Obra
recupera trajetória do historiador Augusto de Lima Júnior e a representação da
Inconfidência Mineira em suas obras
I
A
trajetória de um escritor responsável por uma obra que se tornou referência
obrigatória na historiografia de Minas Gerais é o que o leitor vai encontrar em
Polêmica, patrimônio e arte: a obra de
Augusto de Lima Júnior (Belo Horizonte, Fino Traço
Editora, 2018), de Camila Kézia Ferreira, professora da rede municipal de
ensino de Taubaté-SP e mestre em História pela Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP), com trabalho desenvolvido entre 2014 e 2016.
Dividida
em três partes, a obra reproduz a dissertação de mestrado da professora que recebeu
o título “O passado como patrimônio: a narrativa historiográfica de Augusto de
Lima Júnior”, que contou com a orientação do professor Francisco Eduardo de
Andrade, mestre em História pela UFOP e doutor em História pela Universidade de
São Paulo (USP), autor de A invenção de Minas Gerais:
empresas, descobrimentos e entradas nos sertões
do ouro da América Portuguesa – 1680-1822 (Belo
Horizonte, Autêntica Editora, 2008), sua tese de doutoramento (2002), entre
outras obras.
No
prefácio que escreveu para este livro, Andrade diz que Camila não se deteve apenas
nas análises dos mais significativos livros de História de Augusto de Lima
Júnior (1889-1970), mas abordou principalmente a última década de vida do
historiador, quando ele já havia sedimentado sua reputação de crítico ferrenho
da gestão do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (PHAN). “Foi una época ainda frutífera na sua
trajetória de combate: fundou com amigos o Instituto Histórico e Geográfico de
Minas Gerais, a Academia Mineira de Letras e a Revista de História
e Arte”, observou.
II
De
fato, como diz a autora, o historiador Lima Júnior, escritor, advogado,
jornalista, poeta e magistrado, era homem afeito às polêmicas no campo
patrimonial. Um dos exemplos deu-se em torno da construção da igreja da
Pampulha. Para Lima Júnior, era impossível aceitar aquele “caixote” como uma
capela franciscana. “Além da forma, o historiador também aponta a incoerência
na composição, uma vez que o arquiteto responsável, Oscar Niemeyer (1907-2012),
era ateu (ou era adepto a uma mística judaica) e, neste caso, não poderia criar
uma obra cristã, já que ele não possuía experiências para tal feito”,
acrescenta Camila, lembrando que a crítica também se estendeu ao mural
elaborado pelo pintor Cândido Portinari (1903-1962), que, segundo o historiador,
“não conseguira representar nas formas simplórias a complexidade da história de
São Francisco de Assis”.
Já
no texto de apresentação, o jornalista, escritor, ensaísta, memorialista e
empresário Aristóteles Drummond, neto de Augusto de Lima Júnior, ressaltou que
seu avô não se limitou a escrever apenas a Pequena História da
Inconfidência Mineira (edição de autor, 1955), com muitas reedições
pela Imprensa Oficial e pela Editora Itatiaia, sob encomenda do então governador
Juscelino Kubitschek (1902-1976), mas criou também uma mística em torno da
conjuração mineira de 1789, o primeiro movimento pela independência do Brasil,
criando a Medalha da Inconfidência.
Destacou
ainda que, antes disso, em 1936, ao tempo do primeiro governo de Getúlio Vargas
(1882-1954), que durou de 1930 a 1945, Lima Júnior “idealizou e obteve o
repatriamento dos restos mortais dos inconfidentes no degredo”, que repousam atualmente
no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. E ainda com Getúlio Vargas,
acrescentou Drummond, Lima teve a feliz ideia de tornar Ouro Preto “Cidade
Monumento Nacional”.
III
Em seu trabalho acadêmico, Camila lembra que as
primeiras décadas do século XX foram marcadas por iniciativas que procuravam
modernizar o Brasil, com a construção de obras de saneamento, urbanização e
embelezamento das cidades que rompiam com o passado, intensificando a demolição
e o abandono de prédios históricos, além de esvaziar o sentido de tradições e
de culto à memória. Foi contra essa mentalidade estouvada que Lima Júnior
sempre se levantou, lutando pela criação de um programa responsável pela
preservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Nascido em Leopoldina, Liminha, como era chamado
por sua família e amigos, herdou o nome do pai, presidente das província
mineira, poeta e juiz. Aos 11 anos, foi morar em Ouro Preto, vindo a se
transferir para Belo Horizonte em 1901, onde o pai, Augusto de Lima (1859-1934),
era diretor do Arquivo Público Mineiro (APM). Como lembra a autora, ainda muito
jovem, Lima Júnior ajudava o pai nas atividades no arquivo, o que lhe deve ter
despertado o interesse pela História. Em 1922, com a eleição do pai para
deputado federal, transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, onde se
casou. Depois de trabalhar como agente imobiliário e representante comercial,
em 1910, prestou concurso para a Marinha, tendo sido nomeado auxiliar de
auditor de guerra na Fortaleza da Barra do Rio de Janeiro, permanecendo naquela
Arma até se aposentar em 1944.
Ainda na década de 1930, aderiu ao movimento
integralista, liderado pelo escritor modernista Plínio Salgado (1895-1975), de
caráter conservador que haveria de marcar a sua atuação como historiador,
procurando principalmente reconstituir a história de Minas Gerais. Nesse
sentido, em 1936, com o desenhista Álvaro Martins (1891-1949), escreveu uma
carta ao ditador Getúlio Vargas solicitando o seu apoio e patrocínio para o
repatriamento dos despojos dos inconfidentes dee 1789 degredados na África.
Encarregado de providenciar o repatriamento, esteve em Lisboa para acompanhar a
transferência das supostas ossadas dos inconfidentes encontradas no continente
adricano.
Em 1936, publicou O amor infeliz
de Marília e Dirceu, cujo prefácio é a carta que
encaminhara ao presidente Vargas. Naquela década muito produtiva, publicou
romances, poemas e ensaios históricos, além de artigos em jornais cariocas e
mineiros. Publicou cerca de dez livros de cunho historiográfico e, já década de
1960, estaria à frente da Revista de História e Arte
(RHA).
IV
Camila destaca a preocupação de Lima Júnior, por
sua formação conservadora, de ressaltar a herança europeia, lusitana, na
cultura e nos costumes mineiros, tratando de reduzir a influência africana e
indígena na representação de Minas Gerais. Embora não rechaçasse a mistura de
raças, Lima Júnior, segundo a estudiosa, defendia o que entendia como a “melhor
raça”, que seria a parda, “por apresentar as características dos europeus em
detrimemnto da herança africana”, a uma época em que a elite mineira acreditava
que “a raça negra e a indígena eram verdadeiros obstáculos para o progresso do
Brasil”. Para a autora, “o discurso do autor sobre a constituição do mineiro
está atrelado às questões debatidas desde o século XIX”, baseado num suposto
racismo cientíico que hoje já não tem razão de ser.
Por outro lado, a autora não deixa de constatar que
Lima Júnior não poupava críticas aos eclesiásticos, especialmente aqueles da
primeira metade do século XVIII, que, “muitas e repetidas vezes, utilizaram-se
das batinas para enriquecer, causando graves desavenças políticas”, ainda que
reconhecesse a participação fundamental dos franciscanos como um grande
elemento na formação religiosa e artística do povo mineiro”.
Na
segunda parte, a autora analisa a existência da RHA como um lugar de
sociabilidade. Criado em 1963, em Belo Horizonte, o periódico reuniu uma elite
de intelectuais mineiros, que procuravam retomar e rediscutir temas que
perseguem a construção cultural e política do Brasil. Ao mesmo tempo, analisa a
interseção de diversos lugares de sociabilidade, como o Instituto Histórico e
Geográfico do Minas Gerais (IHGMG) e a Academia Mineira de Letras (AML), além
de apresentar a estrutura do Instituto de História, Letras e Artes (IHLA) que
foi criado a partir das publicações da RHA.
Ainda
na segunda parte, Camila trata da polêmica que envolveu a desmistificação do
mito Aleijadinho, apontado como carro-chefe da arte barroca nacional, tese
defendida pelo PHAN, com a desvalorização de outros artífices do período
colonial. Em artigo intitulado “O mito do Aleijadinho na História de Minas
Gerais”, Lima Júnior dizia, de modo irônico, que o escultor “de Joaquim José da
Silva, branco natural de Sabará e atrofiado de nascença, transformou-se em
Antônio Francisco Lisboa, mulato, filho da escrava Isabel, leproso, arquiteto,
entalhador escultor, capaz de exceder os maiores gênios da Arte no mundo
ocidental”.
Segundo o historiador, Aleijadinho seria “uma construção ideológica, pautada em sua etnia e biologia, visto que a sua cor mestiça e sua condição física, ocasionada por um “reumatismo gotoso”, eram mais importantes que seus dotes artísticos”. Como mostra a estudiosa, Lima Júnior fez várias críticas, por meio de artigos publicados na RHA, à biografia de Aleijadinho, escrita por Rodrigo José Ferreira Bretas (1814-1866), professor de primeiras letras em Ouro Preto, publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro, em 1896, com base numa obra de José Joaquim da Silva, vereador na cidade de Mariana, publicado em 1790, mas que não foi localizado até hoje nos arquivos mineiros.
V
Esse
erro de pesquisa seria confirmado também pelo historiador Salomão de
Vasconcelos (1877-1965) que diria em artigo publicado na RHA, em 1964,
que “se o Lisboa de Bretas morreu em 1814 e estava sepultado na matriz de
Antônio Dias, em Vila Rica, não poderia ser o mesmo responsável pelos profetas
de Congonhas, que seria Antônio Francisco Lisboa, português, empreiteiro, que
estava em 1882, com vários oficiais trabalhando nas obras dos profetas de
Congonhas (...)”. Depois de transcrever essa citação, a historiadora lembra
que, “a origem mulata, ou “parda”, conforme consta na biografia escrita por
Bretas, é rechaçada por diferentes argumentações que, por meio da apresentação
da organização social do século XVIII, contestam essa mulatice do artífice”.
A
autora dedica ainda boa parte do segundo capítulo para recuperar o que foi a
polêmica sobre a edificação da igreja da Pampulha, na década de 1940, conflito
que durou pelo menos 15 anos, desde a sua inauguração em 1943 até a sua
consagração em 1959, já que, para Lima Júnior, Niemayer, que se dizia ateu, não
poderia criar uma obra cristã. Como observa Camila, a crítica também se
estendeu a Portinari, autor do mural, que, segundo o historiador, não
conseguira representar nas formas simplórias a complexidade da história de São
Francisco de Assis.
Na
terceira parte, a autora faz suas considerações finais, revisitando as
polêmicas em que Lima Júnior se envolveu. Como se vê, a obra oferece uma
profunda pesquisa acerca dos debates sobre a construção do patrimônio artístico
e cultural no Brasil em meados do século XX. Em resumo: trata-se de um estudo
valioso e bem pesquisado que serve para colocar no lugar vários assuntos
importantes que fazem parte da História de Minas Gerais. Uma leitura fundamental
para quem pretende compreender os debates que envolveram os movimentos de
preservação no Brasil. Adelto Gonçalves - Brasil
Polêmica,
patrimônio e arte: a obra de Augusto de Lima Júnior, de Camila
Kézia Ferreira. Belo Horizonte, Fino Traço Editora, 236 páginas, R$ 45,00, 2018.
Site: finotracoeditora.com.br E-mail: camilakeziarf@yahoo.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp)/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os Vira-Latas da Madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder:
o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global
Trends (Robbin Laird, editor, 2024), publicado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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