Coletânea
reconstitui os primeiros passos da criação do grupo Picaré e traz depoimentos e
poemas dos participantes
I
Para
assinalar a passagem da quarta década da aparição de um movimento literário e
artístico que marcou época não apenas no Litoral paulista mas em boa parte do Estado
e até do País, o poeta Raul Christiano organizou a Coletânea Picaré – 40
anos de Poesia & Artes (Santos, Realejo Livros, 2022), que, além de uma
longa introdução que contextualiza o surgimento daquele grupo, traz depoimentos
e peças poéticas de 38 dos 57 ativistas que fizeram parte daquela multiação
literária.
Ativista
cultural, Christiano foi, em 1979, ao lado de Rafael Marques Ferreira, à época
recém-ingressados na Faculdade de Comunicação (Facos) da Universidade Católica
de Santos (UniSantos), um dos fundadores do grupo Picaré, que encerrou suas
atividades em 1983, e um dos participantes ativos das chamadas gerações do mimeógrafo
e da poesia marginal nos anos 1970 e 1980.
Como
observa Christiano na introdução, o movimento Picaré tentou romper com o
academicismo, sem deixar de manter uma política de boa vizinhança com escritores
e entidades literárias já estabelecidas. Não se pode esquecer que, à época, o
Brasil vivia sob os rigores de uma ditadura militar (1964-1985), marcada pela
repressão às liberdades democráticas, com censura, perseguição política,
torturas e mortes, inclusive com a presença disfarçada de agentes dos órgãos
repressores nas salas de aulas da Facos. Mas, ao mesmo tempo, aquela seria uma
época de muita curtição e desbunde, especialmente em São Paulo, a partir da
ação de jovens que fizeram das pichações e grafites o espaço para as suas
manifestações artísticas e políticas.
De
início, o movimento Picaré deveria ter sido um núcleo santista do muito ativo
grupo Poetasia, de São Paulo, mas logo o agrupamento entendeu que deveria ter
autonomia e assumiu aquele título que está diretamente ligado às praias do
Litoral paulista. Ou seja, na linguagem dos caiçaras, picaré é a rede de
arrasto que trazia muito peixe para as areias, atividade hoje proibida, pois
considerada um meio predatório de se pescar.
Foram
dez os jovens que partiram para a criação do grupo, com idades que variavam de
19 a 26 anos, a maioria oriunda da Academia Santista Juvenil de Letras, criada em
1977 e de curta existência, por iniciativa do próprio Raul Christiano: Beto
Massoni, Douglas Martins, Dudu Morato, Fausto José, Inês Bari, Nilsângela
Maestre, Rafael Marques Ferreira, Sérgio Gonçalves Pinto, Sidney Sanctus e Raul
Christiano.
II
Esses
jovens sacudiram o marasmo cultural de Santos que se constatava àquela época:
lançaram manifestos, organizaram passeatas, rodaram livros artesanais e
picharam muros na calada da noite. Rigidamente antiacadêmico e a favor da
vanguarda e de uma arte humanística, o grupo Picaré condenava a elitização cultural
e a estagnação de alguns membros da tradicional Academia Santista de Letras
daquele período, que, por exemplo, utilizavam a arte para se projetar
socialmente e organizavam homenagens póstumas aos grandes poetas santistas em
cerimônias restritas.
Christiano
e Rafael escreveram juntos, em uma mesa de bar, nas imediações da Facos, o
primeiro manifesto do grupo, intitulado “Neo-Vanguardismo”, seguido de um
segundo manifesto, “Picarismo”, em que defendiam uma ação artística
"direta, clara, sem o formalismo que impõe normas para a criação", ambos
reproduzidos nesta edição da Coletânea Picaré.
Nesse
pano de fundo, Christiano redigiu o “Manifesto da Despertação” que definia as
primeiras linhas para a organização do grupo e cujo final preconizava o seguinte:
“(...) Vamos abandonar os imprevistos que barram a
oportunidade, dar forças às criações, diminuir (em parte) o saudosismo: acabar
com o falso academicismo e recolocar, aqui também, a bandeira da poesia num
ponto culminante, acima do seu abandonado mastro. – 18 de julho de 1979”.
Com
a distribuição de boletins poéticos em faculdades e portas de teatro, bares e
cinemas, outros jovens autores, com idades entre 19 e 26 anos, aderiram ao
grupo, entre eles: Valdir Alvarenga, José Cândido, Luiz Antônio Canuto, Edilza
de Souza, Denize Gomes Gonsalves, Alex
Sakai, Sérgio Gonçalves Pinto, Fausto José, Vieira Vivo, Orleyd Faya, Osvaldo
da Costa, Lídia Maria de Melo, José Luiz Machado (Zellus), Renato V
Rovai e outros, inclusive o paraibano Luis Avelima, poeta, tradutor e
jornalista que vive em São Paulo há mais de 40 anos.
Como
lembra Christiano, desse grupo derivou-se a Revista Mirante, editada
pelo poeta Valdir Alvarenga e que se encontra há mais de 40 anos em circulação
e talvez seja a mais antiga do Brasil. E, em 2018, foi lançado o filme
“Pescadores de palavras”, dirigido pela cineasta Madeleine Alves, que resgata a
história literária de Santos das últimas quatro décadas, em que o grupo Picaré
e a chamada geração do mimeógrafo são homenageados.
III
Raul
Christiano de Oliveira Sanchez (1958), nascido em Apucarana, no Estado do
Paraná, é jornalista, escritor, poeta, especialista em políticas públicas,
professor universitário e ativista político e cultural. Descendente de
espanhóis, italianos e portugueses, é o filho mais velho de quatro irmãos.
Residiu em Apucarana até 1961, transferindo-se para Brotas, onde permaneceu até
1969, passando um curto período em Barra Bonita. Em abril de 1971, mudou-se
para Santos, onde vive até hoje.
Formado
jornalista profissional em 1982, trabalhou em vários órgãos de imprensa na
cidade litorânea paulista, como o jornal A Tribuna, Rádio Clube de
Santos, Rádio Cacique de Santos e TV Mar. Presidiu a Delegacia Regional do
Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo na Baixada Santista
(1994/1995).
Ocupou
cargos nas áreas de cultura, meio-ambiente e educação, sendo um dos
responsáveis, dentro do Ministério da Educação no governo Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002), pela implantação do Programa Bolsa Escola Federal (atual
Bolsa Família) na gestão do ministro Paulo Renato Souza (1945-2011).
Membro
da Academia Santista de Letras, ocupando a cadeira cujo patrono é o poeta José
Martins Fontes (1883-1937), e do Instituto Histórico e Geográfico de Santos,
foi secretário municipal da Cultura, ocupou o cargo de diretor do Programa de
Oficinas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e acumulou a
gestão das secretarias de Educação e Cultura na Prefeitura de Cubatão, de
janeiro a setembro de 2017. Raul é viúvo e tem quatro filhos e dois netos.
É
autor de Vitória (poesias, 1980), Enxoval para bebe(r) (poesias,
1981), Produção Independente na Literatura (ensaios, 1983), Sensação
de Amor Feito (poesias, 1984), Alguma Poesia (poesias, 2001), De
Volta ao Começo – raízes de um PSDB militante que nasceu na oposição"
(história, 2003), e Poesia em tudo/AmorAosTuítes (poesias, 2016), entre
outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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Coletânea
Picaré – 40 anos de Poesia & Artes, de Raul Christiano
(organizador). Santos-SP: Realejo Livros & Edições, 326 páginas, R$ 79,90, 2022.
E-mail: marechal@realejolivros.com.br Site: www.realejolivros.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2015),
e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo
1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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