Em seu
novo livro, ‘Sombras no Jardim’, o poeta reafirma sua busca pela experimentação
linguística
I
Se
a prosa poética se dá a partir da fusão do enredo e da poesia, com “a
narratividade desenvolvida em ambiência lírica ou épica”, como observou o
professor Massaud Moisés (1928-2018) em A Criação Literária
– Prosa II (São Paulo-SP, Editora Cultrix, 2015, p. 29), é,
certamente, essa a definição mais apropriada para Sombras no Jardim
(Natal-RN, Arc Edições/Sol Negro Edições, 2023), de Floriano Martins (1957),
poeta, dramaturgo, ensaísta, crítico literário, artista plástico e tradutor,
dono de vasta obra que inclui mais de uma centena de livros publicados no
Brasil, em Portugal e em outros países.
De
fato, os textos deste seu mais recente livro são narrativas na primeira pessoa
do singular em que os fatos são rememorados “entre névoas de incertezas ou
sutilezas oníricas”, como se o autor desfiasse o novelo da memória, “abandonando-se
ao devaneio ou ao pervagar pelos confins do sonho”, como diria ainda Massaud
Moisés. Mas aqui há um acréscimo que aparece como novidade: o alter ego
que comanda o espetáculo rememorado, ou seja, a tessitura dos acontecimentos de
natureza introspectiva, é sempre o de uma mulher, e não aquele que seria em
tese o do poeta. É o que se pode constatar neste excerto do texto que leva por
título “O lugar exato onde se encontra Isabella Blow”:
(...)
O dia é uma exploração do impossível. Sempre acordei assim, com uma espécie de
extravagância me mantendo afastada da morte. Os meus decotes seduziram todos os
corpos, de um modo que a queda sempre foi o meu desafio. Eu mesma me declarei o
extremo de mim mesma, meu despenhadeiro de corpo e alma. Como alguém que
provavelmente saiba identificar a origem do inferno (...).
Dividida
em três seções – Caligrafias do espírito, Representação
consentida e Inventário da pintura de uma
época –, a obra constitui mais uma experiência do poeta em uma trilha
marcada pela experimentação linguística, pela intertextualidade, em sua busca
por novas formas de expressão. Com certeza, o maior estudioso brasileiro do
Surrealismo, movimento que teve início em 1924 na França a partir de ideias
defendidas por André Breton (1896-1966), Philippe Soupault (1897-1990) e
Guillaume Apollinaire (1880-1918), Floriano Martins procura sempre adotar uma
linguagem marcada por uma imaginação sem amarras e pelos sonhos, que é expressa
de forma automática, livre de censura ou preconceitos. Procura passar, dessa
maneira, para o papel os conteúdos profundos da mente. É o que se pode ver neste trecho final do
texto intitulado “Liu Rushi:
(...) Travestir a própria identidade era um hábito. Fomos
criadas em um mundo onde a renúncia ao genuíno era a principal das normas
sociais. Toda vida é um bordado lento a caminho do desespero e da tragédia.
Tornar-se uma lenda é como ser proscrita duas vezes. Duas pinturas vendidas a
bom preço e apócrifas, como a própria realidade de nossa existência.
II
No
prefácio que escreveu para esta obra, o escritor, crítico e editor de arte,
conferencista e jornalista Jacob Klintowitz, do alto de sua experiência como
autor de 192 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, monografias de
artistas e ficção, também procura definir a arte de Floriano Martins,
observando que “os textos mais curtos são contos, devido a sua unidade temporal.
Mas são igualmente poesia". E ressalta: “É encantador como o texto se
interroga e se comenta de maneira permanente. Quem será o autor? Tantos
personagens, tanta energia feminina, tantas definições”.
Klintowitz
admite, implicitamente, que é difícil definir a obra de Floriano Martins, mas
lembra que a parte ensaística de seu trabalho está de tal maneira impregnada
pelo poético e pela ficção “que reforça o sentimento de que a nossa época tem a
sua radicalidade justamente na junção dos diferentes”. E observa mais adiante
que, em vários gêneros, é difícil apontar o que é literatura no cinema, o que é
movimento no teatro, o que é roteiro na dança, o que é imagem visual na poesia.
E o faz para concluir: “Um dos exemplos mais marcantes nas últimas décadas é
exatamente o livro Sombras no Jardim”.
Já
a poeta, tradutora, professora e artista visual Elys Regina Zils no texto de
apresentação (“orelhas”), observa que “a arquitetura espiritual com a qual o
livro avança envolve o leitor que é teletransportado para cada uma das distintas
realidades que se constroem em paisagens inquietantes”. E acrescenta: “Assim, o
poeta ultrapassa o véu que separa os mundos para coletar as tintas que irão
escrever esses retratos do inesperado que brota do sussurro íntimo de cada
canto das paredes que escondem o abismo individual”.
III
Nascido
em Fortaleza-CE, Floriano Martins tem se dedicado, em particular, ao estudo da
literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. Foi
editor do jornal Resto do Mundo (1988/89) e da revista Xilo
(1999). Em janeiro de 2001, a convite do poeta e jornalista Soares Feitosa,
criou o projeto Banda Hispânica, banco de dados permanente sobre
poesia de língua espanhola, de circulação virtual, integrado ao Jornal de
Poesia.
Criou
em 1999 a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições,
com mais de 100 livros publicados de autores de diversos países. Estudioso da
tradição lírica hispano-americana e um dos maiores estudiosos do Surrealismo na
América, é autor dos livros de ensaios: Um novo continente – Poesia e
Surrealismo na América; Escritura conquistada – Poesia hispano-americana; e
120 Noites de Eros – Mulheres surrealistas, entre outros.
Entre
os seus livros mais recentes, destacam-se: Un poco más de Surrealismo
no hará ningún daño a la realidad
(ensaio, México, 2015), Antes que a árvore se
feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo
(novela, com Berta Lucía Estrada, Brasil, 2020) e El frutero de
los sueños (poesia, Estados Unidos, 2023). Traduziu livros de
César Moro (1903-1956), Federico García Lorca (1898-1936), Guillermo Cabrera
Infante (1929-2005), Vicente Huidobro (1893-1948), Enrique Molina (1910-1997),
Jorge Luis Borges (1899-1986), Aldo Pellegrini (1903-1973) e Pablo Antonio
Cuadra (1912-2002), entre outros autores espanhóis e hispano-americanos.
Esteve
presente em festivais literários realizados em países como Bolívia, Chile,
Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha,
México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Foi curador da Bienal
Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa
das Américas (Cuba, 2009), do Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e do
Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Atuou em 2010 como
professor convidado da Universidade de Cincinnati, em Ohio, Estados Unidos. Adelto
Gonçalves - Brasil
________________________
Sombras no Jardim, de Floriano Martins, com prefácio de Jacob Klintowitz e apresentação de Elys Regina Zils. Natal-RN: Sol Negro Edições, R$ 40,00, 192 páginas, 2023. Site da editora:www.solnegroeditora.blogspot.com.
E-mail da editora: www.edsolnegro@hotmail.com E-mail do autor: floriano.agulha@gmail.com
___________________________________
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário