I
Depois
de lançar, em 2020, O que devíamos ter feito, contos (Editora Patuá), o
romancista, contista, poeta e crítico literário Whisner Fraga (1971) chega ao
seu décimo-segundo livro com Usufruto de demônios (Ofícios Terrestres
Edições, 2022), em que se mantém fiel ao gênero, depois de experiências
bem-sucedidas em outras modalidades textuais.
A
obra, composta por 64 narrativas curtas, a maioria com menos de uma página, todas
escritas em letra minúscula, mas com uma linguagem sensível e poética, é uma
das primeiras a ter como pano de fundo o trágico período da pandemia de
coronavírus (covid-19) em que estão presentes “o horror, o negacionismo, o
isolamento social e a perplexidade ante o cinismo fascista”, como observa o poeta,
professor e crítico literário Gabriel Morais Medeiros, mestre em Artes Visuais
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no posfácio que escreveu para
este livro.
Como
já ressaltou o jornalista e escritor Hugo Almeida, nesta coletânea, “atravessa
os contos um sopro de revolta, por vezes recheada de candura”, mas sem deixar
de manifestar o inconformismo diante da indiferença e do deboche dirigido aos
mortos pelas autoridades da época, especialmente o principal mandatário, que
sempre ficou indiferente ao genocídio que ocorria com a proliferação da peste e
a falta de vacinas e pronto-atendimento às vítimas, como se lê na narrativa que
leva por título “ele acompanha aviões”:
“(...) é como se setecentas mil pessoas tivessem sido
apagadas – e se fossem vinte boeing deletados de suas rotas, em um único dia?,
cadentes, se tornassem quebra-cabeças em pastos?, será que assim eles se
comoveriam?”
II
O
fantasma da pandemia, porém, não percorre todas narrativas, limitando-se às
três primeiras. Nas demais, o que se pode observar é a desesperança da velhice,
o desespero diante da possibilidade de se morrer diante de um moleque que na
rua agita um revólver, exigindo do passante a entrega do dinheiro, do celular e
do relógio, o drama do morador de rua que “garimpa algumas moedas no semáforo e
logo as troca por pinga” ou ainda a decepção sentida por uma jovem autora diante
da má vontade com que teria sido recebida sua obra por resenhistas desde o
primeiro livro:
“(...) eles são assim, leem a
primeira página, lambiscam resenhas chinfrins e se vendem por essas
trivialidades (...)”.
Na maioria das
narrativas, o que se observa é o recurso ao monólogo interior ou ao fluxo de
consciência, como se o narrador desfiasse um novelo da memória ou tecesse os
acontecimentos de forma extrospectiva, ainda que mergulhado na introspecção e
sem perder a cadência da prosa poética.
Alguns
contos são datados, ou seja, é possível localizá-los em 2014, época da
realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em que praticamente teve
início a orquestração por meio das redes sociais dos protestos contra a
presidente eleita que funcionaram como uma preparação para o golpe parlamentar
de 2016 que redundaria na eleição de um candidato de orientação nazifascista.
Outros
contos não deixam de funcionar como crítica à mentalidade fascista que parece
insuflada por algumas empresas privadas preocupadas em manter a maioria da
população à beira da miséria absoluta ou mesmo condenada ao desaparecimento,
como no caso da política desencadeada contra remanescentes indígenas. Ou ainda
contra a mentalidade nefasta de arquitetos que não se recusam a imaginar meios
de produzir uma arquitetura hostil, que procura dificultar a vida dos moradores
de rua.
Enfim,
são contos perpassados por um sentimento de revolta que se justifica diante de
um futuro que se projetava cada vez mais tenebroso. E ainda parece ameaçador.
III
Nascido
em Ituiutaba, Minas Gerais, Whisner Fraga
é formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Uberlândia. Em
Engenharia Mecânica, fez também mestrado na mesma universidade e doutorado na
Universidade de São Paulo (USP). Mas, atraído pelas Letras, curso que iniciou,
mas não concluiu, ainda durante o mestrado, publicou o livro de contos Seres
e sombras (edição de autor, 1997). Durante o doutoramento, publicou o seu
segundo livro de contos, Coreografia dos danados (Edições Galo Branco, 2002),
título inspirado em verso de Augusto dos Anjos (1884-1914). Concluiu o doutoramento
em 2003 e, desde então, prestou concurso para a docência e vem lecionando para
jovens e adultos. Ao mesmo tempo, atua como crítico literário em jornais
impressos e sites dedicados à literatura. Também resenha obras de literatura
contemporânea no canal Acontece nos Livros, no YouTube.
É
autor ainda de A cidade devolvida, contos (Editora 7 Letras, 2005); As
espirais de outubro, romance (Nankin, 2007), prêmio ProAC do Governo do
Estado de São Paulo; Abismo poente, romance (Ficções Editora, 2009),
prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; O livro da carne, poemas
(Editora 7 Letras, 2010); Sol entre noites, romance (Ficções Editora,
2011), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; Lúcifer e outros
subprodutos do medo, contos (Editora Penalux, 2015), prêmio ProAC do Governo
do Estado de São Paulo; A verdade é apenas uma versão dos fatos (Editora
Penalux, 2017); e O privilégio dos
mortos, romance (Editora Patuá, 2019);
Participou
de antologias como Os cem menores contos brasileiros do século (Editora
Ateliê, 2018), organizada por Marcelino Freire; e Geração zero zero:
fricções em rede (Editora Língua Geral, 2011), organizada por Nelson de
Oliveira. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, alemão e árabe
e publicados em antologias. Adelto Gonçalves - Brasil
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Usufruto de demônios, de Whisner
Fraga, com posfácio de Gabriel Morais Medeiros. Campinas-SP: Ofícios Terrestres
Edições, 86 páginas, R$ 50,00, 2022. Site: www.oficiosterrestres.com.br E-mail: oficiosterrestreseditora@gmail.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os vira-latas da madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o
poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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