Numa altura em que já passaram dois anos desde o início da pandemia e em que as regras impostas pelas autoridades só tendem a agravar – pelo menos para quem tem família do outro lado do mundo -, muitos são os portugueses que estão a fazer as malas ou que já regressaram ao país. Não há dados precisos, mas a presidente da Casa de Portugal dá conta de um número “elevado” de portugueses a sair do território, fenómeno que a deixa “triste e preocupada”. O Jornal Tribuna de Macau conversou com Catarina Guerra Gonçalves, Ana Ferreira e Catarina Cabeçadas, que já saíram do território, e com Micaela Carvalho, que segue hoje para Portugal
Não
há números concretos, mas é certo que muitos têm sido os portugueses a
abandonar o território ou que vão fazê-lo nos próximos tempos. Com uma
“carreira consolidada” em Macau, Catarina Guerra Gonçalves partiu este mês para
Portugal, por razões familiares e de saúde – as medidas de prevenção da
pandemia adoptadas na RAEM levaram-na a tomar a difícil decisão. Ana Ferreira
saiu no Verão do ano passado. O objectivo não era ir definitivamente, mas
quando lá chegou e percebeu o que era “estar num mundo real e livre” pôs de
parte a ideia de regressar, pelo menos para já. Se tudo correr bem, Micaela
Carvalho regressa hoje a Portugal, com o namorado. O facto de não haver um
horizonte para a reabertura de fronteiras foi o motivo que a levou a fazer as
malas. Já Catarina Cabeçadas e o namorado partiram em Setembro de 2021. No seu
caso, a pandemia não foi a principal razão, mas ajudou.
A
advogada Catarina Guerra Gonçalves veio para Macau pela primeira vez com os
pais, em 1995, tendo frequentado o liceu e a actual Escola Portuguesa entre o
8º e o 12º. Depois seguiu para Portugal, onde estudou Direito, e regressou ao
território em 2006. “Sair não foi uma decisão nada fácil […] São muitos anos em
Macau – Macau entranha-se. É a cultura, a mistura de gentes, há algo de
especial nessa terra”, confessou ao Jornal Tribuna de Macau.
Foram
precisamente as medidas contra a pandemia adoptadas pelas autoridades que
“precipitaram a decisão” de Catarina Guerra Gonçalves. “Tive de deixar Macau
por razões familiares, mas sobretudo de saúde. Há tratamentos não disponíveis
em Macau e fazer o tratamento em Portugal e regressar exigiria vários meses de
ausência”, explicou a também ex-vogal da Mesa da Assembleia da Associação dos
Advogados e ex-membro da Subcomissão de Estágio. Se não fossem as exigências
actualmente impostas, a advogada teria ido fazer os tratamentos a Portugal e
regressado depois a Macau. “A longa duração e condições da quarentena
inviabilizaram isso”. Por outro lado, acrescentou, “estar dois anos ‘presa’ num
território tão pequeno, sem poder viajar, afecta muito a parte psicológica de
cada um”.
Ana
Ferreira chegou ao território em 2019, através de um estágio do Inov Contact,
na área da arquitectura. Depois de o concluir, acabou por arranjar trabalho na
área, tendo por cá ficado dois anos. A decisão de partir “não foi fácil”,
afinal, já tinha amigos que eram família e independência financeira, mas a
distância falou mais alto. “Saí porque já estava há dois anos aí presa. No ano
passado, pedi residência porque sem isso tinha a certeza de que não poderia
voltar a Macau. O meu pedido foi aceite e decidi vir [a Portugal] porque já não
via os meus pais há imenso tempo e a minha família, em geral, além de que tinha
aqui um projecto que me obrigava a vir cá”, explicou.
A
decisão de voltar a Portugal não era definitiva, mas quando chegou ao país
acabou por mudar de ideias. “Só depois de estar cá e perceber a diferença do
que é estar num mundo real e livre é que não me imagino a voltar tão cedo para
Macau, pelo menos com as condições que há”, acrescentou Ana Ferreira.
A
trabalhar na área do turismo, Micaela Carvalho diz já não ser possível
continuar em Macau. “Trabalho na área do turismo e como não há perspectivas de
abrirem as fronteiras, eu e o meu namorado decidimos que era melhor sair de
Macau”, começou por contar Micaela Carvalho. A acrescentar a isso, há já dois
anos que não vai a casa. “Estas restrições não se conjugam com o nosso
trabalho, porque não conseguimos tirar dias de férias para ir a Portugal e
depois fazer 21 dias de quarentena e mais sete em casa. Felizmente, conseguimos
ir à China duas vezes e já deu para espairecer um bocadinho”, prosseguiu.
Há
já seis anos em Macau, Micaela Carvalho disse que não foi uma decisão fácil de
tomar, mas a verdade é que tanto para ela como para o namorado “já não dava
mais”. Ainda assim, a saída do território tem enfrentado obstáculos – o casal
já viu dois voos serem cancelados. “Tem sido difícil porque temos um gato e
temos mesmo de ir por Hong Kong, por Macau não conseguimos. Em Hong Kong como
tem havido alguns casos, algumas companhias estão a cancelar voos. Primeiro
tínhamos um voo da Swiss Air, depois da Lufthansa, ambos foram cancelados. A
data para saída que temos agora é 21 de Janeiro, pela Qatar Airways”, adiantou.
Catarina
Cabeçadas também saiu da RAEM ao fim de quase seis anos – no seu caso, a
pandemia não foi a principal razão por que saiu, mas ajudou. “Eu e o meu
namorado já tínhamos o plano de voltar para a Europa antes da pandemia […]
devido às condições de trabalho: férias, licenças, horários e oportunidades”,
apontou. Trabalhando na indústria farmacêutica, sentia que “não tinha muitas
hipóteses”, e por outro lado queria estar mais próxima da família.
“Claro
que isto antes da pandemia tinha um peso e durante a pandemia ganhou um peso
ainda maior. Acabámos por adiar durante uns meses esse plano, mas no final de
2020 voltámos a tentar, a mandar currículos, e a meio de 2021 consegui um
trabalho. Neste momento estou na Suíça”, contou.
Catarina Cabeçadas chegou a Macau em Fevereiro de 2016 para integrar a equipa da Hovione. “Como é óbvio não foi uma decisão fácil. Tanto eu como ele gostamos muito de Macau e foram quase seis anos a viver aí – e para ele foram mais -, e eu gostava muito da vida que tinha em Macau, mas a nível profissional sentia que estava a ficar um bocadinho para trás. E claro que a pandemia deu uma forçazinha”, apontou.
Catarina
Guerra Gonçalves, Ana Ferreira, Micaela Carvalho e Catarina Cabeçadas são
apenas quatro exemplos dos muitos portugueses que estão a abandonar a RAEM ou
já o fizeram. Este jornal contactou o Consulado-Geral de Portugal em Macau e
Hong Kong para perceber de que dados dispõe em relação a esta matéria. Segundo
revelou, entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro, emitiu um total de 50
certificados de bagagem e dois certificados de cancelamento de residência.
No
entanto, ressalvou que “o número de certificados de bagagem emitidos não é
significado do número total de pessoas a regressar, dado que um certificado
pode servir para o regresso de uma pessoa, assim como pode servir para uma
família de várias pessoas”. Por outro lado, recebeu um total de 21 pedidos de
certificado ao “Programa Regressar”.
Já
os dados fornecidos pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) revelam
que, desde Janeiro e até 28 de Dezembro de 2021, a corporação recebeu seis
pedidos de cancelamento de autorização de residência efectuados por portugueses.
Em 2019 tinham sido três os pedidos e em 2020 contaram-se apenas dois.
Pressão psicológica “muito grande”
A
presidente da Casa de Portugal, Amélia António, mostrou-se preocupada com o
facto de muitos portugueses estarem a sair de Macau. “Sei que há um número, de
facto elevado, de pessoas a sair, umas que já saíram, outras que eventualmente
sairão no fim do ano lectivo. Penso que sobretudo há uma pressão psicológica
muito grande, há muita gente que está stressada, enervada, deprimida”, apontou em
declarações à Tribuna de Macau.
As
razões são variadas e diferem de pessoa para pessoa. Amélia António
enumerou-as: muitos têm família fora que estão habituados a acompanhar de forma
mais próxima, algo que não conseguem fazer neste momento; outros têm família em
Portugal com pessoas de muita idade e têm receio do que possa acontecer; há
quem já tenha tido pessoas doentes e queira estar com elas enquanto lhes podem
ser úteis e dar alguma assistência; outros têm filhos que estão a chegar ao fim
do ensino secundário e vão optar pela entrada numa universidade no exterior,
pelo que não querem ficar afastados deles; outros sentem-se “muito deprimidos”
pelo facto de não verem horizonte de quando podem ter liberdade de movimento.
“Acho
que fundamentalmente as razões estão ligadas à pandemia”, disse Amélia António,
acrescentando que, por exemplo, no sector da comunicação social também houve
algumas pessoas a sair, mas que “não constituem a maioria dos portugueses que
têm saído”.
“É
evidente que as regras que a pandemia ditou têm estado a dar cabo do estado de
espírito e da saúde mental de muitas pessoas. As pessoas sentem uma grande
limitação. Esta limitação é sentida de forma muito intensa porque se aguentaram
bem, mas, entretanto, passaram dois anos e houve até agravamento de algumas
medidas. Portanto, isto começa a ter, de facto, um efeito muito grande sobre as
decisões e cabeça das pessoas”, sublinhou.
Amélia
António disse olhar para este cenário “com muita preocupação em muitos
aspectos”. Sublinhando que há pessoas que estão a sair que são qualificadas,
defendeu que o fenómeno constitui uma “diminuição” para a RAEM. “Macau perde
uma pessoa que lhe dava um contributo importante, a comunidade perde também
alguém que tinha peso como membro da comunidade portuguesa, e, portanto, são
perdas de todas as formas. Cada vez que vejo sair alguém nestas circunstâncias,
fico preocupada e triste até porque, com a situação actual, à medida que essas
pessoas saem, não podem ser substituídas. É sempre Macau que fica mais pobre”,
prosseguiu.
Questionada
sobre se acredita que após a pandemia estes quadros qualificados poderão vir a
ser substituídos, Amélia António mostrou-se optimista, apontando que haverá
sectores que “eventualmente renascerão” se as coisas voltarem à normalidade.
“Acredito que há condições para se continuar a ter uma presença muito positiva
e fortalecer a comunidade assim que as condições o permitam”, considerou.
Já
sobre a eventual perda da presença da cultura portuguesa no território, a
também advogada disse que é “um risco grande”, mas defendeu que tudo está nas
mãos dos portugueses que ficam.
Envio de carga com “aumento significativo”
O
aumento dos pedidos de envio de carga por via marítima por parte de portugueses
para o país de origem é também sinal de que a comunidade está a encolher. Paulo
Moreira trabalha na “World Freight Logistics” há quatro anos – mas não é “novo”
no território. Já tinha estado em Macau nos anos 90 a trabalhar no mesmo ramo e
na mesma empresa.
“Posso
dizer que desde que cá estou há quatro anos, 2020 e 2021 foram os anos com mais
movimento a nível de envio de bens pessoais”, apontou. Paulo Moreira sublinhou
que o “aumento significativo” aconteceu não só para Portugal, como também para
outros destinos.
“Claro
está que todos estes movimentos não têm nada que ver com os movimentos da
década de 90, com a passagem de soberania. Não há sequer termos comparativos.
Mas obviamente no ano passado houve um aumento significativo”, sublinhou.
Segundo
os dados disponibilizados a este jornal, em 2021 houve 31 envios de bens por transporte
marítimo na “World Freight Logistics”, num total de 600 metros cúbicos. No ano
anterior, cidadãos portugueses fizeram 21 envios, envolvendo um total de 394
metros cúbicos.
Neste
caso, um envio “oficial” de um contentor não quer dizer obrigatoriamente que
envolva um agregado familiar. “É comum um jogo de documentos conter na
realidade os bens de mais do que um agregado familiar. Tal acontece, quando
possível, por uma questão de optimização dos custos de transporte. Assim, por
exemplo, os 31 documentos de embarque para Portugal representarão talvez mais
de 50 agregados familiares a enviar bens para esse destino”, explicou Paulo
Moreira à Tribuna de Macau.
Quanto
ao período do Natal, em 2020 houve apenas um envio (28 metros cúbicos),
enquanto em 2021 foram nove (num total de 200 metros cúbicos).
Se
olharmos para 2019, foram feitos 30 envios (690 metros cúbicos) – um número não
muito diferente do de 2021. “Uma das possíveis explicações que encontro para
isso é que, de 2019 para 2021, os valores de transporte tiveram aumentos
superiores a 125%. Acredito que houve muita gente que simplesmente desistiu de
enviar bens ou tentou outras hipóteses – por exemplo, reduzir os bens ao máximo
e enviar por encomenda postal”, apontou Paulo Moreira.
Neste
momento, os valores tendem a não aumentar, mas ainda estão muito acima dos
níveis pré-pandémicos. Paulo Moreira apontou que o que se espera do mercado é
que a partir de agora – se não houver mais nenhuma crise – comecem a “descer
consideravelmente”, na ordem dos 30%, 40% ou 50%.
Paulo
Moreira deu ainda conta de que os tempos mudaram e actualmente as pessoas
enviam muito menos mobília, além de que os mais jovens são mais “desapegados” e
por isso a quantidade de bens que seguem daqui é inferior. “Antigamente,
qualquer agregado familiar que se fosse embora de Macau e tivesse cá estado
quatro ou cinco anos tinha de levar quase o recheio completo de uma casa, hoje
não é necessário porque a maioria das casas estão mobiladas. O volume é sem
dúvida muito menor”, explicou.
Neste
sentido, houve inclusive quem tenha abandonado Macau sem efectuar qualquer
envio de bens por via marítima. É o caso de Ana Ferreira, que se desfez da
maior parte das coisas que tinha ou deixou-as com amigos.
Apesar
de a “World Freight Logistics” ser o transitário em Macau com mais anos a
servir especificamente a comunidade portuguesa, Paulo Moreira ressalva que há
outras companhias no ramo e que não tem noção de que percentagem do mercado
português serve.
Os
tempos normais de trânsito rondam os 50 dias – no Verão, alongaram-se para
entre 110 a 120 dias. Porém, nesta altura já estão “mais normalizados”. Do
outro lado do mundo, no entanto, Catarina Cabeçadas continua ainda à espera dos
bens que deveriam ter saído de Hong Kong em Novembro do ano passado. Catarina
Pereira – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”
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