“Senhor da Chuva” é o título de um novo livro ilustrado editado em Díli sobre a ligação do poeta e antropólogo português Ruy Cinatti a Timor-Leste, vincada com ‘pactos de sangue’ com duas famílias de chefes tradicionais
“Quando
falava do Cinatti às pessoas, parecia estar a falar de uma lenda. Via a
curiosidade que as pessoas tinham e daí esta ideia de um livro, que não
pretende ser uma biografia, mas é sim uma exploração dessa rica ligação a
Timor-Leste”, disse a autora Mara Bernardes de Sá à Lusa. “É mais um ponto de
partida para descobrir Cinatti, um tributo. Um projeto que depois o artista
Bosco Alves abraçou e que agora é publicado”, afirmou.
O
livro de Mara Bernardes de Sá, em Timor-Leste desde 2015, está ‘pintado’ com
telas desenhadas propositadamente para o projecto pelo pintor timorense Bosco
Alves, atualmente um dos mais conceituados do país.
O
primeiro exemplar foi entregue ao Presidente português, Marcelo Rebelo de
Sousa, aquando da visita a Timor-Leste e o lançamento oficial da obra decorreu
no Centro Cultural Português.
A
autora explicou à Lusa que a ligação a Cinatti é praticamente tão antiga quanto
a ligação a Timor-Leste, já que na primeira viagem ao país recebeu o livro
“Condição Humana em Ruy Cinatti” de Peter Stilwell. “Foi a minha ligação a Ruy
Cinatti e a Timor-Leste, lia como se ouvisse o poeta e estava encantada com a
ilha, quando viajava levava comigo recortes de poemas e fotografias de Ruy
Cinatti que deixava em lugares que sentia terem significado”, explicou.
Depois,
mais tarde, percebeu o vinco ainda mais forte do poeta e agrónomo português ao
país, em virtude de dois pactos de sangue celebrados com Adelino Ximenes, então
‘liurai’ [chefe tradicional] de Loré, e Armando Barreto, ‘liurai’ de Ai-Assa.
Natural
de Chaves, Mara Bernardes de Sá tem obras publicadas, incluindo na antologia de
poesia “Mouth Ogres”, em várias edições de autor de alguns livros infantis e
com textos em livros, como “Timor Ruguranga” e “Olhares que falam”.
Da
nova obra e da exposição que a acompanha, fazem parte quatro telas pintadas
especialmente para o livro por Bosco Alves, de 57 anos, artista que fez a
primeira exposição, em Timor-Leste, em 2000, e já com obras em coleções
privadas em vários países.
A
par da apresentação do livro, está patente uma exposição de vários documentos
relacionados com Ruy Cinatti, espólio do Arquivo Nacional de Timor-Leste,
incluindo vários livros, na maioria em primeiras edições e fotografias da vida
do poeta.
Natural
de Londres, onde nasceu em 1915, Ruy Cinatti era agrónomo e poeta, dividindo-se
entre as ciências humanísticas e as ciências naturais. Chegou a Timor-Leste,
pela primeira vez, em julho de 1946, como secretário do então governador Oscar
Ruas, e no ano seguinte, com o país a recuperar das marcas da invasão japonesa,
percorreu o território, realizando um primeiro estudo.
O
estudo sobre Timor englobou temas tão diversos como a botânica, a meteorologia,
a etnologia e a arqueologia, tendo no pacto de sangue, alcançado uma ligação
eterna aos rituais mais sagrados do país.
Cinatti,
que nunca deixou de viver essa ligação de “irmão” timorense, é autor do que se
pensa ser o primeiro plano de fomento agrário do país e deixou uma vasta obra
ainda hoje referência essencial para estudiosos de Timor-Leste. Vencedor de
vários prémios literários, incluindo o Prémio Nacional de Poesia, viveu uma
forte ligação com Timor-Leste.
Em
2015, num evento alusivo ao centenário de Cinatti, na Escola Portuguesa de
Díli, a que ‘emprestou’ o nome, os herdeiros dos dois ‘liurais timorenses’,
Cornélio Ximenes (Mau-Nana), filho de Adelino Ximenes, e Saturnino Barreto,
bisneto de Armando Barreto, recordaram os pactos de sangue. “Tinha 10 anos
quando se fez o pacto de sangue. O pacto de sangue foi feito num lugar sagrado
entre o meu pai e o Ruy Cinatti, de forma privada. Com esse pacto ficam como
irmãos gémeos. Havia lá uma casa onde ele viveu e onde ainda há pinturas feitas
por um velhote que ainda está vivo”, afirmou Cornélio Ximenes.
Mau
Nana, como também é conhecido, disse que Cinatti pediu ao ‘liurai’, “que tinha
nove mulheres”, para dar o seu nome a um filho e, por isso “hoje há por aí
montes de Cinattis”. Saturnino Barreto,
por seu lado, lembrou ter sido feito, em Ai-Assa, além do pacto de sangue, uma
“cerimónia de bandeira de segunda linha”, tendo sido distribuídas bandeiras de
Portugal aos 18 chefes de ‘suco’ da região. “Sete dos chefes de ‘suco’ foram
com o ‘liurai’ de Ai-Assa e com o saudoso Ruy Cinatti para Ai-Assa onde houve
uma festa de um dia e uma noite. De manhã, os sete concentraram-se num lugar
sagrado para testemunhar o pacto de sangue”, disse. “A informação que o meu pai
me deu não explica o objetivo da cerimónia. O sítio onde foi feito o pacto de
sangue é sagrado. E não é qualquer pessoa que lá pode ir”, disse.
O
livro é editado pela Plural Editores,
do grupo Porto Editora, e a iniciativa é apoiada pela Embaixada de Portugal em
Díli, Escola Portuguesa de Díli, Fundação Oriente, Camões-Instituto da
Cooperação e da Língua e Arquivo e Museu da Resistência.
O
representante da Plural Editores disse à Lusa que “uma parte da missão da
Plural é o apoio e incentivo à edição, criação e publicação de livros
relacionados com Timor-Leste”. “Desde 2014 que se publicam livros sobre
Timor-Leste, com um acervo interessante, de todo o tipo. Livros ligados à
política, à economia, biografias de figuras relevantes no país e fotografia”,
considerou Paulo Calhau, notando que há “outros projetos na calha”. In “Ponto
Final” – Macau com “Lusa”
Poemas de Ruy Cinatti publicados no blogue “Baía da Lusofonia”:
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