A Guiné-Bissau, essa Babel de etnias com tensões sempre mal resolvidas, ao tornar-se num país canibalizado pela cultura do golpismo, por vezes, parece não existir
Mas,
esse caldeirão político, que se desfez da utopia de Amílcar Cabral, simbolizada
na (fracassada) tentativa de unidade com Cabo-Verde, na realidade existe.
Hoje,
capturado pelo sinistro casamento entre cartéis da droga e altas figuras do
poder político, nada do que por lá acontece surpreende.
Mesmo
depois do PAIGC - o maior opositor do exército português em África durante a
guerra anti-colonial - ainda antes do derrube de o regime salazarista ter
proclamado, a 24 de Setembro de 1973, em Madina do Bué, a Independência da
Guiné-Bissau.
Podendo
por ali de tudo um pouco acontecer, não surpreende, por isso, que, passados 49
anos, tenha sido elaborada e divulgada em Bissau uma controversa "carta de
chamada".
Não
é a "carta de chamada" a que estivemos habituados no tempo colonial.
Não é a "carta de chamada" que, tradicionalmente, os portugueses
enviavam aos familiares na antiga metrópole para engrossar a legião de colonos
mobilizados para tomar conta da administração civil, dirigir os postos chaves
do funcionalismo público, controlar o comércio, fortalecer a Polícia ou liderar
outros serviços públicos e privados.
Não,
não é desta "carta de chamada" que falamos. Desta vez a "carta
de chamada" tem outras origens e é de outra natureza. Desta vez a "carta
de chamada" tem o mesmo destino - Portugal - mas os seus subscritores não
são portugueses.
Desta
vez a "carta de chamada" foi subscrita por guineenses residentes em
Bissau através de uma nota que dá conta da criação do chamado PNGP - Partido da
Nova Guiné-Portuguesa, cuja bandeira contém exactamente as mesmas cores que o
distintivo similar da soberania lusitana.
Desta
vez, o conteúdo da carta - uma iniciativa de um grupo de activistas sociais e
políticos daquele país - é assustador e vexatório. Mas, sejam quais forem as
razões nela subjacentes, a carta não deixa de constituir um ultraje à memória
daqueles que lutaram pela Independência da Guiné-Bissau e uma afronta à
dignidade do povo guineense.
Só
quem nunca esteve subjugado ao regime colonial - um regime que era a negação
mais cruel da afirmação dos africanos - se permite propagar tão insultuoso
devaneio: "fazer regressar os portugueses" para voltar a comandar os
destinos da Guiné-Bissau, como se a vigência daquele regime nas antigas
colónias tivesse sido uma maravilha...
Essa
humilhação histórica não pode, pois, deixar de ser condenável, ainda que os
seus promotores tenham concluído que "desde a Independência até à data
presente não conseguimos o que esperávamos e nem tão pouco a chegada do
multipartidarismo conseguiu mudar algo no nosso país".
Mas,
tendo os líderes do PNGP - empurrados provavelmente por "algum oportunismo
e ligeireza política" como lhe chamou um conceituado intelectual guineense
- chegado a tão desoladora conclusão, não basta condená-los.
O
que se passa na Guiné-Bissau - esperemos que a moda não pegue - é preocupante.
Mas, como não se devem atacar as consequências sem primeiro avaliar as causas,
mais do que condená-los, o importante é que, antes de tudo, as nossas
lideranças políticas saibam dissecar as razões de fundo que os terão levado a
renunciar a valores tão sagrados da saga independentista.
O
tempo não volta atrás e, por isso, não havendo espaço para um retorno português
nos moldes antigos, é chegada a hora dos guineenses se interrogarem sobre os
erros históricos em que as suas elites políticas terão incorrido para que, por lá,
se chegasse a este ponto.
É
importante fazê-lo lá, mas também é importante fazê-lo aqui. Porquê?
Porque
lá como aqui não existem - nem poderiam existir - razões que pudessem sustentar
uma "carta de chamada" cujos autores muito provavelmente só conhecem
o colonialismo por testemunhos e leituras enviesadas.
Mas
isso não quer dizer que, tanto lá como aqui, não existam razões que estejam a
dar alento ao desencanto de vários segmentos da população em relação a diversos
modelos de governação que, ao longo de dezenas de anos, foram invariavelmente
votados a estrondosos fracassos.
Se
em determinado período da nossa história, o sistema de partido único e a
importação de um modelo económico anacrónico funcionaram como grilhetas da
liberdade política e do liberalismo de mercado, a chegada do multipartidarismo
nem por isso conseguiu gerar as mutações sociais tão esperadas pelos seus
cidadãos.
Na
Guiné-Bissau, as suas lideranças políticas abandonaram Madina do Bué, mas,
Madina do Bué não as abandonou. Prova disso é que praticamente desde a década
de 80 do século passado, este país, transformado numa nova rota africana do
tráfico de droga, nunca deixou de viver ensanguentado por golpes de estado
atrás de golpes de estado.
Mesmo
que ainda não se saiba se o último golpe foi mesmo um golpe, ou se foi uma
"inventona" para justificar a ida de uma força da CEDEAO, ou ainda
se, pelo meio, foi um ajuste de contas entre narcotraficantes.
Em
Angola as duas principais forças beligerantes que, ainda antes da
Independência, estiveram envolvidas numa longa guerra civil de consequências
trágicas para várias gerações, há vinte anos restabeleceram a paz no país.
Mas,
entre ambas, continuam a persistir as dúvidas, as desconfianças e um perigoso
sentimento de exclusão e de ódio, que potencia perigosamente a instabilidade.
Na
África Ocidental, a Guiné-Bissau está sequestrada por políticos de todos os
quadrantes partidários que se julgam donos do país e por uma poderosa máfia
ligada à droga e à lavagem de dinheiro que ameaça transformá-la num
narco-estado.
Na
África Austral, Angola está sequestrada pela droga da corrupção e continua a
sofrer os efeitos do desvario de uma navegação à vista que, durante anos,
conduziu o país para vários naufrágios e o manteve prisioneiro de uma
escandalosa bebedeira financeira fomentada por uma liderança submersa numa
criminosa deriva.
Ao
terem sido colocados na contramão de uma boa governação, ainda que em dimensões
diferentes, estes dois países, como titula numa das suas obras Francis
Fukuyama,foram "Ficando para trás".
Ao
terem ficado para trás, vivendo sob as malhas de regimes autocráticos e de uma
economia distorcida, os seus cidadãos perderam oportunidades, foram
atormentados com pesadelos sem fim, sujeitaram-se a intoleráveis desigualdades
sociais, assistiram à destruição da classe média e foram alvo de episódios
tirânicos atrozes.
Mas,
afinal, porque é que estes dois países e outros do espaço lusófono em África
ficaram para trás?
Ficaram
para trás porque as suas elites políticas colocaram sempre o egoísmo dos seus
interesses pessoais ou de grupo à frente dos interesses das comunidades que
juraram servir.
Porque
essas mesmas elites nunca quiseram aceitar que a democracia é sinónimo de
debate, de seriedade, de negociações, de compromissos e de cedências.
Porque
essas mesmas elites jamais perceberam que, em democracia, os protagonistas de
impulsos autoritários para serem travados, precisam de se sentir
"sitiados" por vozes críticas e de andar de "mão atadas"
perante o livre exercício do poder das instituições democráticas.
Porque
vetaram a criação de uma "cidadania virtuosa" com a clara intenção de
não permitirem o desabrochar de instituições fortes, livres, transparentes e
respeitadoras das leis.
Porque
preferiram comportar-se sempre como cúmplices da intolerância política, da
violação dos direitos humanos e da irracionalidade das hordas securitárias.
Porque
nunca quiseram entender que, podendo as mudanças ser constitucionais e legais,
não é por serem legais e constitucionais que essas mudanças são valorativas do
jogo democrático.
Porque
colocaram os recursos nacionais ao serviço da voracidade da cleptocracia que
tomou de assalto o poder para mais facilmente passarem a instrumentalizar a
oposição.
Porque
apostaram em "políticas insensatas" para poderem bloquear a promoção
do "direito de propriedade, do domínio da lei, de uma legislação
representativa e eficiente, de partidos políticos com agendas sociais
importantes para a sociedade, de um sistema judiciário independente, de uma
distribuição adequada de poderes aos diferentes níveis do Governo e da redução
da desigualdade social como fonte de instabilidade política".
Político
da Guiné-Bissau, de Angola, de Cabo-Verde, de São Tomé e Príncipe ou de
Moçambique, que preze a Independência do seu país, por certo recusará sempre
abraçar a "carta de chamada" do PNGP.
Mas
essa atitude patriótica só terá consistência se os cidadãos assistirem a um
genuíno empenho dos seus governantes na redução de desigualdades sociais, os
quais, como adverte Alves da Rocha, neste momento no nosso país assumem
contornos ostensivamente "aberrantes e indignos dos preceitos da
Constituição".
Se
– como acrescenta ainda aquele académico - esses mesmos governantes perceberem
que "a pobreza agrava substancialmente as diferenças entre as pessoas e é
geradora de tensões entre as regiões".
Se,
enfim, conseguirmos fazer emergir uma nova classe política que tenha a noção de
que a democracia e o domínio das leis, para se manterem vivas, têm de ter líderes
com capacidade para garantir aos cidadãos liberdade e inclusão políticas,
crescimento económico e justiça social.
Se
esses líderes não tiverem essas capacidades, em países como Angola, mesmo sem a
"carta de chamada" de Bissau, assistir-se-á ao aumento do número de
cidadãos que, como por aqui agora acontece, tenderá a rumar para Portugal, país
que está cada vez mais transformado no lugar onde os antigos combatentes e governantes
das ex-colónias desavergonhadamente recorrem para tratamento médico, acabando por
se converterem em estranhos inquilinos das suas morgues.
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