Com uma laboriosa produção criativa, mesmo durante a clausura pandémica, os trabalhos de José Drummond saíram do estúdio numa escala maior do que a habitual, mas mantendo as tensões e dicotomias que caracterizam o seu trabalho. O HM falou com o artista português radicado em Xangai, que tem trabalhos expostos em Foshan e Changsha, conquistando cada vez mais um espaço único no mundo artístico da imensa China
Actualmente, tem dois projectos expostos em duas cidades,
Foshan, na província de Guangdong e Changsha, na província de Hunan. Pode
fazer-nos uma breve apresentação destes trabalhos?
As
duas instalações têm características formais relativamente diferentes. Uma está
inserida num espaço interior, outra num espaço público exterior. Uma é uma
caixa preta de um espaço museológico, e que funciona um pouco de uma forma
transgressiva porque propõe a existência de um espaço dentro de um outro
espaço.
Vamos por partes. Como caracteriza a obra exposta no Xie
Zilong Museum, em Changsha, “The Dream Of The Red Chamber”?
Tenho
trabalhado bastante com luz e com néons e para este espaço a minha proposta
andou à volta de um sentido algo híbrido. O néon principal, que é uma espécie
de um labirinto fechado tem uma imagem que faz lembrar motivos chineses e
microchips de computador. A peça tem uma série de ambivalências ligadas entre
si, em reflexo ao néon central na parede principal. Existe também um LED preto
e vermelho, muito característico de restaurantes e lojas chinesas. Em geral,
servem para vender um produto qualquer e aquilo que eu fiz é algo de
disruptivo. O produto que estou a vender ali é uma citação do livro que dá o
título à peça: “The Dream of the Red Chamber”, um dos quatro clássicos
chineses. A citação, que aparece em chinês, traduzida seria algo como “a
verdade torna-se ficção, quando a ficção é verdade e o real torna-se irreal
quando o irreal se torna real”.
Uma dicotomia quase existencialista.
São
coisas que trabalho há bastante tempo, estas bipolaridades, estes binómios de
opostos. Para completar a instalação existe uma frequência sonora, que inunda o
espaço e acaba por envolver os visitantes. Essa frequência sonora é a chamada
Ressonância Schumann, que corresponde à frequência do planeta Terra, à
frequência mais intensa e interior, uma frequência de 7,83 Hz. Curiosamente
corresponde também à frequência que o nosso cérebro emite quando sonhamos.
Porquê introduzir um elemento sonoro?
Foi
importante inserir este elemento, porque acredito que está tudo ligado, o mundo
não é composto por partes diferentes. Nesse sentido, esta correspondência entre
o cérebro humano e o coração da Terra fez todo o sentido. Também permite ao
visitante, dentro da instalação, entrar num sentido mais hipnótico de labirinto
fechado, neste binómio entre a verdade e a ficção, entre o real e o irreal.
Tudo isso acaba por compor, no final, uma espécie de espaço que não é só de
contemplação, mas também uma mediação entre o presente e uma realidade
alternativa, que surge quando temos a possibilidade de parar e sentir coisas.
Tenho usado muito a expressão “templo pós-humano” para caracterizar este
caminho que os meus trabalhos têm seguido mais recentemente.
Esse conceito especulativo é algo curioso. Podia alargar
esse conceito?
Os
meus trabalhos sempre foram um pouco existencialistas num sentido beckettiano,
com algum absurdismo. Mas recentemente tenho-me interessado mais por um certo
lado do budismo, é algo que tem tomado mais forma. Existe aqui qualquer coisa,
qualquer sugestão. O meu trabalho não se livra de referências ao mundo da arte,
especialmente em instalação, aí é ainda mais óbvio. Estas referências existem
para criar algum desafio, alguma disrupção, até porque acredito que os
trabalhos devem ser autossuficientes. Ou resultam ou não, não precisam
necessariamente de trazer muitas coisas atrás. Mas voltando a esse ponto do
templo pós-humano. Penso que estamos a atingir um momento muito interessante na
nossa civilização, em que começamos cada vez mais a funcionar por meios
digitais. Temos inteligência artificial a simular muitas coisas. Apesar de o
meu trabalho ser contemporâneo, e ter estas referências todas do passado da
arte contemporânea ligada ao conceptualismo e ao minimalismo, inclui elementos
que o levam para um lado retro-futurista, ciberpunk, porque é especulativo, tem
uma ambição que já ultrapassa a própria vivência neste tempo presente.
O nosso tempo de vida, enquanto espécie.
Fala-se
muito das alterações climáticas e do ambiente. Obviamente que é preocupante,
todos deveríamos tentar fazer mais neste capítulo, mas se olharmos para a
história do planeta Terra, para o que aconteceu nos últimos 50 anos, isto na
história do planeta são duas horas na nossa vida. Não significa muito. Encontro
aqui paradigmas que são interessantes para mim. É uma existência irrelevante
quando encaramos no big picture. Possivelmente, aquilo que as alterações
climáticas vão potenciar cada vez mais é exactamente a não existência de
humanos, porque o planeta vai continuar a existir. Sabemos que tudo isto é
cíclico.
Até quando estará patente este trabalho em Changsha?
Esta
instalação está aberta ao público até 19 de Fevereiro.
Passando para a instalação patente num parque público no
distrito de Nan Hai, em Foshan. Até quando pode ser visitada? E como surgiu
este projecto?
A
instalação vai estar no parque até 16 de Abril. Em termos de referências, há
quem mencione o Dan Graham e no “2001, Odisseia no Espaço”. Mas a ideia para o
projecto nasceu de uma coisa mínima, uma moeda antiga chinesa. Estas moedas têm
em si duas formas infinitas, o quadrado e o círculo. Foi a partir daí que,
entretanto, surgiu esse trabalho. Do meio do círculo sai o monólito. O círculo
poderá ter mais a ver com land art, com o Richard Long, por exemplo. Na
realidade, a ideia de criar o monólito em espelho vive comigo desde meio dos
anos 90, mas nunca tive oportunidade de o fazer, e agora, por alguma razão,
voltou quando me lançaram o desafio de participar nesta exposição de arte
pública. Obviamente, o “2001” contém a ideia de pós-humano, de um espaço de mediação
entre a ilusão e a realidade, é uma referência que tem a ver, claro. Não foi,
no entanto, o ponto de partida. O começo partiu do espaço entre culturas e as
antigas moedas chinesas.
Como foi a produção deste projecto?
Este
trabalho deu-me bastante gozo a preparar, levou seis meses até ser concluído.
Combina o conceito de monólito, uma estrutura muito rígida, enquanto que o
círculo que está na sua base tem uma estrutura mais orgânica e flexível. Só
combinar esse monólito com a ideia do jardim budista com pedras, onde as
pessoas podem passear, interessou-me também como uma metáfora entre sistemas
organizados e com sistemas flexíveis, apesar de o trabalho não ser sobre isso.
Nomeadamente, o sistema político, que é extremamente organizado e funciona, na
maior parte das vezes, como um monólito, e o círculo, as pedras onde podemos
passear, que podem ser as pessoas. Mas, essencialmente, a intenção foi criar um
espaço de contemplação, de meditação, um espaço para parar e esquecer,
momentaneamente, o presente.
Apesar da rigidez geométrica, o monólito reflecte pessoas
no espaço público.
No
fundo, interessava-me que esta instalação fosse um objecto que dentro do seu
minimalismo pudesse criar a ilusão entre invisível e visível. A questão de se
olhar para uma paisagem, mas depois ter um elemento que interfere e reflecte a
sua parte. Assim como, tornar visível aquilo que é invisível ao olhar, ao mesmo
tempo omitir aquilo que está por trás dessa linha visual que existe.
Podemos afirmar que sai da pandemia, colocando a
constante emergência sanitária no passado, em pleno de vigor criativo. O
período da pandemia foi de acumulação de trabalhos?
Durante
a pandemia não parei de trabalhar no estúdio. Mas há aqui um factor
interessante, porque me perguntou sobre vigor, que tem a ver com a escala.
Estes dois trabalhos, especialmente o último com cinco metros de altura, têm
uma escala considerável. A escala no meu trabalho mudou com estas duas
instalações, era algo que já tinha a tentação de experimentar, e que finalmente
tive a oportunidade de fazer. Uma escala maior permite criar este tipo de
narrativa sobre espaços, sobre os templos pós-humanos, estes espaços de
mediação entre o tempo e o humano, entre o tempo presente e o tempo do sonho.
Tudo isso não existe quando estamos a falar de uma fotografia, ou de uma coisa
bidimensional.
O aumento de dimensões é algo que já entrou no seu
processo criativo?
Tenho
inúmeros projectos diferentes e todos eles são instalações com uma escala
considerável. Apesar de a maior parte estar ainda em fase de projecto, se tiver
oportunidade para continuar a fazer coisas, esta será provavelmente a área que
me interessa mais prosseguir neste momento. João Luz – China in “Hoje
Macau”
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