Novo
livro de Waldecy Tenório reúne personagens extraídos de grandes clássicos da
literatura mundial
I
Uma
obra que, segundo o seu autor, é fruto de um encontro de muitos livros, autores
e personagens é com o que o leitor vai se deparar em De pulchro et
apto: O Manuscrito Perdido de Santo Agostinho
– A tese que virou romance (Curitiba, Artêra
Editorial/Appris Editorial, 2025), do jornalista e professor Waldecy Tenório.
Publicado
em primeira edição em 2019 pela Desconcertos Editora, de São Paulo, o livro,
resultado de um projeto inicial para uma tese de livre-docência, foi totalmente
reescrito e revisado, inclusive com alteração do título que ganhou as palavras De
pulchro et apto, que querem dizer “o belo e o conveniente”
e intitulariam o manuscrito desaparecido do teólogo e filósofo Aurélio Agostinho
de Hipona (354-430), o Santo Agostinho, bispo de Hipona, cidade da província
romana da África, considerado o inventor da autobiografia, cujas obras foram
decisivas para o desenvolvimento do cristianismo em seus primeiros tempos.
Como
o autor explica no texto de apresentação, a obra partiu da fascinação que ele sempre
teve pela personagem La Maga, do romance Rayuela, do argentino Julio
Cortázar (1914-1984), e por Ludmila, leitora-personagem de Se um viajante
numa noite de inverno, do jornalista e escritor
italiano Ítalo Calvino (1923-1985). Foi a partir do encontro com La Maga,
através da leitura de Rayuela, que Tenório sentiu a necessidade de
escrever a obra. E, para tanto, também foi decisiva a ajuda de Jules Maigret, o
lendário comissário da Securité Française e personagem dos livros
do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), para descobrir a pista do
manuscrito nas entrelinhas de Confissões, de Santo Agostinho, e de O
nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco
(1932-2016), obra lançada em 1980.
Mas,
como observa o autor, este livro é resultado de muitas leituras e de seu
fascínio por autores como Homero (928a.C-898a.C), Shakespeare (1564-1616),
Dostoiévski (1821-1881), Edgar Allan Poe (1809-1849), James Joyce (1882-1941),
Virginia Woolf (1882-1941), Milan Kundera (1929-2023), Rolland Barthes
(1915-1980), Jorge Luis Borges (1899-1986), Clarice Lispector (1920-1977), João
Cabral de Melo Neto (1920-1999) e outros. Sem contar um personagem do filme Meia-noite
em Paris, de Woody Allen, e o gato que aparece na poesia de
Stéphane Mallarmé (1842-1898) sempre associado à contemplação e à indolência e que
está citado em determinado parágrafo.
Por
aqui, já se vê que o autor se trata de um voraz e erudito leitor que procura
passar para as páginas as sensações que teve ao conhecer tantos e tão finos mestres.
Além dessa fascinação por autores clássicos da literatura mundial e brasileira
que o tem tornado um pesquisador de mão-cheia, o que se destaca também na obra
é o seu amplo conhecimento de temas ligados à teologia, a ciência que estuda
Deus, as divindades e o sagrado, ainda que ele faça questão de se autodefinir,
com ironia, como “um teólogo charlatão”.
II
Narrado
em primeira pessoa, mas permeado por diálogos, O Manuscrito Perdido
de Santo Agostinho pode ser definido como um monólogo
interior livre, já que as personagens não seriam pessoas normais, saídas do dia
a dia, mas inspiradas em protagonistas de livros atentamente lidos e relidos,
ou seja, personagens de ficção. Se pode ser definido como monólogo interior, o
que se deve concluir é que as observações e os diálogos não passam de fluxo de
consciência, funcionando como um solilóquio, já que o protagonista parece falar
consigo mesmo e com personagens tirados de obras ficcionais, vivendo muitas
vidas através dos livros.
Isso
não quer dizer que esteja ausente o “eu” do autor, embora este se posicione
atrás do narrador que leva o nome de Gabriel Blue. Pelo contrário, o
protagonista não deixa de homenagear um antigo colega de redação do jornal O
Estado de S. Paulo, o jornalista e escritor Lourenço
Dantas Mota, organizador de Introdução ao Brasil – um
banquete nos trópicos (São Paulo, Editora Senac, 1999) e
de outras obras, filho de Dantas Motta (1913-1974), “o poeta de Aiuruoca”,
amigo íntimo de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Enfim,
o autor também não deixa de agir como poeta ao voltar-se para dentro de si e do
mundo psíquico erguido com suas infinitas leituras de grandes obras. Nesse
caso, atua como o protagonista típico do romance lírico, em que “o narrador e a
personagem se combinam para criar um “eu” no qual a experiência é moldada como
imagens”, repetindo-se aqui o que o professor Massaud Moisés (1928-2018)
observou a respeito do romance A Paixão Segundo G.H.
(1964), de Clarice Lispector, em A Criação Literária – Prosa
II (São Paulo, Editora Cultrix, 2015, pp. 49/50), ao citar frase
do autor norte-americano (nascido na Alemanha) Ralph Freedman (1920-2016), extraída
de The Lyrical Novel (Princeton, Princeton University
Press, 1966, p. 31).
É
o que se pode comprovar com a leitura deste parágrafo que marca a abertura do
capítulo III, dedicado à Cidade-Luz:
“Em Paris, fomos ao encontro de Maigret, La Maga nos levou
primeiro para um passeio pela parte da cidade que chama de “minha Paris
mítica”, onde conheceu Cortázar. Pensei no Recife mítico de Manuel Bandeira,
mas ela não me deixou pensar, queria entrar logo no clima de Rayuela, rever a
Pont des Arts, onde ficava horas debruçada sobre o parapeito contemplando a
água e pensando em se atirar no rio. Tão romântico morrer no Sena. Queria rever
Montparnasse, passar em livrarias, tomar café no bar do Louvre, enfim andar
“por uma Paris fabulosa deixando-se levar pelos signos da noite”, como fazia
quando morava por lá”.
Em
outro capítulo (todos sempre breves), Gabriel Blue, alter ego de
Tenório, carrega La Maga, Ludmila e o comissário Maigret para conhecer Olinda,
cidade em que o autor viveu sua mocidade, fazendo-os subir e descer suas
ladeiras, olhar o mar e entrar no Mosteiro de São Bento e na Sé. Depois,
conviveu com eles nos bares à beira-mar, entre copos de cerveja e aguardente,
jogando conversa fora, sem deixar de falar de livros e mais livros, num diálogo
muitas vezes interrompido pelo som dos trompetes e tambores do famoso Galo da
Madrugada, bloco que ensaiava nas ruas para o carnaval que se aproximava.
III
Em
resumo, a ideia que permeia a obra é que haveria determinados livros tão
inventivos que mereceriam ter continuidade, talvez para que se pudesse decifrar
alguns enigmas ou mesmo conhecer os anos de senectude de personagens das quais
só conhecemos os tempos de juventude. Nesta obra, o que move o autor ou o seu alter
ego é saber que fim teria levado aquele manuscrito medieval que poderia
ter sido confiscado por autoridades eclesiásticas ou permanecido escondido ou
perdido em alguma biblioteca daquele tempo ou ainda roubado por traficantes ou
mesmo destruído por algum incêndio ou por alguma alma enlouquecida.
Não
se vai aqui contar o desfecho para que o leitor não perca o prazer de
encontrá-lo, mas o que se pode adiantar é que a obra ratifica a ideia de que há
livros que mereceriam uma continuação, ideia que está implícita no conto
“Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges, que consta do livro Ficções
(1944), mas que foi originalmente publicado na revista argentina Sur, edição
de maio de 1939.
IV
Para
Júlio Pimentel Pinto, professor livre-docente do Departamento de História da
Universidade de São Paulo (USP) e ex-colega de Tenório no corpo docente da
Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, o autor, “esse pequeno
deus, merece mesmo elogios”, observando que “escrever um livro inteiro baseado
em diálogos não é coisa de principiante”. Em linguagem coloquial, o professor
dirige-se diretamente ao alter ego do autor e define a obra com
perspicácia:
“(...) Você amou e
fez o que quis. Exasperou seus amigos e exasperou o leitor, que, poucas páginas
adiante, estará imerso na leitura e, vá lá, até um tanto embriagado com o
texto. Tudo isso apenas porque você não se conformou com o desaparecimento de
um livro, nem com o desfecho do mais conhecido romance de Umberto Eco. Você, a
princípio, mero e recente personagem, impôs-se a personagens muito mais
conhecidos, impôs-se a seu autor, impôs-se como autor”.
Já
no texto de uma das abas do livro, o jornalista e cientista social Faustino da Rocha
Rodrigues, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), ressalta
que, ao recorrer a tantos personagens livrescos, o autor lhes deu voz,
permitindo que eles comentassem e refletissem sobre as obras das quais fazem
parte. E conclui: “Antes de qualquer coisa, temos em nossas mãos nada mais nada
menos do que literatura. É como trabalhar a ficção dentro da ficção. Uma
literatura da literatura”.
Com
essa definição, com certeza, o leitor não terá mais nenhuma razão para deixar
de conhecer esta obra, que, com certeza, veio para ficar nos anais.
V
Waldecy
Tenório (1933), nascido na cidade de Palmares, em Pernambuco, estudou
Humanidades no Seminário de Olinda, graduou-se em Letras Clássicas e fez
doutoramento em Filosofia na USP. Foi professor no Programa de Estudos
Pós-graduados em Ciências da Religião da PUC, de São Paulo, e assessor do
educador, pedagogo e filósofo Paulo Freire (1921-1997), na Secretaria de
Educação do município de São Paulo (1989-1991), à época da gestão da
prefeita Luiza Erundina.
É
autor também de A Bailadora Andaluza – a explosão do sagrado
na poesia de João Cabral (1996), Escritores, gatos e teologia
(2015), ambos publicados pela Ateliê Editorial, Amor do Herege:
resposta às Confissões de Santo Agostinho
(Paulinas, 1986) e João Alexandre Barbosa: o leitor
insone (Edusp, 2007), em co-autoria com Plínio Martins Filho, editor e
outro grande leitor de livros. Tem ensaios e resenhas publicados em revistas do
Brasil e de Portugal.
Pesquisador
e membro do conselho científico da revista da Associação Latino-Americana de
Literatura e Teologia, foi pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da
USP. Foi redator e editor de várias seções na redação de O Estado
de S. Paulo e, mais tarde, editor-adjunto do suplemento Cultura
deste jornal, além de colaborador da Abril Cultural e da revista Realidade
e coordenador de projetos da Fundação Roberto Marinho. Adelto Gonçalves -
Brasil
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De pulchro
et apto: O Manuscrito Perdido de Santo Agostinho – A tese que virou romance, de Waldecy
Tenório. Curitiba, Artêra Editorial/Appris Editorial, 176 páginas, R$ 49,00, 2025.
Site: www.editoraappris.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São
Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br