“Traduzir-se”
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Ferreira Gullar –
Brasil
In “Na
vertigem do dia” (1980, Editora Companhia das Letras)
____________
Poeta
e homem de letras brasileiro, Ferreira Gullar nasceu com o nome de José
Ribamar Ferreira a 10 de setembro de 1930 na cidade de São Luís, a capital do
estado do Maranhão, e morreu a 4 de dezembro de 2016, no Rio de Janeiro. Filho
de um comerciante e irmão de dez outras crianças, iniciou os seus estudos aos
sete anos de idade no Jardim Decroli. A partir dos nove passou a receber
educação formal através de professores particulares e, mais tarde, foi inserido
num colégio, de onde fugiu eventualmente.
Na
tentativa de mitigar o problema disciplinar da criança, os pais tomaram a
decisão de a matricular, em 1941, no Colégio de São Luís de Gonzaga. Remediando
o seu comportamento, manteve-se um aluno recomendável durante algum tempo. Não
obstante o facto de ter sido admitido depois no Ateneu Comercial Teixeira
Mendes com honras e louvores, tornou a dispersar-se, reprovando um ano.
Transferiram-no então para a Escola Técnica de São Luís, instituição de ensino
menos exigente e mais liberal.
Foi
salvo pela descoberta da poesia: apaixonando-se com apenas treze anos de idade
por uma vizinha, renunciou ao companheirismo das brincadeiras de criança para
se encafuar nas bibliotecas públicas, em busca de inspiração para a feitura dos
seus versos de amor. Passou em consequência a obter resultados excecionais na
disciplina de Português, graças sobretudo ao seu talento para as composições.
Terminou
o ensino secundário em 1948, ano em que não só publicou o seu primeiro poema
num jornal local, como começou também a trabalhar, quer como locutor
radiofónico quer como colaborador num outro órgão da comunicação social. No ano
seguinte publicou o seu primeiro livro, uma coletânea de poemas intitulada Um
Pouco Acima do Chão (1949).
Em
1950 foi testemunha de um acontecimento trágico. Durante um comício de um
candidato contra o regime de ditadura, assistiu ao assassinato de um operário
durante uma carga policial. Recusando-se a ler a notícia ao microfone da rádio
estatal em que trabalhava, foi despedido, mas logo convidado a juntar-se à
digressão eleitoral do político em questão. Ainda em meados do mesmo ano, saiu
vencedor de um concurso literário de relevo.
Sabendo-se
persona non grata pelas autoridades do Maranhão, decidiu mudar-se para o Rio de
Janeiro em 1951. Passou a colaborar com diversas publicações, não só como
redator, mas também na qualidade de revisor. Contraindo depois o bacilo da
tuberculose, foi obrigado a um período de convalescença de cerca de três meses.
Em
1954 publicou uma das suas obras mais conhecidas, a compilação de poemas Luta
Corporal e, em 1959, deu um passo importante ao surgir com o Manifesto
Neo-Concreto, no qual procurava qualificar a sua própria poesia.
Juntando-se a alguns artistas plásticos, chegou a apresentar instalações
interactivas, combinando a palavra com a pintura e a escultura.
Em
1961 foi nomeado diretor da Fundação Cultural de Brasília e, no âmbito das suas
funções, iniciou a construção do Museu de Arte Popular. No ano seguinte
publicou João Boa-Morte, Cabra Marcado Para Morrer (1962) e Quem
Matou Aparecida (1962).
Tomando
contacto com o movimento estudantil brasileiro, foi gradualmente radicalizando
as suas opiniões políticas até que, em 1964, se afiliou no Partido Comunista.
Preso pelos esbirros da ditadura em 1968, juntamente com Gilberto Gil e Caetano
Veloso, partiu para o exílio em 1971, primeiro rumo à ex-União Soviética, logo
para Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires. Regressando ao Brasil apenas em
meados de 1977, foi preso novamente. Liberto após muitas e demoradas
diligências tomadas por parte dos seus amigos, Ferreira Gullar pôde retomar as
suas actividades poéticas e jornalísticas.
Após o
aparecimento das obras compostas no exílio e, muitas delas impressas no
estrangeiro, como Dentro da Noite Veloz (1975) e Poema Sujo
(1976), o autor publicou Na Vertigem do Dia (1980), Barulhos
(1987), O Formigueiro (1991) e Muitas Vozes (1999), entra outras
de diversos géneros.
Em
1992 foi nomeado director do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura, cargo que
ocupou até 1995. A sua vida e a sua obra foram muitas vezes agraciadas, tendo
sido homenageado com vários prémios literários internacionais, com particular
destaque para o Prémio Príncipe Claus da Holanda e para o Prémio Camões, em
2010. In “Wook”
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