Alguma coisa importante parece estar
acontecendo no equilíbrio de forças internacionais, menos sorrateira e mais
avançada que o aumento do volume das águas oceânicas e a invasão dos
continentes em consequência da mudança climática. Tanto uma como outra poderão
significar importantes mudanças estruturais no mundo de hoje.
O sinal mais evidente e mais recente foi a eleição de
Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova Iorque com o apoio, calculado em 30%,
da comunidade judaica novaiorquina,
embora Mamdani seja abertamente antissionista. A guerra de Israel contra Gaza,
depois do ataque terrorista do Hamas do 7 de outubro, teria provocado
divergências geracionais entre os jovens, dentro da comunidade judaica, com
evidentes sinais de questionamento identitário.
Paralelamente, retornou no mundo e com força o
antissemitismo do passado, enquanto passou a ser questionada a própria
existência de Israel pelos jovens estudantes das principais universidades
americanas e europeias. O lema bastante difundido "do rio ao mar",
não defende a existência de um Estado palestino convivendo ao lado de Israel,
mas sua destruição pregada pelo Hamas.
A controvertida tese de um genocídio cometido por Israel
contra os palestinos de Gaza acabou sendo aceita também pela metade da
população judaica nos EUA de 18 a 34 anos e por 60% dos jovens judeus norte-americanos
não religiosos. A informação é de Sebastien Levy, vice-presidente da secção
novaiorquina da associação judaica J Street, próxima dos democratas. Segundo
ele, muitos jovens judeus decepcionados com a política de Netanyahu,
manifestaram também nos campus universitários contra Israel.
Nova Iorque não é os Estados Unidos, mas a vitória de
Mamdani poderá levar os democratas a reforçarem seus valores de esquerda
defendidos por Bernie Sanders. Não chegará nem perto das teses defendidas na
França pelo partido de extrema-esquerda de Mélenchon, antissionista e pró
Hamas, mas poderá se distanciar de Israel, que se enfraquecerá e não terá o
mesmo apoio em armamentos dos EUA, no caso de um retorno dos democratas ao
poder depois de Trump.
Os judeus franceses também se inquietam diante da vitória
de Mamdani -muçulmano xiita favorável ao boicote de Israel - em Nova Iorque,
cidade onde vive o maior número de judeus da diáspora. O Canal Mosaique
entrevistou, no Youtube, o escritor Daniel Bensoussan-Bursztein, para
ter uma análise da situação.
Assim descobrimos a influência de Edward Said, pai da
teoria do pós-colonialismo, sobre Mamdani, pois Said era colega de seu pai,
Mahmood Mamdani, na Universidade de Colúmbia, onde ambos eram professores e
amigos. Em duas oportunidades, Mamdani deixou pairar a dúvida, num debate antes
das eleições, sobre o direito à existência de Israel e, num podcast, sobre uma
globalização da intifada. Mas sempre defendeu os palestinos na questão de Gaza.
Para Daniel Bensoussan o governo de Netanyahu decepcionou
muitos líderes judeus norte-americanos que se tornaram anti-sionistas como a
militante Simone Zimmerman, que se tornou
também contra o Estado de Israel. É também o caso de Judith Butler, do
movimento "woke", que não condenou o 7 de outubro. Isso poderá levar
a uma ruptura de uma grande parte da comunidade judaica dos EUA com Israel. O
movimento J Street, sionista de esquerda, é
pelo boicote de armas para Israel, exceto as necessárias para sua defesa aérea
e terrestre.
Nesta altura, depois de enfatizar a crise identitária na
juventude judaica novaiorquina revelada na eleição de Zohran Mamdani, num mundo
onde o Sul Global e o pós-colonialismo podem rever valores conquistados em
termos de liberdade, democracia, laicidade, talvez valha a pena buscar a visão
sociológica e política de uma pensadora "goim", não judaica,
francesa da Córsega, Renée Fregosi, socialista e feminista, professora na
Sorbonne.
Seu último livro – O Sul Global sem rumo, Entre descolonialismo
e antissemitismo - foca justamente as contradições do novo pensamento da
esquerda que, em outros textos aqui no Observatório da Imprensa, qualificamos
de islamizada, indiferente ao fato do Sul Global ter na sua liderança ditaduras
e teocracias, nas quais não são prioritários os direitos femininos, a questão
de gênero e a laicidade. O retorno do velho antissemitismo, mascarado muitas
vezes de antissionismo não revela também uma crise identitária no pensamento da
esquerda?
Renée Fregosi, numa longa entrevista ao mesmo Canal Mosaique, se
pergunta sobre o aumento do antissemitismo no mundo, sem ignorar a crise de
Gaza, e por que a questão palestina se tornou o centro das preocupações das
opiniões ocidentais, mostrando uma permeabilidade da esquerda ocidental ao
"palestinismo". E Mosaique resume a resposta de Fregosi: "por
ter substituído a luta de classes pela de raças, a esquerda se juntou ao
combate do movimento islâmico embora oposto aos ideais emancipadores do socialismo".
Citando no seu livro, uma conferência
de Eliezer Cherki sobre As concepções políticas do Islão, Renée Fregosi,
enfatiza o conceito guerreiro islâmico de um mundo a ser conquistado e
submetido. Um livro essencial para se entender e combater o antissemitismo dos
nossos dias. Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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