A obra de Hugo Almeida é um livro-limite em que há uma quase cadência entre conto e romance que acaba por desmitificar a camisa de força dos dois gêneros
Certos casais, de Hugo Almeida (1952), foi publicado pela Editora Laranja
Original, de São Paulo, em setembro de 2021. Uma literatura que valeu o ano. Pode
ser considerado um marco para o princípio da década e para jamais ser
esquecido. É um livro-limite
no sentido de que há uma quase cadência entre conto e romance que acaba por desmitificar
a camisa de força dos dois. Assim
como se se fossem rompendo os diques literários. O entrelaçamento de
narrativas, ainda nessa cadência, constrói um autêntico palimpsesto,
universalizando numa tessitura única a verdade (no caso de ela existir) e a dor
de cada um dos personagens envolvidos.
Por um lado, é bem verdade que um
escritor atual, quando adota o ímã do erotismo, pode acabar sucumbindo a
maneirismos apelativos, tão típicos dessa era. Por outro lado, similar escolha
pode levar à consagração
quando, escapando aos “ismos”, devassa o singular. E que grande se faz a
literatura quando um escritor sofisticado como Hugo Almeida trilha esse caminho. Dessa forma, Certos casais passou fácil por tal prova de fogo da
contemporaneidade. E é instigante. Sente-se a vontade aberta de partir para uma
leitura sem pausa.
Tudo isso acontecendo sob um estilo
lindo e refinadíssimo. Sem concessões ao fácil. Ainda, a propósito dessa sofisticação,
obras pictóricas e clássicos da música são coadjuvantes nela. Surgem como uma
salvaguarda para o leitor percorrer as dores do caminho-vida, ilustrando bem
que “a arte existe porque a vida não basta”, conforme o poeta Ferreira Gullar
(1930-2016).
Hugo Almeida foi premiado em 1988
(por Nestlé) com o romance Mil corações solitários, já uma
explosão de pulsões. E esse código genético permaneceu na obra atual. Mas, o
autor envelhecendo, claro, agregou valor de vida ao que sente e aos que sentem
no que criou. Assim como se as pulsões estivessem trilhando certo apaziguamento
inelutável, melancólico, derivado do des-sentido frustrante da vida que passou.
Aquele mesmo das relações familiares sujeitas a uma
eterna convivência intolerável.
Nesse livro parece que as pulsões domesticadas se amoldaram, resignadas a estar
sob a inevitável colcha de desejos chamada vida.
Ou se trata mesmo da
miséria e glória pequena da vida quando a repartimos, sob o “despotismo da
carne”, com outra pessoa. Caetano Veloso cantou:
“A gente não sabe o lugar certo onde colocar o desejo”. Hugo Almeida compôs
agora um livro sobre essa perplexidade dolorosa, imensa e limitante. Mas, que ninguém se iluda, a imensidão
da vida nessa obra não se escraviza ao calabouço freudiano do erotismo. Ela se
sobrepõe, a maior parte das vezes, e pulsa para outros profundos. Aqueles do
que podemos ser quando integrais. Por exemplo, no conto “Outra vida para Dona Olímpia”, em que a religiosidade encarnada na
personagem observa. Observa e se compadece. Em outras palavras, o movimento íntegro que nos define humanos. E a
contraposição dele representada num clérigo nada pio.
O estilo de Hugo, tão decantadamente
“consanguíneo” ao de Dalton Trevisan, reza, sem dúvida, o abecedário das pedras
(aquela disciplina do frugal mas eterno – imperecível “roda da des-fortuna”). Porém,
em Certos casais, há o conforto da catarse escondida nesse “reino
mineral”.
Daí que surge uma talvez-remissão.
Desgarrado da primeira parte do livro, um casal célebre, Marie e Pierre Curie, responsável
por um avanço gigantesco para a humanidade, vai ser belamente biografado. Essa
segunda parte, portanto, será a quintessência do possível nas relações –
diamante iluminado. Esse casal é talvez o “cordeiro do deus-autor” entre os
outros, cujas vidas são às vezes
velhacas e tão demasiadamente sem luz e sem “mais”. Casal eleito do deus-autor?
Eles são, sem dúvida, a catarse que se sobrepuja ali como um contraponto às
narrativas da primeira parte, na qual espelhantes ressentimentos circulares sufocam
e sobrevivem do desamor – vidas de tanta pequenez.
À semelhança de um enredo policial,
esse edifício holográfico de contos-romance, interligando personagens e suas ações-reações-relações-fabulações,
aciona as revelações pessoais e o lado “dêusico” do escritor. Por isso, leitores,
concentrem-se nesse grande (um pouco em surdina) contar. Ele exige astúcia e
trabalha enigmaticamente nas entrelinhas. Nele o fluxo de consciência abre e
fecha os bastidores dessas vidas. Como se o já mencionado palimpsesto se fosse sobrepondo
para levar a uma só e melancólica, inelutável evidência: a da miséria e glória
pequena da vida quando a repartimos, sob o despotismo da carne, com outra
pessoa; seja isso por ataduras familiares, seja por eleições a priori de afeto (as mesmas que a posteriori
serão – quase infalivelmente – deceptivas). Ainda desse labirinto espelhado emergem
os perfis dos envolvidos no colorido da pluralidade de interpretações que se
pode atribuir aos personagens, os quais se falsificam através das palavras. Ser
com verdade e revelar-se, aqui, não se conjugam.
Ainda vale lembrar que, conforme
alguns, Deus joga dados com nossas vidas. E, talvez por isso, a questão primal
do livro (em “O sono do vulcão”),
de se “Deus fez o mundo à toa”, seja
o vértice dessa holografia de desejos.
O livro de Hugo Almeida não é um lugar resolvido, mas que se multiplica. Afinal, a
dinâmica dos desejos e/ou pulsões é uma parábola que não se esgota jamais. Isso é história... a história.
Dele e nossa.
Leiam. Alexandra Orsi - Brasil
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Certos casais, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Laranja
Original, 112 páginas, R$ 45,00, 2021. Site: www. laranjaoriginal.com.br
E-mail: contato@laranjaoriginal.com.br
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Maria Alexandra Orsi Cardoso de Almeida (1962) é formada em Letras pela Unicamp, cursou um
DEA (pós-graduação) em Línguas Romanas (Tradução) pela Universidade de Lyon,
França.
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