabalhar em livros durante a
era da “livraria digital”, com foco no restauro digital. “Mas depressa me
interessei por alguns dos materiais mais danificados — livros e papiros que
não podiam ser desenrolados. Inventámos o ‘desenrolamento virtual’ (virtual
unwrapping) como uma forma de recuperar a escrita dentro deles sem os abrir
fisicamente”, explica. “O nosso primeiro grande sucesso foi com o fragmento da
lombada de um livro, que revelou ser uma pequena parte do Eclesiastes escrito
em hebraico.”
O
trabalho com os papiros de Herculano foi uma continuação disso. Além das
dificuldades técnicas, havia a resistência dos papirologistas a darem-lhe
acesso aos papiros antigos. A papirologia é um meio relativamente pequeno, e o
fenómeno da territorialidade, que se encontra com frequência na Academia,
não parece estar menos presente aí do que noutras áreas de estudo. “Muito
poucas bibliotecas têm material de Herculano, e esses papiros são muito
frágeis”, diz Seales. “O acesso para qualquer outro objetivo que não
observação exige autorizações especiais que me levou muito tempo a
conseguir.”
Seales
queixou-se publicamente dos obstáculos — no programa de televisão “60
Minutos”, entre outros lugares — e só o anúncio, feito em 2016, de que a sua
equipa tinha conseguido decifrar um pergaminho hebraico do séc. III ou IV d.C.
encontrado queimado e enrolado em Ein-Gedi, junto ao Mar Morto, ajudou a
desbloquear as resistências. O fragmento continha passagens do Levítico, o
terceiro livro da Bíblia hebraica (e do Antigo Testamento). Nessa altura mesmo
papirologistas renitentes começaram a perceber o valor do trabalho de Seales,
que aliás não dispensa o deles. Antes pelo contrário: uma vez produzidas as
imagens, continuam a ser precisos filólogos e outros especialistas para as
interpretar.
“O
processo usa um método da imagiologia que consegue ver através de um objeto
sem o abrir. Temos usado tomografia de raio-X computorizada, adaptada de
tecnologia também usada em contextos médicos”, explica Seales. “Após a
imagiologia, o desenrolamento virtual é o conjunto de passos implementados
como algoritmos de computador para converter os resultados visuais numa
representação plana, legível, daquilo que se encontra dentro. Se a
digitalização for de um livro fechado, obtêm-se imagens de cada página. Se
for de algo tipo rolo em que não se pode mexer, também se criam imagens
planas da superfície enrolada, de modo a poder ler tudo o que a
digitalização apanhar nessa superfície. É como fazer um mapa do interior de
um livro ou um rolo, desenrolando-o digitalmente para que um leitor possa
examinar o que lá esteja escrito.”
A
recuperação de textos da Antiguidade não passa apenas por tentar detetar
tinta em imagens. Um caminho inverso — bottom-up approach, chama-lhe
Seales — recorre à linguística computacional para assumir conhecimento de uma
linguagem e procurar provas. “Os grandes modelos de linguagem, em particular,
estão a ficar muito bons a preencher lacunas na escrita baseando-se no
conhecimento de como uma linguagem funciona, treinados a partir de um grande
acervo de material escrito”, diz. Embora o grupo de Seales ainda não recorra
à linguística computacional, ele admite que será o próximo passo a dar no
esforço para restaurar o material danificado de Herculano.
Neste
momento, a imagiologia recorre a meios cada vez mais sofisticados para separar
(“segmentar”) as várias folhas contidas num papiro enrolado e examinar o que
se encontra em cada uma. Alguns dos instrumentos privilegiados nesse esforço
são os aceleradores de partículas, essas grandes estruturas que normalmente
associamos a estudos de física extremamente complexa ou então a cenários
catastróficos de ficção científica. Na verdade, eles têm utilizações
variadas em muitas áreas. “O acelerador permite-nos capturar digitalizações
muito precisas do interior do objeto acabado”, diz Seales. “A previsão e a
rapidez são importantes para bons resultados. Muitos aceleradores têm um
processo para requerer e comprar tempo para usar os seus instrumentos, e é
assim que nós e outros investigadores conseguimos acesso. Esperamos que os
custos se reduzam através da automação e da aplicação de técnicas em
conjunto.”
O
trabalho pioneiro de Seales e da sua equipa teve seguidores. Entre eles, o
grupo que agora anunciou ao mundo as descobertas sobre Platão: o GreekSchools
Project, uma iniciativa financiada pela União Europeia cujo objetivo é
digitalizar e tornar acessíveis textos gregos antigos, bem como fornecer
recursos educacionais aos académicos e outros interessados. Foi uma ideia de
Graziano Ranocchio, professor da Universidade de Pisa e especialista em
papiros. “Teve por base a intuição de que só esforço multidisciplinar e
colaboração entre físicos e químicos, por um lado, e papirologistas,
paleógrafos e filólogos, pelo outro, poderia produzir resultados significativos
na investigação aos papiros de Herculano”, diz Ranocchio ao Expresso.
Contando
que há 30 anos estuda diariamente os papiros de Herculano na biblioteca de
Nápoles, e que esse foi um trabalho solitário durante muito tempo, Ranocchio
acrescenta: “Somos o segundo grupo em todo o mundo que aplica técnicas
físicas, químicas e óticas avançadas aos papiros para os decifrar e ler
texto que está oculto neles.” Como nesta área os progressos conseguidos em
isolamento são raros ou nenhuns, menciona o lançamento de uma plataforma em open
source para edição colaborativa. “Isto é um produto completamente novo
que permitirá aos papirologistas do mundo inteiro fazer edições críticas
dos papiros de Herculano diretamente com um processador de texto e em
colaboração”, sem terem de dominar ferramentas de software nem sempre
fáceis. O projeto aplica aos papiros técnicas que usam onda curta,
infravermelhos, raio-X, tomografia, imagiologia hiperespectral, envelhecimento,
macrocoloraçōes, coerência ótica, microscopia digital de alta resolução,
etc.
“Em
2016 fomos os primeiros a aplicar algoritmos matemáticos para o desenrolamento
digital de partes dos rolos analisados por nós através de luz de sincrotrão
na European Synchroton Radiation Facility em Grenoble usando tomografia
de contraste de fase por raio-X para separar folhas digitalmente e ler algum
texto dentro delas”, diz Ranocchio. “Foi um avanço não apenas no que respeita
aos resultados, mas também do ponto de vista metodológico.”
Reconhecendo
o papel pioneiro de Seales no desenrolamento virtual dos papiros e a qualidade
dos resultados por ele obtidos num outro sincrotrão, em Oxford, o investigador
italiano nota que o investigador americano não conseguiu descobrir texto
dentro do produto tomográfico. “Mas teve a brilhante ideia de tornar
universalmente acessíveis os seus resultados e os seus dados experimentais.
Jovens especialistas em inteligência artificial e redes neurais encontraram o
que ele não tinha conseguido encontrar.”
Isto
é uma referência a uma iniciativa inovadora lançada em março de 2023 por
Seales com a ajuda de financiadores privados. O Vesuvius Challenge (Desafio
Vesúvio) ofereceu prémios até um milhão de dólares para quem conseguir
decifrar passagens no interior de papiros de Herculano enrolados usando machine
learning e visão computacional. Convém lembrar que machine learning
é algo que hoje em dia muitos estudantes de liceu pelo mundo fora já exploram
por si mesmos. O primeiro prémio foi atribuído a um estudante universitário
(e estagiário da SpaceX) norte-americano de 21 anos, que se tornou a primeira
pessoa a conseguir identificar uma palavra inteira num fragmento de um papiro.
A palavra era “púrpura”, um termo associado a riqueza e realeza.
Semanas
depois, um estudante de doutoramento egípcio em Berlim decifrou algumas
colunas de texto com excecional clareza. E um estudante de robótica em Zurique
também recebeu prémios pelo seu trabalho no mapeamento de partes dos papiros
em 3D. Os três premiados acabaram por formar uma equipa que se candidatou ao
grande prémio, no valor de 700 mil dólares, destinado a quem conseguisse
decifrar “quatro passagens de 140 carateres cada, com pelo menos 85% dos
carateres recuperáveis”. Os promotores do desafio admitem que estimavam em
menos de 20% as probabilidades de sucesso no prazo definido — 1º de janeiro de
2024. No final, não só a equipa vencedora conseguiu cumprir o estipulado
mesmo em cima do prazo, como lhe acrescentou 11 colunas extra de texto, num
total de mais de 2 mil carateres.
Os
resultados do Vesuvius Challenge até agora provam que, não obstante o papel
fundamental de novas tecnologias, a evolução da ciência continua a não
dispensar o esforço de uma enorme quantidade de pessoas pelo mundo fora.
Na hora da sua morte
No
que respeita à fiabilidade das revelações sobre a morte de Platão, um grau
de ceticismo não parece irrazoável. “Temos de compreender que o modo como se
escrevia História na Antiguidade não tem nada a ver com a nossa”, diz ao
Expresso Pierre Vesperini, do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.
“Os autores antigos com frequência inventam coisas, recebem tradições orais,
e o mais importante para eles é transmitir essas tradições, contar
histórias, mas não necessariamente ter certeza da verdade objetiva do que
estão a contar. Por isso, temos de ser muito cuidadosos quando usamos fontes
antigas. Em especial, mas não só, quando se trata de uma escola, digamos, um
inimigo ou um rival de outra escola.”
Lembrando
que a escola designada como Jardim de Epicuro era rival da escola de Platão,
Vesperini acha que não se deve pensar em Filodemo como uma fonte absolutamente
objetiva, para mais não sendo um historiador como Tucídides e sim um
filósofo. “Devemos encarar os seus textos como testemunhos ou exemplos do que
se dizia sobre Platão, não como documentos objetivos.” Em relação às
últimas horas do filósofo, “podem ter sido um pouco inventadas”, arrisca. Na
sua opinião, é ilustrativa a diferença em relação à famosa cena da morte
de Sócrates. “Porque Platão escreve para uma audiência que conhecia
Sócrates e sabia como ele tinha morrido. É quase impossível pensar que ele
tivesse inventado os detalhes da morte de Sócrates, que aconteceu em frente a
um grupo de contemporâneos. Se Platão tivesse mentido, haveria certamente
textos antigos a dizer isso.”
Em
relação ao relato de Filodemo, António Pedro de Mesquita entende que “o
facto de se tratar de um testemunho duzentos e tal anos posterior à morte de
Platão não é suficiente para considerar que não seja relevante e fidedigno.
Todos esses autores se baseavam em fontes anteriores, e tudo depende da
fiabilidade dessas fontes e também do critério historiográfico que eles
tinham”, diz. “Se fossem pessoas honestas e com orgulho, teriam capacidade para
filtrar a informação boa da outra. Nós temos testemunhos muito posteriores,
do século III d.C. (refere-se a Diógenes de Laércio, autor de uma famosa
compilação de biografias de filósofos gregos) e no entanto damos-lhes
valor.”
Faz
uma distinção. A informação sobre o local de enterro de Platão “tem um
estilo fiável. Não quer dizer que o seja”. Já a cena com a flautista,
podendo ter acontecido, “também é o género de coisas que alguém imaginativo
podia ter dito”. Há que levar em conta não só o autor que transmite as
fontes, mas também o estilo de informação, que sugere se se trata de algo
eventualmente lendário ou pode ter um fundo histórico. “Pelo que ouvi das
notícias, essa réplica à escrava se calhar é lendária, e a outra parte
provavelmente fiável”, diz.
Qualquer
que seja a verdade, a discussão só se torna possível porque surgiu um texto
com mais de 2 mil anos que a lançou. O professor Victor Gysemberg,
especialista na interpretação de fontes greco-latinas e investigador no
Centre National de la Recherche Scientifique, em França, nota que a
imagiologia tem realizado grandes feitos em escritos da Antiguidade nas
últimas décadas. Refere, por exemplo, o palimpsesto de Arquimedes, um
pergaminho do século X com cópias de obras do geómetra grego, que entre 1998
e 2008 foi submetido a um processamento digital que tornou legível o seu
conteúdo. Material de origem animal, o pergaminho é bastante mais durável do
que o papiro, e por isso temos hoje uma quantidade considerável de pergaminhos
antigos mas quase nenhuns papiros. Os de Herculano sobreviveram,
paradoxalmente, por terem sido carbonizados, o que os preservou durante
milénios, à espera que alguém os resgatasse do esquecimento e do seu
mistério.
“Temos
estado à espera disto”, diz Gysemberg. “De certa forma, há dois séculos que
esperamos, pois é impossível desenrolar estes papiros. Ficaram tão queimados
que é impossível fazê-lo sem os quebrar em mil peças. Eu vi-os e vi as
máquinas que se inventaram no século XVIII. Funcionavam bem para desenrolar
os menos queimados e danificados, mas agora temos centenas de rolos que não
há maneira de desenrolar. Recentemente, nos últimos 20 ou 30 anos, tem-se
especulado que a grande inovação estava prestes a chegar, e agora chegou de
facto. Embora ainda haja imenso trabalho pela frente, sabemos finalmente que o
podemos fazer.” O sincrotrão dispara sobre o objeto um fluxo de raio-X mais
poderoso do que os usados na medicina, explica. “A seguir medimos o que objeto
reflete. O objeto é um pouco como um espelho. Mantém parte dos raios-X e
envia alguns de volta.” Para usar o sincrotrão, os investigadores públicos ou
privados têm de fazer um pedido. Se este for concedido, não se tem
necessariamente de pagar, ou paga-se apenas uma pequena fração do custo real
— afinal, é um equipamento público — mas o tempo disponível é limitado. “
A
utilização destes equipamentos na exploração da nossa herança cultural é
importante, mas só temos uma hipótese”, diz Gysemberg. “É uma situação
cheia de adrenalina quando temos 24 horas de beam time (tempo de raio)
numa semana, por exemplo. Toda a gente vai tentar usar cada segundo
disponível, pois a próxima oportunidade poderá ser daqui a um ano ou dois,
ou nunca.”
O
passo seguinte, a utilização de machine learning, ele descreve-a como
"a criação de um cérebro artificial que então se começa a instruir”.
“Podemos ensinar-lhe muitas coisas. Neste caso, queremos ensiná-lo a
identificar padrões dos dados do sincrotrão, reconhecendo mudanças na
textura, mudanças na sensação que dá a superfície do papiro. Pois é assim
que podemos dizer se há tinta no papiro. Ela torna-o um pouco mais suave do
que normalmente ele é.” Sendo tinta puramente à base de carbono, a
dificuldade em detetá-la aumenta. “É como um lápis”, diz. “Tradicionalmente,
não tem quaisquer metais. Mas às vezes há um pouco de chumbo, provavelmente
acidental.”
O
caminho está aberto. Lembrando que as notícias recentes sobre a morte de
Platão não se basearam no desenrolamento virtual, pois foram realizadas sobre
papiros já abertos, Seales diz não ser surpresa que académicos e
investigadores estejam a rever as suas leituras com base em tecnologia que
permite ver mais claramente a tinta. “Digitalizámos a coleção inteira de
Herculano de forma sistemática e estamos a preparar-nos para disponibilizar à
comunidade académica imagens e modelos 3D de cada pedaço de papiro de
Herculano. Estas novas digitalizações são cotejadas com todas as anteriores,
permitindo aos investigadores comparar diretamente os textos agora visíveis
com a fotografia mais antiga. Quando isso acontecer, esperamos um fluxo
contínuo de investigação, revelando leituras novas e revisões de leituras
anteriores.”
Além
dos textos já antes identificados, espera que centenas de outras obras tornem
à luz ao fim de dois milénios. “O restauro desses papiros continuará esta
recuperação de material clássico a um nível que o mundo não assistia desde
que Poggio Bracciolini andou a resgatar manuscritos no início do Renascimento
italiano”, diz. Bracciolini (1380-1459) foi o humanista italiano que aproveitou
os intervalos no seu trabalho como scriptor e diplomata ao serviço de
sucessivos Papas para visitar bibliotecas monásticas em vários países
europeus e ressuscitar manuscritos da antiguidade há muito esquecidos.
Devemos-lhe o conhecimento de obras de autores como Cícero, Lucrécio e
Quintiliano, entre outros. A comparação feita por Seales é ambiciosa, mas
ele justifica: “Há grande beleza nas tecnologias de que fomos pioneiros e na
sua força restauradora.” Luís Faria – Portugal in “Expresso”
com “Blog de São João del-Rei”
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