Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Guiné–Bissau – A “carta de chamada”

A Guiné-Bissau, essa Babel de etnias com tensões sempre mal resolvidas, ao tornar-se num país canibalizado pela cultura do golpismo, por vezes, parece não existir

Mas, esse caldeirão político, que se desfez da utopia de Amílcar Cabral, simbolizada na (fracassada) tentativa de unidade com Cabo-Verde, na realidade existe.

Hoje, capturado pelo sinistro casamento entre cartéis da droga e altas figuras do poder político, nada do que por lá acontece surpreende.

Mesmo depois do PAIGC - o maior opositor do exército português em África durante a guerra anti-colonial - ainda antes do derrube de o regime salazarista ter proclamado, a 24 de Setembro de 1973, em Madina do Bué, a Independência da Guiné-Bissau.

Podendo por ali de tudo um pouco acontecer, não surpreende, por isso, que, passados 49 anos, tenha sido elaborada e divulgada em Bissau uma controversa "carta de chamada".

Não é a "carta de chamada" a que estivemos habituados no tempo colonial. Não é a "carta de chamada" que, tradicionalmente, os portugueses enviavam aos familiares na antiga metrópole para engrossar a legião de colonos mobilizados para tomar conta da administração civil, dirigir os postos chaves do funcionalismo público, controlar o comércio, fortalecer a Polícia ou liderar outros serviços públicos e privados.

Não, não é desta "carta de chamada" que falamos. Desta vez a "carta de chamada" tem outras origens e é de outra natureza. Desta vez a "carta de chamada" tem o mesmo destino - Portugal - mas os seus subscritores não são portugueses.

Desta vez a "carta de chamada" foi subscrita por guineenses residentes em Bissau através de uma nota que dá conta da criação do chamado PNGP - Partido da Nova Guiné-Portuguesa, cuja bandeira contém exactamente as mesmas cores que o distintivo similar da soberania lusitana.

Desta vez, o conteúdo da carta - uma iniciativa de um grupo de activistas sociais e políticos daquele país - é assustador e vexatório. Mas, sejam quais forem as razões nela subjacentes, a carta não deixa de constituir um ultraje à memória daqueles que lutaram pela Independência da Guiné-Bissau e uma afronta à dignidade do povo guineense.

Só quem nunca esteve subjugado ao regime colonial - um regime que era a negação mais cruel da afirmação dos africanos - se permite propagar tão insultuoso devaneio: "fazer regressar os portugueses" para voltar a comandar os destinos da Guiné-Bissau, como se a vigência daquele regime nas antigas colónias tivesse sido uma maravilha...

Essa humilhação histórica não pode, pois, deixar de ser condenável, ainda que os seus promotores tenham concluído que "desde a Independência até à data presente não conseguimos o que esperávamos e nem tão pouco a chegada do multipartidarismo conseguiu mudar algo no nosso país".

Mas, tendo os líderes do PNGP - empurrados provavelmente por "algum oportunismo e ligeireza política" como lhe chamou um conceituado intelectual guineense - chegado a tão desoladora conclusão, não basta condená-los.

O que se passa na Guiné-Bissau - esperemos que a moda não pegue - é preocupante. Mas, como não se devem atacar as consequências sem primeiro avaliar as causas, mais do que condená-los, o importante é que, antes de tudo, as nossas lideranças políticas saibam dissecar as razões de fundo que os terão levado a renunciar a valores tão sagrados da saga independentista.

O tempo não volta atrás e, por isso, não havendo espaço para um retorno português nos moldes antigos, é chegada a hora dos guineenses se interrogarem sobre os erros históricos em que as suas elites políticas terão incorrido para que, por lá, se chegasse a este ponto.

É importante fazê-lo lá, mas também é importante fazê-lo aqui. Porquê?

Porque lá como aqui não existem - nem poderiam existir - razões que pudessem sustentar uma "carta de chamada" cujos autores muito provavelmente só conhecem o colonialismo por testemunhos e leituras enviesadas.

Mas isso não quer dizer que, tanto lá como aqui, não existam razões que estejam a dar alento ao desencanto de vários segmentos da população em relação a diversos modelos de governação que, ao longo de dezenas de anos, foram invariavelmente votados a estrondosos fracassos.

Se em determinado período da nossa história, o sistema de partido único e a importação de um modelo económico anacrónico funcionaram como grilhetas da liberdade política e do liberalismo de mercado, a chegada do multipartidarismo nem por isso conseguiu gerar as mutações sociais tão esperadas pelos seus cidadãos.

Na Guiné-Bissau, as suas lideranças políticas abandonaram Madina do Bué, mas, Madina do Bué não as abandonou. Prova disso é que praticamente desde a década de 80 do século passado, este país, transformado numa nova rota africana do tráfico de droga, nunca deixou de viver ensanguentado por golpes de estado atrás de golpes de estado.

Mesmo que ainda não se saiba se o último golpe foi mesmo um golpe, ou se foi uma "inventona" para justificar a ida de uma força da CEDEAO, ou ainda se, pelo meio, foi um ajuste de contas entre narcotraficantes.

Em Angola as duas principais forças beligerantes que, ainda antes da Independência, estiveram envolvidas numa longa guerra civil de consequências trágicas para várias gerações, há vinte anos restabeleceram a paz no país.

Mas, entre ambas, continuam a persistir as dúvidas, as desconfianças e um perigoso sentimento de exclusão e de ódio, que potencia perigosamente a instabilidade.

Na África Ocidental, a Guiné-Bissau está sequestrada por políticos de todos os quadrantes partidários que se julgam donos do país e por uma poderosa máfia ligada à droga e à lavagem de dinheiro que ameaça transformá-la num narco-estado.

Na África Austral, Angola está sequestrada pela droga da corrupção e continua a sofrer os efeitos do desvario de uma navegação à vista que, durante anos, conduziu o país para vários naufrágios e o manteve prisioneiro de uma escandalosa bebedeira financeira fomentada por uma liderança submersa numa criminosa deriva.

Ao terem sido colocados na contramão de uma boa governação, ainda que em dimensões diferentes, estes dois países, como titula numa das suas obras Francis Fukuyama,foram "Ficando para trás".

Ao terem ficado para trás, vivendo sob as malhas de regimes autocráticos e de uma economia distorcida, os seus cidadãos perderam oportunidades, foram atormentados com pesadelos sem fim, sujeitaram-se a intoleráveis desigualdades sociais, assistiram à destruição da classe média e foram alvo de episódios tirânicos atrozes.

Mas, afinal, porque é que estes dois países e outros do espaço lusófono em África ficaram para trás?

Ficaram para trás porque as suas elites políticas colocaram sempre o egoísmo dos seus interesses pessoais ou de grupo à frente dos interesses das comunidades que juraram servir.

Porque essas mesmas elites nunca quiseram aceitar que a democracia é sinónimo de debate, de seriedade, de negociações, de compromissos e de cedências.

Porque essas mesmas elites jamais perceberam que, em democracia, os protagonistas de impulsos autoritários para serem travados, precisam de se sentir "sitiados" por vozes críticas e de andar de "mão atadas" perante o livre exercício do poder das instituições democráticas.

Porque vetaram a criação de uma "cidadania virtuosa" com a clara intenção de não permitirem o desabrochar de instituições fortes, livres, transparentes e respeitadoras das leis.

Porque preferiram comportar-se sempre como cúmplices da intolerância política, da violação dos direitos humanos e da irracionalidade das hordas securitárias.

Porque nunca quiseram entender que, podendo as mudanças ser constitucionais e legais, não é por serem legais e constitucionais que essas mudanças são valorativas do jogo democrático.

Porque colocaram os recursos nacionais ao serviço da voracidade da cleptocracia que tomou de assalto o poder para mais facilmente passarem a instrumentalizar a oposição.

Porque apostaram em "políticas insensatas" para poderem bloquear a promoção do "direito de propriedade, do domínio da lei, de uma legislação representativa e eficiente, de partidos políticos com agendas sociais importantes para a sociedade, de um sistema judiciário independente, de uma distribuição adequada de poderes aos diferentes níveis do Governo e da redução da desigualdade social como fonte de instabilidade política".

Político da Guiné-Bissau, de Angola, de Cabo-Verde, de São Tomé e Príncipe ou de Moçambique, que preze a Independência do seu país, por certo recusará sempre abraçar a "carta de chamada" do PNGP.

Mas essa atitude patriótica só terá consistência se os cidadãos assistirem a um genuíno empenho dos seus governantes na redução de desigualdades sociais, os quais, como adverte Alves da Rocha, neste momento no nosso país assumem contornos ostensivamente "aberrantes e indignos dos preceitos da Constituição".

Se – como acrescenta ainda aquele académico - esses mesmos governantes perceberem que "a pobreza agrava substancialmente as diferenças entre as pessoas e é geradora de tensões entre as regiões".

Se, enfim, conseguirmos fazer emergir uma nova classe política que tenha a noção de que a democracia e o domínio das leis, para se manterem vivas, têm de ter líderes com capacidade para garantir aos cidadãos liberdade e inclusão políticas, crescimento económico e justiça social.

Se esses líderes não tiverem essas capacidades, em países como Angola, mesmo sem a "carta de chamada" de Bissau, assistir-se-á ao aumento do número de cidadãos que, como por aqui agora acontece, tenderá a rumar para Portugal, país que está cada vez mais transformado no lugar onde os antigos combatentes e governantes das ex-colónias desavergonhadamente recorrem para tratamento médico, acabando por se converterem em estranhos inquilinos das suas morgues.

Se é isso que queremos, então, amanhã não nos assustemos com as "cartas de chamada" de Bissau. Gustavo Costa – Angola in “Novo Jornal”

 


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