Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Braga Horta: a infância revivida em versos

                                                          I                  

Nascido em Carangola, o poeta Anderson Braga Horta, filho de poetas, ainda criança, acompanhando a família, trocou o interior de Minas Gerais pelo interior de Goiás, mais especificamente pela tradicional Vila Boa de Goiás, ou Goiás Velho, onde fez o curso primário em duas “escolinhas domésticas”. Depois, transferiu-se para Goiânia, jovem capital àquela época, onde fez o curso de admissão ao ginásio para ingressar no Ateneu Salesiano Dom Bosco. Mas, aos 12 anos, retornou para Minas, onde ficou na casa dos avós, em Manhumirim, e concluiu o ginásio. Depois, foi para Leopoldina, ainda em Minas Gerais, e fez o curso clássico.

Tempos depois seguiu para o Rio de Janeiro, onde, em 1959, formou-se pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Advogado, mudou-se para Brasília, onde desempenhou o cargo de diretor legislativo da Câmara dos Deputados. Ao mesmo tempo, cumpriu uma vitoriosa carreira nas letras, publicando extensa obra que inclui títulos de poesia, crítica literária e ensaística.

Para rememorar a primeira parte dessa longa jornada de vida, reuniu em Iniciações (Brasília, Tagore Editora, 2023) poemas breves e textos em prosa poética que ajudam a reconstituir aquela trajetória. Seriam, segundo o próprio autor, “crônicas pela matéria, poemas pela forma, crônicas-poemas ou poemas-crônicas”, ou ainda mininarrativas carregadas de poesia, mas o importante, independentemente da hierarquização conceitual, como diz no posfácio o escritor Ronaldo Cagiano, “é a matéria estética aqui enfeixada, com toda sua carga semântica e plenitude comunicativa”. 

São breves peças literárias que revelam o cotidiano do autor quando menino e adolescente cujos detalhes ainda permanecem vívidos em sua memória, como se pode ver neste poema que dá título ao livro e, de certa maneira, abrange todo o conteúdo da obra: “A menininha / rindo / me agarrou pelas mãos / estendeu os meus braços em cruz / me empurrou contra a parede / e disse Agora / você vai pregar ni mim. / Alheio ao que fazer / desvencilhei-me / e lépido fugi: / Nû preguei,  eco, eco! / Inocente adiava / minha iniciação”.

As recordações de Braga Horta emergem com força e, às vezes, retratam ações que, no cotidiano de hoje marcado pelas novas tecnologias de comunicação com as massas, mesmo nos confins do Brasil, já não se reproduzem com tanta inocência. E, como observa o editor Victor Tagore no texto de apresentação, acabam por nos conduzir “por uma experiência quase lúdica, onde a inocência da juventude é posta à prova em um gesto tão simples quanto uma brincadeira de criança, que reflete os ritos de passagem que todos nós vivenciamos”.

 

                                                         II

Num poema mais longo, “Amburana”, o poeta evoca a existência de uma árvore cerejeira nativa do Cerrado e do sertão nordestino, onde é conhecida também como cumaru-das-caatingas e mesmo como imburana-de-cheiro, cujas sementes são utilizadas na perfumaria e sua madeira na carpintaria. Na praça em frente à casa da família do menino, em meio a cajazeiras, a amburana dominava imponente “pela graça olorosa das sâmaras voadoras”. Rememora o poeta: (...) eu e o mano imediato / brincávamos de passar uns pelos outros / com a menininha loura. / Ensaios de namoro...” Ao final do poema, evoca: Anos mais tarde a minha alma chorou / vendo nos jornais arrancada pelo vento / a vetusta amburana / de pernas para o ar na praça eventrada. / Foi como se a minha infância morresse / definitivamente.

Mais adiante, no poema “Música”, rememora os sons que ouvia vindos da casa do vizinho em Goiás, canções em vozes suaves, agradáveis aos ouvidos: A canção desabava em catadupa / do alto muro do vizinho da direita: / – A tua voz estou a ouvir – vinha na voz dominadora de Vicente Celestino. / E o contracanto não tardava / nos melodiosos trinados de Gilda de Abreu. / (...) Até onde me lembro foi assim/ em Goiás / a minha primeira iniciação musical.

Depois, recorda, já em Manhumirim, as vozes que vinham através do então potente aparelho de rádio Zenith de seu avô: (...) e pelas parcimoniosas execuções pianísticas / de minha mãe e tias. / Ou pelo som que emanava da estação ferroviária.

Como se vê, os versos de Iniciações são confidências de um autêntico homem de letras, de quem garimpou na memória suas vivências goianas e mineiras, “culminando num delicado repositório de um imaginário pessoal, doméstico, social e familiar”, como bem observa Ronaldo Cagiano no posfácio.

 

                                                         III

Hoje, funcionário público aposentado, Anderson Braga Horta (1934) dedica-se em tempo integral à literatura. É cofundador da Associação Nacional de Escritores (ANE) e membro da Academia de Letras do Brasil (ALB), de Brasília. Começou a exercitar o caminho das letras por volta dos 14 anos. Datam de 1949 seus primeiros escritos, mas apenas no ano seguinte sentiu-se capaz de produzir um texto que pudesse ser submetido à análise dos outros. Eram versos. Os contos começariam em 1954, um deles, inclusive, foi recolhido em Pulso Instantâneo (Brasília, Editora Thesaurus, 2008).

O contista estreou em livro antes do poeta, a não ser pela participação em obras coletivas: O Horizonte e as Setas, em parceria com Joanyr de Oliveira, Elza Caravana e Izidoro Soler Guelman. Alguns dos contos que integram Pulso Instantâneo faziam parte de Contos Passageiros, livro nunca editado, embora tenha conquistado o Prêmio Machado de Assis, do antigo Estado da Guanabara, em 1966.

Predominam em sua obra títulos de poesia,  como  Altiplano e Outros Poemas (1971), seguido de Marvário, Incomunicação, Exercícios de Homem, O Pássaro no Aquário, reunidos, com inéditos, em Fragmentos da Paixão (São Paulo, Massao Ono, 2000), que obteve o Prêmio Jabuti de 2001, mais Pulso (São Paulo, Barcarola, 2000), Quarteto Arcaico (Jaboatão dos Guararapes, 2000), 50 Poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro, Galo Branco, 2003), Soneto Antigo (Brasília, Editora Thesaurus, 2009); Lua da Fonte/Elegia de Varna, seleção, prólogo e tradução para o búlgaro de Rumen Stoyanov (Sofia, 2009), De uma janela em Minas Gerais – 200 sonetos (miniedição em quatro volumes, 2011), Signo, antologia metapoética (Brasília, 2010), De Viva Voz (Brasília, 2012), Quarenta Sonetos (Jaboatão dos Guararapes, 2015),  Tiempo del Hombre (Lima, Maribelina, Casa del Poeta Peruano, 2015), e 50 Poemas (50 Gedichte), com tradução de Curt Meyer-Clason (1910-2012) e textos em português e alemão, entre outros.

Na linha da crítica e da ensaística, publicou pela Editora Thesaurus, de Brasília, o opúsculo Erotismo e Poesia (1994), Aventura Espiritual de Álvares de Azevedo: estudo e antologia (2002), Sob o Signo da Poesia: literatura em Brasília (2003), Traduzir Poesia (2004), Testemunho & Participação: ensaio e crítica literária (2007) e Criadores de Mantra: ensaios e conferências (2007).  

Com Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera, assina as traduções de Poetas do Século de Ouro Espanhol (2000); Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia (Editora Thesaurus, 2002), O Sátiro e Outros Poemas de Victor Hugo (Galo Branco, 2002), Antologia Poética Ibero-americana, organização de Gustavo Pavel Égüez (Cuiabá, 2006); e Contos de Tenetz, do búlgaro Yordan Raditchkov, com Rumen Stoyanov  (Editora Thesaurus, 2004).  

Ganhou mais de 15 prêmios literários, entre os quais o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, São Paulo (2001); Joaquim Norberto (tradução de poesia, partilhado), da União Brasileira de Escritores (UBE), Rio de Janeiro, 2001); Hors concours no Prêmio Centenário de Carminha Gouthier, das Academias Feminina Mineira de Letras e Municipalista de Letras de Minas Gerais (2003); Prêmio Internacional de Literatura Brasil-América Hispânica, da Academia Feminina Mineira de Letras, por Fragmentos da Paixão, em 2007; e Prêmio Yvone Simoens Botkay, da UBE-RJ, em 2008, por Criadores de Mantras. Adelto Gonçalves - Brasil                           

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Iniciações – Poesia, de Anderson Braga Horta. Brasília, Tagore Editora, 78 páginas, 2023. E-mails: bragahorta@gmail.com  contato@tagoreeditora.com.br

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Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo, Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial – 1709-1822 (São Paulo, Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo - 1788-1797 (São Paulo, Imesp, 2019), entre outros.




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