Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Estados Unidos da América - Mamdani e a crise identitária judaica

Alguma coisa importante parece estar acontecendo no equilíbrio de forças internacionais, menos sorrateira e mais avançada que o aumento do volume das águas oceânicas e a invasão dos continentes em consequência da mudança climática. Tanto uma como outra poderão significar importantes mudanças estruturais no mundo de hoje.


O sinal mais evidente e mais recente foi a eleição de Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova Iorque com o apoio, calculado em 30%, da comunidade judaica novaiorquina, embora Mamdani seja abertamente antissionista. A guerra de Israel contra Gaza, depois do ataque terrorista do Hamas do 7 de outubro, teria provocado divergências geracionais entre os jovens, dentro da comunidade judaica, com evidentes sinais de questionamento identitário.

Paralelamente, retornou no mundo e com força o antissemitismo do passado, enquanto passou a ser questionada a própria existência de Israel pelos jovens estudantes das principais universidades americanas e europeias. O lema bastante difundido "do rio ao mar", não defende a existência de um Estado palestino convivendo ao lado de Israel, mas sua destruição pregada pelo Hamas.

A controvertida tese de um genocídio cometido por Israel contra os palestinos de Gaza acabou sendo aceita também pela metade da população judaica nos EUA de 18 a 34 anos e por 60% dos jovens judeus norte-americanos não religiosos. A informação é de Sebastien Levy, vice-presidente da secção novaiorquina da associação judaica J Street, próxima dos democratas. Segundo ele, muitos jovens judeus decepcionados com a política de Netanyahu, manifestaram também nos campus universitários contra Israel.

Nova Iorque não é os Estados Unidos, mas a vitória de Mamdani poderá levar os democratas a reforçarem seus valores de esquerda defendidos por Bernie Sanders. Não chegará nem perto das teses defendidas na França pelo partido de extrema-esquerda de Mélenchon, antissionista e pró Hamas, mas poderá se distanciar de Israel, que se enfraquecerá e não terá o mesmo apoio em armamentos dos EUA, no caso de um retorno dos democratas ao poder depois de Trump.

Os judeus franceses também se inquietam diante da vitória de Mamdani -muçulmano xiita favorável ao boicote de Israel - em Nova Iorque, cidade onde vive o maior número de judeus da diáspora. O Canal Mosaique entrevistou, no Youtube, o escritor Daniel Bensoussan-Bursztein, para ter uma análise da situação.

Assim descobrimos a influência de Edward Said, pai da teoria do pós-colonialismo, sobre Mamdani, pois Said era colega de seu pai, Mahmood Mamdani, na Universidade de Colúmbia, onde ambos eram professores e amigos. Em duas oportunidades, Mamdani deixou pairar a dúvida, num debate antes das eleições, sobre o direito à existência de Israel e, num podcast, sobre uma globalização da intifada. Mas sempre defendeu os palestinos na questão de Gaza.

Para Daniel Bensoussan o governo de Netanyahu decepcionou muitos líderes judeus norte-americanos que se tornaram anti-sionistas como a militante Simone Zimmerman, que se tornou também contra o Estado de Israel. É também o caso de Judith Butler, do movimento "woke", que não condenou o 7 de outubro. Isso poderá levar a uma ruptura de uma grande parte da comunidade judaica dos EUA com Israel. O movimento J Street, sionista de esquerda, é pelo boicote de armas para Israel, exceto as necessárias para sua defesa aérea e terrestre.

Nesta altura, depois de enfatizar a crise identitária na juventude judaica novaiorquina revelada na eleição de Zohran Mamdani, num mundo onde o Sul Global e o pós-colonialismo podem rever valores conquistados em termos de liberdade, democracia, laicidade, talvez valha a pena buscar a visão sociológica e política de uma pensadora "goim", não judaica, francesa da Córsega, Renée Fregosi, socialista e feminista, professora na Sorbonne.

Seu último livro – O Sul Global sem rumo, Entre descolonialismo e antissemitismo - foca justamente as contradições do novo pensamento da esquerda que, em outros textos aqui no Observatório da Imprensa, qualificamos de islamizada, indiferente ao fato do Sul Global ter na sua liderança ditaduras e teocracias, nas quais não são prioritários os direitos femininos, a questão de gênero e a laicidade. O retorno do velho antissemitismo, mascarado muitas vezes de antissionismo não revela também uma crise identitária no pensamento da esquerda?

Renée Fregosi, numa longa entrevista ao mesmo Canal Mosaique, se pergunta sobre o aumento do antissemitismo no mundo, sem ignorar a crise de Gaza, e por que a questão palestina se tornou o centro das preocupações das opiniões ocidentais, mostrando uma permeabilidade da esquerda ocidental ao "palestinismo". E Mosaique resume a resposta de Fregosi: "por ter substituído a luta de classes pela de raças, a esquerda se juntou ao combate do movimento islâmico embora oposto aos ideais emancipadores do socialismo".

Citando no seu livro, uma conferência de Eliezer Cherki sobre As concepções políticas do Islão, Renée Fregosi, enfatiza o conceito guerreiro islâmico de um mundo a ser conquistado e submetido. Um livro essencial para se entender e combater o antissemitismo dos nossos dias. Rui Martins – Suíça

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

 

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