Criada em Frankfurt em 1980, a TFM é a livraria portuguesa mais antiga na Alemanha. Já editou 110 obras lusófonas. O seu fundador, Teo Ferrer de Mesquita, privou com Saramago e Cardoso Pires, e encontrou nos livros a forma de fazer uma revolução sem se meter na política
O amigo de Saramago
Quando
o sol nasceu na manhã de 8 de Outubro de 1998, Teo Ferrer de Mesquita ainda não
sabia que iria experimentar um dos dias mais memoráveis da sua vida. Pelas 10h,
foi levar José Saramago ao aeroporto de Frankfurt; o escritor português tinha
sido a atracção da Feira do Livro, a maior do género Europa, e estava então de
regresso a Lanzarote, em Espanha, onde a sua companheira Pilar del Rio o
aguardava. “Ele disse-me que não precisava de o levar porque sabia que eu
estava cheio de trabalho na feira”, recorda Teo Ferrer de Mesquita. “Mas eu já
o conhecia há uns bons anos e tinha receio que se perdesse no aeroporto, que é
enorme”.
Regressado
ao evento, o livreiro português foi surpreendido com a comunicação da Academia
Sueca: José Saramago, à época com 75 anos, acabara de vencer o Prémio Nobel da
Literatura. Era meio-dia. Sabendo que o avião descolava para Madrid somente às
13h, Teo apressou-se a encontrar uma maneira de avisar o escritor, para que não
embarcasse e regressasse ao certame. “Estava lá toda a comitiva portuguesa e a
imprensa do mundo inteiro. Mas na altura não havia telemóveis para lhe ligar
directamente”, lembra. “Consegui que uma representante do AICEP em Berlim
telefonasse para a [companhia aérea] Iberia. Atendeu uma hospedeira que
confirmou que Saramago estava na sala de espera, a ler um jornal.
Primeiro,
disse que tinha muito para fazer e que não o podia chamar. Mas ele lá veio.
Demos-lhe a notícia mas ele não queria voltar para a feira, dizia que a Pilar
estava à espera dele e que tinha de ir para Espanha”. Só depois de falar com
Pilar e com o seu editor, Zeferino Coelho, Saramago se convenceu a ficar.
Teo
foi apanhá-lo ao aeroporto. Na messe (feira), editores, escritores e visitantes
portugueses aguardavam à entrada para receber o autor de Ensaio sobre a
Cegueira com cravos e ovações. “Mas, sem querer, fiz asneira”, recorda Teo.
“Como tinha lugar de estacionamento no topo de um dos edifícios, descemos
directamente para o pavilhão das editoras portuguesas sem passar pela entrada.
Os primeiros a darem os parabéns a Saramago, depois de mim, foram os espanhóis
que estavam lá ao lado”. Os patrícios acabaram por chegar e homenagearam o
escritor cantando Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, e com uma chuva
púrpura de flores de Abril. O Nobel acabaria por convidar Teo para a cerimónia
de entrega do prémio, em Estocolmo, mas o livreiro de Frankfurt acabaria por
recusar, para que o galardoado oferecesse a entrada – bastante exclusiva – a
alguém mais próximo.
A
amizade improvável entre o escritor comunista e Teo, filho de médico
oftalmologista nascido na Beira, em Moçambique, em 1945, começou na entrada da
década de 80 do século transacto. Nesses tempos, o português que fez de
Frankfurt a sua casa era um engenheiro electrotécnico recém-licenciado, em
busca de uma forma de dar a conhecer a até então incógnita cultura lusófona aos
alemães. A 2 de Maio de 1980, foi a uma repartição de finanças para registar
uma livraria que pudesse vender obras de autores portugueses, brasileiros e dos
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Quando lhe perguntaram
por um nome, pensou que a empresa era unipessoal, ele e mais ninguém. Então
baptizou-a com as suas iniciais: TFM – Centro do Livro e do Disco de Língua
Portuguesa. A sua primeira morada foi na Heiligkreuzgasse, bem no coração da
capital do estado federado de Hessen. Mas até aí chegar Teo teve de perceber
qual a sua forma de participar na revolução sem quebrar uma promessa que tinha
feito ao pai.
Viva Portugal!
As
guerras pela independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau contra o regime
colonial português apanharam Teo a chegar à maioridade. Isso significava que
teria de cumprir o serviço militar e, seguramente, ir para a guerra, algo que
nem ele nem o pai queriam. O mais velho de cinco irmãos, dois deles doentes com
poliomielite, foi aconselhado a seguir os estudos universitários na Europa: “A
primeira opção foi Paris mas o meu pai sabia que era aí que estavam os exilados
do Estado Novo e que, indo para lá, ia acabar por me meter na política.
Receoso, fez-me prometer que não seguiria esse caminho”, conta o livreiro, hoje
reformado e a viver no bairro de Benfica, em Lisboa. “Como tínhamos uns amigos
alemães em Moçambique, eles sugeriram-nos que eu fosse para Frankfurt”.
Chegou
à Alemanha em 1963 e foi para a universidade em Darmstadt, a uma hora de
Frankfurt. Até 1969, não pôs os pés em Portugal e teve de se apresentar no
consulado luso de seis em seis meses, de modo a mostrar que tinha boas notas
para evitar a recruta. “As cartas que recebia da Beira vinham censuradas e os
aerogramas abertos. Dava para perceber que a ditadura continuava apertada”,
diz. Com a “primavera marcelista”, em 1969, teve a oportunidade de visitar pela
primeira vez as suas origens em Lisboa. “Quando regressei à Alemanha, comecei a
colaborar com a Amnistia para ajudar prisioneiros políticos”.
A
curiosidade de Teo por Portugal era insaciável e a feira literária que se
realizava anualmente em Frankfurt dava-lhe uma oportunidade única de privar com
editores e intelectuais, cujas conversas eram bem mais politizadas do que as
dos operários emigrados. No certame, já todos conheciam o jovem universitário.
Na edição de 1968, conheceu Francisco Lyon de Castro, que era editor das
publicações Europa – América. “Uma das primeiras coisas que ele me disse foi
que eu devia ser um privilegiado porque estava a estudar na Alemanha sem fazer
o serviço militar”, recorda. Ficaram a dar-se bem. “Era evidente a diferença da
Europa – América, que já tinha editado Jorge Amado e outros autores forçados a
passar pela comissão de censura, e da Verbo, por exemplo, que estava mais
alinhada com o regime. Castro pertenceu ao PCP, esteve preso e dava-me uma
visão do país que eu precisava de escutar”.
O
25 de Abril apanhou Teo já empregado. Como não havia muita gente fluente em
português e alemão na cidade, os repórteres da televisão Hessischer Rundfunk
convidaram-no logo no dia seguinte para integrar uma equipa de filmagens que ia
cobrir os históricos acontecimentos em Portugal. Não hesitou. Solicitou as
férias que tinha em atraso e, a 27 de Abril, já estava em Lisboa a actuar como
intérprete, motorista e produtor da equipa alemã. Ao longo de mais de um mês,
testemunhou a libertação dos presos políticos de Caxias e a entrada nos
calabouços dos inspectores da PIDE, a ocupação das terras por parte dos
camponeses do Ribatejo e do Alentejo, as primeiras campanhas de alfabetização,
a primeira peregrinação a Fátima após a ditadura e a grande festa do primeiro
1º de Maio em liberdade. Pelo meio, contactou muitos jornalistas e artistas
portugueses, como Zeca Afonso, Fausto e Sérgio Godinho. O resultado foi “Viva
Portugal”, um documentário precioso sobre a infância da democracia no país.
“Foi uma experiência tão fascinante que me mudou a vida”, comenta Teo.
De
regresso a casa, quis fervorosamente contribuir para aquela importante etapa da
vida do país. A sua primeira ideia: ter qualificação pedagógica para ajudar os
jovens portugueses a obter cursos profissionais, que lhes permitia aceder a
emprego técnico e a melhores salários. Esbarrou contra um muro: “Para tal, eles
tinham de deixar de trabalhar durante um período e as famílias opunham-se
porque ficavam temporariamente sem salário”, lamenta.
Assim,
virou-se de novo para os livros: em Outubro tirava férias só para ir à feira.
Ali, começou a pressionar os representantes portugueses: “Era necessário trazer
editoras novas e que o objectivo não fosse apenas comprar direitos de obras
estrangeiras, mas também vender direitos de títulos de autores nacionais. Havia
muita falta de confiança”, afirma. Chegou ao Instituto Português do Livro e das
Bibliotecas (IPLB, hoje DGLAB), chefiado por Alçada Baptista, que o começou a
ajudar a persuadir autores portugueses a deslocarem-se à Alemanha e a traduzir
livros para a língua de Goethe.
Os
primeiros passos da TFM foram dados com cautela: “Aluguei uma cave para guardar
os livros e batia à máquina um boletim trimestral com as novidades da
literatura lusófona”, diz Teo. “A minha intenção era tornar o português numa
língua mundial e apostava muito na ideia de que tinha, na altura, 110 milhões
de falantes. As ex-colónias eram agora independentes e havia curiosidade.
Comecei a importar livros das Edições 70, do Luandino Vieira, Boaventura
Cardoso e do José Craveirinha”. Também disponibilizou manuais escolares de
português aos professores, que “se sentiam muito isolados no ensino do idioma”.
Mas
Teo também pensava em grande. Em 1982, alcançou a proeza de juntar à mesma
mesa, na Biblioteca Central de Frankfurt, José Saramago, José Cardoso Pires e
António Lobo Antunes, três dos nomes maiores da literatura portuguesa contemporânea.
Saramago e Lobo Antunes, que nunca se deram bem, ficaram em extremos opostos.
No meio, estava ainda Ray-Güde Mertin, agente literária de vários autores de
língua portuguesa e castelhana, entretanto falecida. “Depois de regressarem a
Portugal, ela perguntou-me se eu achava que ela podia agenciar os direitos
desses autores. Eu respondi-lhe que sim, porque era isso que faltava aos
escritores portugueses”, conta Teo. Ray-Güde acabou por traduzir vários títulos
de Saramago e de Lobo Antunes para o alemão. “Quando dei por mim, as coisas
tinham mudado”, conclui Teo. “Já não era eu que tinha de escrever às editoras,
elas é que me escreviam a mim”.
Livraria de Petra e cal
A
nova proprietária da TFM, a alemã Petra Noack, nasceu na Saxónia em 1974,
quando Teo andava a dissecar a revolução portuguesa, e estagiou na livraria em
1998, o ano em que Saramago soube em Frankfurt que era Nobel. O primeiro livro
em português que leu foi "A Menina do Mar", de Sophia de Mello
Breyner Andresen. “Entrei em línguas românicas e achei que havia demasiados
alunos a estudarem espanhol. Escolhi português sem ter grande ligação, só para
ser diferente, e cedo comecei a desenvolver um fascínio pelo idioma”, diz
Petra.
O
tempo em que passava as tardes a embrulhar encomendas na antiga loja, que tinha
o aspecto caótico e fascinante de um alfarrabista, e tinha de ir ao aeroporto
levantar 150kg de livros, já passou. Hoje os serviços de entrega depositam os
pedidos no nº 47 da Grosse Seestrasse, em Bockenheim, na zona ocidental de
Frankfurt, onde a TFM tem a sua nova casa. De um lado estão os livros de
autores portugueses em alemão, do outro traduções de títulos internacionais em
português. À entrada, um poster de Sebastião Salgado. Há um cantinho para
discos, outro para livros infantis e uma mesa com vinhos portugueses. “O
interesse sobre a literatura lusófona é muito de ondas”, refere. “Por exemplo,
como Portugal é um destino turístico na moda, há muitos pensionistas a quererem
estudar a língua para se mudarem para lá. Há casais a comprarem livros infantis
para os filhos acompanharem o português. Este ano Portugal foi o país-tema da
feira do livro de Leipzig e fizeram-se quase 50 traduções. E depois há coisas
estranhas. Por exemplo, os alemães gostam de romances criminais em países
estrangeiros, e um dos livros que temos vendido mais é este Lost in Fuseta –
ein Portugal-Krimi [Perdido na Fuseta – um crime em Portugal], de um escritor
alemão que assina com o pseudónimo Gil Ribeiro”.
Para
além de ter influenciado a tradução de dezenas de manuscritos para alemão, a
TFM também tem uma chancela própria com 110 títulos, entre eles edições
bilingues de obras de Mário de Carvalho, Manuel Alegre ou José Saramago. O
último foi "Sonhos Azuis pelas Esquinas", do angolano Ondjaki, que
também já marcou presença na TFM para uma leitura. A liderar o top da editora
está há muito tempo "Um Brasileiro em Berlim", de João Ubaldo Ribeiro,
segundo Petra Noack “um livro com bastante humor que incide nas diferenças
culturais entre a Alemanha e o Brasil”. Um clássico da TFM é também "O
Conto da Ilha Desconhecida", de Saramago, cujos direitos o ribatejano
ofereceu a Teo como prova do respeito pelo seu trabalho. Já de outras editoras,
a tradução para alemão de "O Retorno", de Dulce Maria Cardoso, e
"Essa Dama Bate Bué", de Yara Monteiro, têm tido bastante procura nos
últimos meses.
A
pandemia travou várias iniciativas da livraria, como as tertúlias, as sessões
de leitura, concertos e provas de vinho que tinham vindo a ser realizadas com
uma enóloga de Colónia: “Ter actualmente 25 pessoas neste espaço reduzido a
provar vinho é capaz de não ser boa ideia”, comenta Petra, que ficou a gerir a
TFM a partir de 2014, altura em que Teo requisitou o seu merecido descanso. No
entanto, mesmo num período em que o encarecimento do papel promete fazer
aumentar os preços dos livros, a TFM continua com vendas estáveis, de pedra e
cal como o baluarte da cultura portuguesa no centro da Europa. A empresa
fornece livrarias por toda a Alemanha, mas também na Suíça, na Áustria e fora
do universo germânico, na Holanda, na Croácia, Luxemburgo e Reino Unido.
Petra
espera agora o alívio das medidas sanitárias para voltar a organizar as sessões
do grupo de leitura e também para involucrar a TFM nas apresentações agendadas
para Frankfurt no próximo mês de Outubro, entre as quais a de Itamar Vieira
Júnior, vencedor do último prémio Leya.
Mais do que uma livraria
O
legado de Teo na divulgação da cultura portuguesa não se cingiu à literatura.
Estendeu-se também à música e de uma forma muito peculiar. Vivendo diante da
Alte Oper (Ópera Antiga) de Frankfurt, acompanhou e fez donativos para a
reconstrução da sala de espectáculos, danificada na 2ª guerra mundial. Quando
as obras terminaram, leu com estupefacção num jornal local o agradecimento da
autarquia “a todos os alemães que tinha contribuído”. Teo não gostou e
protestou junto dos responsáveis da Ópera: “Não foram só os alemães que
ajudaram. Muitos estrangeiros residentes em Frankfurt, como eu, também
contribuíram para a reconstrução”, disse. Eles foram sensíveis aos argumentos.
Desde
1981 até 2004, colaborou com a distinta sala de espectáculos como mentor
cultural para a língua portuguesa no programa Cultura para as Minorias: Carlos
Paredes, José Mário Branco, Vitorino, Tito Paris, Milton Nascimento e Amália
foram alguns dos reputados músicos que o beirense trouxe à Ópera, sempre com
grande sucesso. “O Carlos do Carmo foi o que veio mais vezes até porque falava
alemão, fruto dos seus estudos na Suíça”, lembra. Num outro espectáculo, Viena
encontra-se com Lisboa em Frankfurt, Teo desafiou o maestro António Vitorino de
Almeida a compôr canções para a austríaca Erika Pluhar e para Carlos do Carmo.
“Acabou com a Erika Pluhar a cantar fado em alemão”, diz.
O
trabalho de Teo e de Petra foi distinguido em 2015 e em 2020 com o Prémio
Alemão das Livrarias, para o melhor negócio livreiro do país. “O Teo meteu-se
sempre nas sessões de leitura e nos concertos sem olhar para o retorno
financeiro. A sua grande obsessão sempre foi a promoção da língua portuguesa e
da cultura lusófona”, diz Michael Kegler, tradutor de várias obras lusófonas
para alemão, incluindo de Gonçalo M. Tavares e de José Eduardo Agualusa.
Gonçalo M. Tavares disse ao jornal I, em 2014: “Sempre que os livros e a
cultura portuguesa estavam por perto, Teo estava por perto”. Até Saramago, em
Cadernos de Lanzarote, imortalizou a faceta altruísta do fundador da TFM: “O
Teo ajuda sempre, acha que nasceu para isso”.
Saramago
não deixou de retribuir o apoio do livreiro de Frankfurt. Cinco anos depois do
episódio do Nobel, aproveitando uma escala de uma viagem para os Países Baixos,
ofereceu-se para realizar uma sessão de leitura na cidade do rio Main. “Fui
logo pedir a sala do Volksbildungheim, de 500 lugares, no centro da cidade.
Como eram um domingo ao fim da tarde tinha receio de que houvesse pouco
público, pois os alemães aos domingos são muito caseiros”, explica Teo. Mas a
sala encheu. “Estavam 600 pessoas. Foi um momento que nunca vou esquecer”. Tiago
Carrasco – Portugal in “Contacto”
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