Novo livro de
Marcos Barrero explora os dramas dos invisíveis da sociedade
I
Os
personagens de Malditos sejam, livro de microcontos de Marcos
Barrero, são pessoas anônimas e esquecidas pela sociedade de consumo. Ou seja,
os excluídos, que vão de vendedores de doces a malabaristas de semáforos e
chapeiros de padaria. Em sua maioria, nordestinos, bolivianos, venezuelanos e
nigerianos. Enfim, homens e mulheres invisíveis, que tentam sobreviver a
qualquer custo na grande metrópole.
Frequentam
clubes sociais de bairros paulistanos ricos apenas para fazer entrega de comida
ou encomenda. Avistam baladas,
restaurantes e outros recintos finos das janelas dos ônibus, que passam longe e
lotados. Vivem atormentados pela sobra de salário no fim do mês. Acumulam
carnês, contas de água e luz. Manter o
aluguel em dia é uma epopeia – afinal, o despejo de um quarto de muquifo e a
volta para as ruas constituem uma tragédia banalizada e cotidiana.
Depois
de dois livros de poemas breves, elípticos e sugestivos – Catchup, mostarda
e calorias (2008) e Pra machucar meu coração
(2017) –, Marcos Barrero surge agora com Malditos sejam (São
Paulo, Editora Almedina Brasil, 2023), um livro de microcontos ou microficções.
São verdadeiros flagrantes da vida real de remediados, desajustados e
excluídos. A prosa não deixa de ser poética e traz vestígios de lirismo. Mas o
caráter de urgência revela, também, certo tom jornalístico, lembrando
reportagens de um tempo ruim. O autor usa um recurso parecido com versos não
metrificados e reproduz o linguajar das ruas. Um exemplo é “Trilhos da Mooca”:
“Não ligamos pro tempo, não. / Queremos ir sentados. /
De pé, vc não sabe, é um empurra-empurra. / Cotovelada daqui, um pisão de pé
ali. / O trecho é longo. / Se dá pane no trem, se chove, se tem briga. / Vixe.
/ Ferrou. / É punk, mano. / Só queremos ir sentados. / É mais suave o
sofrimento”.
A
poetização do cotidiano pode ser vista até mesmo num microconto ao extremo, que
reproduz apenas o momento de um assalto na
rua, como em “Asfalto selvagem”: “ – Mãos ao alto. / – Perdeu. / – Ajoelha, filho da puta!/ – Perdeu, playboy! Eis as flores do asfalto”.
II
Há
personagens que poderiam ser inspirados em tipos que o autor conheceu nas
redações de revistas e jornais pelos quais passou. Um caso é “O diagramador”,
que traça o perfil de um “inimigo do vernáculo e das boas ideias”. A figura
nunca perde a oportunidade de ridicularizar ex-colegas, como os professores que
haviam recebido um ultimato na universidade: “ou defendiam tese, obtinham
titulação ou caíam fora”. O tipo desprezível “parecia extasiado com o perrengue
dos colegas”. O diagramador, diz o microconto, “viveu uma vida em garranchos,
arranjado com uma tese mequetrefe – o que é regra na universidade brasileira”.
Nesse
mesmo microconto, o autor recorda dois colegas de trabalho de outros tempos,
que teriam sido ridicularizados pelo diagramador, pintado como uma espécie de hippie
anacrônico. Descreve-os: “... A., um tipo malvestido e mal-humorado, até
prestou bons serviços à inteligentsia brasileira ao criar e dirigir uma boa
revista. Tentou a literatura, mas foi abatido pela própria mediocridade. Vivia,
sozinho, num asfixiante cafofo na Avenida São João. Era um homem sem
qualidades. J., comunistão, sindicalista, pragmático, havia sido um bom
repórter de jornalões...”
III
Os
microcontos também são monólogo e diálogo. Quase sempre uma reprodução
superligeira de um ato, tendo como protagonista um figurante mais expressivo.
Às vezes, surgem outros personagens. Veja-se “Maria da Penha”, que faz alusão à
lei federal nº 11.340/2006, que tornou mais rigorosa a punição para agressões a
mulheres no ambiente doméstico. Leva esse nome, aliás, em homenagem a uma
mulher agredida pelo marido por seis anos, até se tornar paraplégica e sofrer
atentado com arma de fogo.
Eis
o microconto: “Fiquei prisioneira por tempo demais. / Muita mulher deve
estar passando o que passei. / Sofri maus tratos. / Puxava meu cabelo, me
xingava, rasgava minha roupa. / Socou meu rosto. / Quebrou meu celular, comprei
novo, quebrou. / Quebrou meu braço. / Tinha outra, dois filhos. / Vinha de
madrugada. / Me comia. / Pendurou câmeras na casa. / Ficava com minha chave / Trocava cadeados. /
Preso três vezes em flagrante. / Descumpriu a lei. / Voltou, ronda a casa. /
Quando vem, ligo 190. / Fica parado no portão. / Ri. / Sabe que a
polícia demora. / Sai. E na noite seguinte, volta”.
Em
suma, eis um livro de notável crueza, colado na realidade brasileira, que não
se entrega a mimimis e vitimizações de personagens. O que é, é – um “papo
reto”. Não guarda parentesco com certa literatura bem-comportada, falso
moralista, contaminada por modismos e gêneros de ocasião. Também nada tem a ver
com autoficção e autopiedade. Pode ser qualquer coisa, ou coisa nenhuma, menos
um tedioso mais do mesmo. Os personagens de Malditos não aparecem na TV
e não saem nos jornais. São os desvalidos, os merdunchos, como dizia o
escritor João Antônio (1937-1996). Essa brava gente brasileira é o mais
bem-acabado retrato em preto e branco de outro país – uma nação invisível.
IV
Jornalista, escritor e professor de Jornalismo, Marcos Barrero é autor também dos livros Assis de A a Z, História dos Campeonatos Regionais (esportes), Casa da Fazenda (co-autoria), Dez Décadas – a História do Santos FC (co-autoria) e Empresários Brasileiros (co-autoria).
Foi
roteirista e diretor da Rede Globo, tendo escrito roteiros para especiais de
vários artistas, como Renato Aragão e Roberto Carlos. Tornou-se o primeiro ombudsman
de rádio do mundo na Bandeirantes/AM, em 1996, conforme registra a Organization
of News Ombudsman, de San Diego/Califórnia-EUA. Atuou como professor
de Jornalismo, Telejornalismo e Radiojornalismo na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), de 1990 a 2004. Permaneceu em sala de aula por
quase 30 anos em várias universidades.
Foi
apresentador, diretor artístico e um dos fundadores da allTV, com a qual ganhou
o Prêmio Esso de Melhor Contribuição ao Telejornalismo Brasileiro em 2005.
Formou-se em Jornalismo pela Faculdade Casper Líbero, de São Paulo, e possui
curso de especialização em Jornalismo Brasileiro pela mesma instituição.
Foi
chefe de redação do extinto jornal Gazeta Esportiva e editor das revistas Placar
e Sala de Aula, da Editora Abril. Fez várias coberturas internacionais e
ganhou os principais prêmios jornalísticos do País, inclusive o Prêmio da
Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Desempenhou
ainda as funções de repórter, redator e editor na revista Manchete, nos
jornais O Estado de S. Paulo, Gazeta Esportiva e Diário de S. Paulo,
na Editora Abril e nas emissoras de rádio Jovem Pan e Bandeirantes. Escreveu artigos
e resenhas de livros para as revistas Veja, Isto É e Leia Livros
e para os jornais Folha de S. Paulo e Folha da Tarde.
Adelto Gonçalves - Brasil
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Malditos sejam, de Marcos Barrero. São Paulo: Editora Almedina
Brasil, 136 páginas, R$ 70,00, 2023. Site
da editora: www.almedina.com.br
E-mails: apoiocliente@almedina.net
geral@almedina.net lumarbarrero@gmail.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a
Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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