Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sábado, 13 de setembro de 2025

Os segredos dos meninos mágicos

Os segredos dos meninos mágicos é um título auspicioso de uma obra que celebra a diversidade das culturas angolanas, talvez uma incursão muito exitosa por algumas curiosíssimas tradições do nosso Sul, em Angola. Este livro tem uma particularidade incomum: a autora assina também as ilustrações. Essa dupla função permite um diálogo mais íntimo, praticamente um monólogo, cujo mecanismo a Gizela certamente um dia nos explicará.

Os desenhos, incluindo a belíssima capa, carregam símbolos, incluem elementos como mapas e outras figuras escondidas à vista de todos. Agrupam círculos, animais e figuras humanas, árvores humanizadas, pessoas com raízes…. Enfim, a família, a topografia do terreno e apontamentos da natureza visíveis de noite e audíveis de dia, iluminados pela luz solar ou lunar. Animais de grande porte, aves e vegetação rasteira, a insinuarem estepes ou desertos. Um livro pode ler-se primeiro pelos desenhos, e foi por aí que comecei. Ver, antes de ler, sentir, antes de tentar uma aproximação racional de leitura.

A obra apresenta-nos um conjunto de textos de ficção, agrupados em três partes: As Árvores Sussuram, E Nos Pés Brotaram Árvores e O Menino Chacal. Há uma estrutura que confere ritmo e ajuda a familiarizarmo-nos com o livro: as frases de introdução, os parágrafos em itálico, os excertos destacados e os títulos dos contos), com as histórias dos três protagonistas, o Elias, o Salvador e o Kasinda. Rapidamente o leitor se irá aperceber que os meninos são os grandes heróis destas histórias, confirmando as palavras da autora no início do livro. E são também, e muitas vezes, narradores autodiegéticos, assumem o controlo da narrativa, dentro de contos sobre eles e as suas famílias, as suas comunidades.

Predominam cenários que nem sempre são conhecidos das crianças citadinas. Rios, lagos, aldeias, solos pedregosos, caminhos arborizados…

O Reino do Mbalundo, o Rio Colelê, o rio Keve (que nasce no Huambo), são pistas que desenham percursos no mapa de Angola e dão movimento às narrativas.

Por outro lado, a autora refere elementos nativos, espaços construídos, semeados ou bravios, como casas de alvenaria de adobe e eucaliptos, a habitação circular, construída com barro e esterco de vaca, plantações de girassóis, lavras de milho, flores selvagens cor-de-laranja e a ombala (que é um termo, como outros, explicado no glossário).

Ao olharmos para estas paisagens naturais ou construídas pela mão do Homem, entendemos que incidem nestas narrativas os olhares do antropólogo, do etnólogo, do geógrafo e do arquiteto, antes de cederem a vez à criadora e contadora de histórias e aos aspetos ficcionados.  Sente-se uma sólida malha multidisciplinar sobre a qual assentam as histórias, o que se confirma também nos textos preliminares da autora.

As histórias destes meninos também mencionam províncias e regiões angolanas mais a Sul, como Cunene, Cuando-Cubango, o deserto do Namibe e até países e regiões fronteiriças. O Botswana: montanhas, rios fortes/ as fronteiras do Botswana e da Namíbia / a reserva natural do Etosha, na Namíbia e Windhoek, o canto do vento…

Mas também há atmosferas mais citadinas: o quarto é frequentemente um espaço de grande movimento, sente-se o bulício da cidade, percebe-se o mato quando está próximo, e andamos, como os nossos personagens, pela escola e pelo jardim…Ambientes reais e irreais, porque, como nos diz a autora, os sonhos também são verdade.

Dois termos chamaram a nossa atenção, pelo número de ocorrências: as palavras Vento – que surge 22 vezes e Deserto – 28 (os corvos do deserto, a víbora do deserto, a língua do deserto, a planta do deserto (Welwítschia), as mulheres do deserto, a serpente do deserto, e por aí fora…). Não se trata de uma casualidade: se lermos com o corpo sentiremos certamente esse vento, galgaremos dunas e teremos as areias do deserto a invadirem as nossas casas à medida que nos embrenhamos na leitura.

Mergulhemos agora um pouco mais em cada um dos compartimentos narrativos.

As Árvores Sussurram está associada a O Conto do Elias

É uma história cheia de simbolismos onde até as árvores se expressam como pessoas e o Tempo é descrito como cuidador. O homem é a fera – lemos, e a “a vida soletra-se por entre montes de pedras” – é uma metáfora expressiva e acrescenta poesia a uma narrativa já de si musical. “Os pneus acariciavam o asfalto num percurso familiar” ou “Katunga vem desacompanhado, mas não vem só” – são outras passagens que ficam no ouvido.

Com avanços e recuos no tempo, a narrativa coloca vários desafios ao leitor, que começará por interrogar-se sobre a ação, os personagens, as reações, antes de chegar ao desfecho.  Prepare-se para o mundo do fantástico, onde singularidades inesperadas, poéticas impossibilidades, coloridas ilusões e a realidade, mais do que andarem de mãos dadas, são indissociáveis. Há uma figura de que muito se fala, Katunga, um nome simbólico que a seu tempo será desvendado. O significado, a missão, os poderes, as atribuições. Reverenciar o reino vegetal e falar a língua das árvores são predicados de seres excecionais.

O leitor ouvirá falar do domínio de Ekwikwi e Katyavala, reis do território dos leões, e de Mbalundu. Muitos animais emprestam o seu colorido e movimento a este conto, que fala de despojos de guerra, dos ciclos da natureza, como a partida das aves, de memórias e conversas: o pássaro de rodas, o falcão-de-pés-vermelhos, leões, jiboias ou hipopótamos.

O principal acontecimento insere-se no protocolo das tradições e ritos locais que implicam sofrimento, separação e amadurecimento. Muitas peripécias vive este rapazinho que aprende por instinto a superar obstáculos com os seus incipientes recursos.

O conto tem aspetos do surrealismo e do realismo mágico, ou não fossem estes Meninos Mágicos e cheios de segredos.

A sabedoria que subjaz a esta tradição deve ser entendida no contexto cultural, de contrário poderia criar algum estranhamento e colocar filosofias de vida em confronto. O propósito dos rituais reveste-se de certa nobreza e lógica que o leitor ajuizará. Este conto lembra-me também, claramente, Birago Diop e o seu inesquecível poema: Souffles.

A segunda parte, E nos Pés Brotaram Árvores, introduz O Conto do Salvador e os seguintes.

A narrativa “não é uma história qualquer”, como adverte, logo de início, o menino-narrador. Tudo se passa em família, entre o Pai Perpétuo e a Mãe Prudência, o tio, a avó e os amigos, como extensão da família, para além de uma menina, de nome e beleza enigmática.

Várias terras do Sul profundo são referidas e também etnias, como os Cuanhamas. Por outro lado, há um produto a que se alude repetidas vezes, o óleo de mupeque, que tem inúmeras aplicações na região (em massagens, como hidratante e unguento, por exemplo, para nutrir pés e mãos). Antílopes, hipopótamos e zebras, pinguins do Tombwa, peixes, lagartos e insetos vêm juntar-se à história, mesmo que como figurantes.

Há uma frase e reter: “Tudo à nossa volta ia ficando cada vez mais mirrado. Os terrenos infrutíferos agora estavam esturricados de tanto calor. As avestruzes desapareceram. O deserto bateu-nos à porta”. (P.43)

Práticas ancestrais são como que coreografadas. A educação das meninas, é diferente da dos rapazes e o texto diz-nos, na p.46, que “As raparigas não sonham. Não as deixam sonhar.” Seguem-se considerações sobre o determinismo, a inteligência de arcar com escolhas de terceiros e fazer delas nossas, o assumir um destino e moldá-lo à nossa vontade, assim como a importância dos nomes.

Nesta fase do livro, cada narrativa prossegue na seguinte. Este conto traz à memória documentários e reportagens sobre a cidade do Tombwa, a ser engolida pelo deserto há várias décadas.

A avó saiu pela janela: pó que foi com o vento. Ficámos os três, a vê-la ir”, na p.42, é outra passagem que se memoriza; e está definido o tom do livro, e que se poderia traduzir por uma piscadela de olho ao real maravilhoso.

Welwítschia Dalha é o conto que se segue, onde cabem apenas o narrador e a menina, que reclama um espaço autónomo para se apresentar. O conto é deliciosamente descritivo, muito pictórico, talvez marcado por um certo fetichismo (pés). Fala-se em adornos e indumentária, nas mantas típicas. Insinua-se o primeiro encantamento, o deslumbramento, a beleza, a dignidade e a coesão familiar.  E também se exalta o binómio coragem/cobardia, faces de uma mesma moeda. Impossível não pensar numa crónica documental, e confesso que me lembrei também de Ana Paula Tavares, escritora e historiadora e de Ruy Duarte de Carvalho, antropólogo, escritor e cineasta, ambos angolanos.

Os seguintes contos deste núcleo enfatizam a história familiar, decisões e deslocações. 

A mãe de Salvador, (citadina), é instruída e versátil, conhecedora do mundo vegetal.  Algumas mulheres com estas caraterísticas provocam admiração ou desconfiança, como a personagem Claire Fraser dos romances e da série televisiva Outlander.

Nesta parte da narrativa pensamos em rituais pagãos e religiosos, no ritmo da vida, na intuição e conhecimento das coisas não ditas. Nas amizades de infância, no apego à terra, na beleza da aridez. Alude-se a projetos familiares vitais que se sobrepõem a todos os riscos.

Algumas passagens mais líricas dialogam também com a obra poética de Mariem Mint Derwich ou de Aichetou Ahmedou, poetas e romancista, respetivamente. Ambas escritoras do Sahara.

Quando o pai ficava desértico, a minha mãe hidratava-o”, p.52.

As cinzas do avô também são personagens. Fala-se agora de crenças locais e do contraponto entre a Ciência e as lendas, entre a urbe e o deserto; a fé, a espiritualidade, a maneira de viver, sentir, aceitar, agir e pensar. E também sobre as relações de parentesco e a hierarquia na família, na perspetiva regional, as obrigações, a pena por incumprimento dos costumes, no melhor estilo dos contos tradicionais africanos.

É hora de partir e a narrativa avança com os personagens. Note-se a aprendizagem sobre o deserto e a maneira de intercalar lendas com a narrativa principal.

Refletimos sobre o impacto de semear a dúvida, a discórdia, de confundir os mais vulneráveis; de pôr à prova o amor e a lealdade de uma criança, ativar o ciúme e insegurança, numa intrincada rede de laços familiares, diferente da europeia.

O Plano de Perpétuo, qual será? No deserto há predadores dissimulados e, quanto a planos, os melhores são os que não existem, pois não podem ser divulgados, nem atraiçoados, nem denunciados. Aqui a narrativa cede lugar à aventura, à ação pura e prossegue com A Esperança. A novidade é a figura de Mukuru (Deus) e a menção do povo himba.


Trata-se também de dialogar com antepassados e de absorver a força espiritual. Um aspeto que retenho é a beleza que resulta da fusão de etnias. Algumas palavras constam do glossário, outras são explicadas no texto como okuruwo, o fogo sagrado. Os contos sublinham também a ligação perpétua entre antepassados e os que ainda vivem e a tradição de dar de beber aos que já partiram, em dias de festa. E sobretudo de respeitar a diferença e aquilo que é determinado pela natureza, a razão biológica dos seres. Desvendam-se e confirmam-se vários mistérios.

O Menino Chacal e O Conto do Kasinda fecham este conjunto de contos inspirados em tradições locais. Tudo é descrito delicadamente ao pormenor, num novo cenário. As gémeas, o menino Kasinda, os progenitores, o tio e a avó. Os voos noturnos e os gritos dos pássaros, as entreajudas entre vizinhos, os sustos, o convívio entre as crianças. Parece que os sentimentos têm cores e a ancestralidade está agarrada à pele. Pelo nome percebe-se a ordem dos filhos, o dia em que nasceram e a família a que pertencem.

Termina o livro num ritmo que desperta em nós a promessa dos filmes de animação, com bons diálogos, super-heróis improváveis, vilões e um universo onírico, onde se resolvem, se desfazem e se apaziguam conflitos.

O som no quarto é castanho e convida ao repouso”, p.93.

 …

Num estilo muito sóbrio, quase austero, as coisas irreais são encaradas com normalidade. Este livro é também sobre mistério, tradição e fantasia. Em sintonia com as palavras da autora na abertura do livro, estendo o meu abraço a “todas as crianças silenciadas por possuírem algum tipo de deficiência física ou limitação”, estando ou não presentes neste espaço, porque é essencialmente pensando nelas e por elas, creio, que este livro ganhou forma. Espero que a vossa experiência de leitura seja pelo menos tão agradável e inspiradora como a minha. Luísa Fresta – Portugal

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Os segredos dos meninos mágicos da autoria de Gizela de Brito. Editora Caneta de Estilo ©. Ano de 2024, Género literário: infantojuvenil, contos, 111 páginas

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Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal, desde 1993.

Obras da autora: “49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito” (poesia), Chiado Editora, 2014; “Contexturas” (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; “Março entre meridianos” (poesia, 1.º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; “Março entre meridianos” (reedição), Livros de Ontem, 2019; “A Fabulosa Galinha de Angola” (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; “Sapataria e outros caminhos de pé posto” (contos), Editorial Novembro, 2021; “Burro, sim senhor!” (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021, “Casa Materna” (poesia), Editorial Novembro, 2023 e “No país das tropelias e desventuras”, Editorial Novembro, 2024.  

 




 

1 comentário:

  1. Agradeço ao blog Baía da Lusofonia, João Seixas, pelo espaço e a gentileza da visibilidade à minha obra. À Luísa Fresta agradeço pelas palavras que definem, de forma tão íntima, os elementos que envolvem os meus contos.

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