I
Terceiro
livro do professor Sebastião Marques Cardoso, Poéticas da mestiçagem – textos
sobre culturas literárias e crítica cultural (Curitiba, Editora CRV, 2014)
resume a clivagem que o autor fez em seus estudos a respeito da literatura brasileira
a partir do conhecimento de textos de autores oriundos de países africanos de
língua oficial portuguesa, o que se deu, em 2009, quando, já doutor em Letras
pela Universidade de São Paulo (USP), atuou como leitor na Embaixada do Brasil
na Guiné-Bissau com bolsa oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação vinculada ao Ministério da Educação.
À época, auxiliou na docência e na administração da Universidade Amílcar Cabral
(UAC) e tornou-se o primeiro assessor científico daquela instituição, na
ocasião, partilhada com a Universidade Lusófona da Guiné (ULG). Hoje, a UAC,
pública, e a ULG, particular, não estão mais interligadas.
Se
durante o período da graduação, do mestrado e do doutorado, Cardoso optou pelo
estudo de personagens anônimos da literatura brasileira, considerando-os
“figurinos” em João do Rio (1881-1921) e “anti-heróis”, em Oswald de Andrade
(1890-1954), a partir da experiência africana ampliou suas reflexões críticas,
estudando principalmente a obra do guineense Abdulai Sila (1958), autor de Eterna
paixão (1994), que é considerado o primeiro romance de seu país. Como
observa o professor Benjamin Abdala Junior, da USP, no prefácio que escreveu
para a obra, nestes estudos sobre poéticas da mestiçagem há “reflexões atuais
sobre as bases críticas da formação de nosso imaginário nacional e também sobre
as que se desenharam nos países africanos de língua oficial portuguesa, na
particularidade da Guiné-Bissau”.
Tentar
entender como se deu o processo de misturas culturais dos povos colonizados foi
a tarefa que o pesquisador escolheu para si, valendo-se de reflexões de
estudiosos como Édouard Glissant (1928-2011), nascido na Martinica,
departamento francês ultramarino no Caribe, que defendeu a teoria da
crioulização, vista como uma segunda globalização, e a da cultura, por meio da
mestiçagem, ou seja, da integração forçada (ou não) entre povos originários de
vários lugares no mundo. E Glissant o fez em diálogo com as ideias de Frantz
Fanon (1925-1961), médico psiquiatra e escritor também martinicano considerado
"pai" do nacionalismo africano e inspirador de movimentos de
libertação anticoloniais, que procurou analisar as consequências psicológicas
da colonização, tanto para o colonizador quanto para o colonizado.
II
Nesse
sentido, Cardoso procura trazer à luz outros
sistemas de representação na literatura (mistos ou de resistência)
“desvalorizados” ou inscritos em espaços-tempos fora da arquitetura crítica do Ocidente,
como observa, ou seja, deixados de lado por puro preconceito das elites sociais
e econômicas que, como no caso do Brasil, carregam, muitas vezes, na facies
suas indisfarçáveis origens genéticas, embora a classe dominante brasileira de
hoje ainda não se mostre uma sociedade múltipla, que reúna em números
equivalentes negros, mulatos, indígenas e brancos, ficando atrás daquelas de
outros países sul-americanos, como Equador, Chile, Paraguai, Bolívia, Peru e
outros, em que os traços étnicos indígenas na população são mais visíveis.
Isso
faz supor que a colonização portuguesa na América do Sul não tenha sido tão
diferente da inglesa na América do Norte, caracterizada esta pela ocupação
violenta do território e exclusão dos povos autóctones. Até porque resquícios
dessa linha de atuação violenta ainda se fazem presentes no Brasil do século
XXI, onde terras indígenas demarcadas são alvos de roubo de madeira, derrubada
de floresta para pastagens e, ainda mais grave, de abertura de picadas e
estabelecimento de lotes para a ocupação ilegal dos territórios tradicionais.
A
partir do pensamento de Glissant, Cardoso observa, no ensaio “Dicionário da
crioulização”, que há, atualmente, um crescente desgaste de culturas atávicas e
a ascendência das compósitas, “seja no Brasil, seja nos países africanos ou em
todas as partes do mundo onde o poder global procura incansavelmente asfixiar
as culturas locais”. E que esse ambiente compósito resulta em “revoltas,
diásporas, tensões sociais e o ressurgimento de outras culturas atávicas, de
caráter étnico mais extremo”. Para o ensaísta, essa nova correlação de forças resulta
também em experiências imprevisíveis e enriquecedoras, muitas vezes
representadas pela voz de um escritor.
É
o caso de Abdulai Sila, que, como concluiu o pesquisador, traz em sua
literatura em prosa um grande fermento para a investigação do processo de
mestiçagem sob a perspectivas da crioulização defendida por Glissant, tema do
ensaio “Em louvor da crioulização”. Neste texto, Cardoso analisa o conto
“Madjudho”, que consta do livro Mistida (Praia-Mindelo, Centro Cultural
Português, 2002), em que o personagem principal, conhecido como Comandante, mesmo
tendo tido participação ativa na guerra da independência, tornou-se um sujeito
marginal, que não se beneficiou da nova ordem política estabelecida. Nesse
sentido, a mensagem que Sila passa, como observa o estudioso, é a de que os
filhos da pátria, que ajudaram a consolidar a classe dirigente, teriam sido mal
recompensados e abandonados. “O que nos chama a atenção, na fabulação
construída por Sila, é justamente a articulação do imaginário, oferecido pela
oralidade da língua crioula, e a cultura da escrita”, acrescenta Cardoso.
III
Neste
conto, o pesquisador observa que, apesar de escrito em Língua Portuguesa, a projeção
de imagens vem do crioulo da Guiné-Bissau, que promove um “encontro de etnias que
numa língua étnica ou na língua do colonizador não poderia ter espaço”. E, por
meio da escrita em português, é do crioulo que Sila garimpa as imagens que,
“por serem crioulas, ou seja, mestiças e imprevisíveis, sempre comunicam, na
generalidade, algo muito específico de cada etnia”, acrescenta.
É
de se observar que o crioulo é uma língua corrente na Guiné-Bissau e na
Casamansa, território pertencente ao Senegal, habitado majoritariamente pela
etnia diola, que, há 40 anos pelo menos, luta, por meio de uma guerra civil,
por sua independência e filiação à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP). E que no século XV e início do século XVI, os escravos que viviam em
Lisboa, Algarve e Alentejo provinham dessa região.
Por
aqui se vê que as ligações entre os povos de ascendência portuguesa com os
daquela região vêm de longe. A ponto de, hoje, o Português constituir língua do
ensino obrigatório e do Estado na Guiné-Bissau, embora pequena parcela da
população o tenha como língua materna, pois a maioria se expressa mesmo em
crioulo, tendo ainda uma grande parcela da população que não sabe se expressar
na língua dos pais, muitas vezes portadores de outras línguas étnicas.
Nesse
sentido, o livro de Cardoso constitui uma inestimável contribuição não só para
o conhecimento da cultura de povos-irmãos, cujo DNA também pode ser encontrado
em muitos brasileiros, como para desmitificar o discurso eurocêntrico imposto
aos povos coloniais. E, principalmente, subsidiar e incentivar jovens
pesquisadores a procurar novas abordagens da questão cultural e social no
âmbito das comunidades de Língua Portuguesa.
IV
Nascido
em Mirandópolis-SP, Sebastião Marques Cardoso (1974) graduou-se em Letras, em
1996, e fez mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1999, pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Doutorou-se em Teoria e
História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2007, e
concluiu pós-doutorado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela USP,
em 2014. É autor também dos livros Oswald de Andrade: anti-heroísmo,
literatura e crítica (2010), e João do Rio: espaço, técnica e imaginação
literária (2011), publicados pela Editora CRV, de Curitiba.
Trabalha,
hoje, como professor adjunto em Teoria da Literatura do Departamento de Letras
Estrangeiras e como pesquisador permanente do Programa de Pós-Graduação em
Letras, mestrado e doutorado, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). É presidente e sócio-fundador da Podes – Associação de estudos
pós-coloniais e decoloniais no ensino, na cultura e nas literaturas Sul-Sul/UERN.
É
fundador e líder do Grupo de Pesquisa em Literaturas de Língua Portuguesa
(GPORT), certificado pela UERN. Junto ao grupo de pesquisa, à iniciação
científica, à graduação e à pós-graduação, coordena projetos de pesquisa em cultura
e representação nas literaturas pós-coloniais de Língua Portuguesa. Adelto
Gonçalves - Brasil
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Poéticas
da mestiçagem - textos sobre culturas literárias e crítica cultural,
de Sebastião Marques Cardoso. Curitiba: Editora CRV,
144 páginas, R$ 48,05, 2014. Site: www.editoracrv.com.br E-mail:
sac@editoracrv.com.br
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Adelto
Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage
– o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga
(Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),
Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial
(Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981;
Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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