No âmbito das comemorações do centenário do nascimento da autora, a Imprensa Nacional iniciou a publicação das Obras Completas de Maria Ondina Braga, escritora com grande ligação a Macau, onde leccionou inglês e português no início da década de 1960
As
autobiografias ficcionais de Maria Ondina Braga (1932-2003) compõem o primeiro
volume das Obras Completas da escritora, de que a Imprensa Nacional inicia a publicação
e que apresentou ontem em Braga, cidade natal da autora. “Estátua de Sal”,
“Passagem do Cabo” e “Vidas Vencidas” são os títulos reunidos neste primeiro volume,
que faz parte da programação das comemorações do centenário do nascimento da
autora de “A China Fica ao Lado”, de acordo com o anúncio da Imprensa Nacional
(IN).
A
obra de Maria Ondina Braga encontrava-se “há muito esgotada no mercado
editorial português”, realçou a IN, adiantando que a sua produção literária
será publicada em sete volumes, sob a coordenação dos professores Isabel
Cristina Mateus e Cândido Oliveira Martins, e contará também com “a colaboração
de estudiosos da obra da escritora, de várias universidades internacionais”.
Cândido
Oliveira Martins, especialista em Teoria da Literatura, é o editor responsável
pelo primeiro volume, que “permite ao leitor contemporâneo ‘descobrir a
escritora mais cosmopolita da literatura em língua portuguesa do século XX’”,
detentora de “um percurso multicultural único e uma voz pioneira na afirmação
de uma escrita no feminino, anterior à sua polémica irrupção nas vésperas de
Abril”. O segundo volume das Obras Completas será dedicado a “biografias
femininas”, o terceiro, a “romances”, o quarto e o quinto, a “narrativas
breves”, o sexto, a “outros textos” e, o sétimo e último volume, a “inéditos e
dispersos”.
Num
excerto de uma carta inédita da escritora Agustina Bessa-Luís, datada de 1968,
a autora de “A Sibila”, sobre Ondina Braga, afirmou: “A minha impressão
mantém-se; é uma escritora e não uma informadora de achaques da sensibilidade,
como outros e outras são. Só desejaria que pudesse escrever mais”.
Sobre
este primeiro volume, Cândido Oliveira Martins afirma, no prefácio, que “faz
todo o sentido a reunião destes três livros num volume inicial das suas Obras
Completas – ‘Estátua de Sal’, ‘Passagem do Cabo’ e ‘Vidas Vencidas’”. “Escritos
e publicados em épocas bem distintas da sua vida, estas autobiografias
ficcionais aproximam-se a nível da temática, da estilística e da mundividência
que caracterizam esta poética autoficcional, assente num contrato ou pacto de
leitura específico, com uma dicção literária muito própria, singularizando-se
claramente face às outras obras da autora”, que “escolheu resolutamente para si
uma vida singular — escritora, professora, tradutora”, acrescenta o
investigador do Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos da Universidade
Católica de Braga.
Maria
Ondina Braga foi preceptora de crianças na Grã-Bretanha, onde concluiu estudos
de língua inglesa na Royal Society of Arts, e em França, onde prosseguiu os
estudos na Alliance Française. Foi professora em Angola, Goa, Macau e Pequim,
além de tradutora. Em Macau leccionou inglês e português no Colégio Santa Rosa
de Lima entre 1961 e 1965. Em 1982 rumou a Pequim para ensinar português no
Instituto de Línguas Estrangeiras.
“O
seu percurso de vida e literário confunde-se com a ideia de deslocação ou
viagem, numa cartografia que passa pelos quatro continentes, do Brasil ao Sri
Lanka ou Singapura. Esta condição itinerante e multicultural constitui a marca
de água de uma escrita que experimenta vários géneros, da crónica ao conto, das
memórias ao romance, além da poesia e diários ou notas de viagem. Com destaque
para a autobiografia e autoficção, além das biografias breves de várias
mulheres escritoras (algumas delas inéditas): Virginia Woolf, Irene Lisboa,
Selma Lagerlöf, Katherine Mansfield, George Sand, Rosalía de Castro, Sei
Shonagon e Anaïs Nin, entre outras”, escreve Cândido Oliveira Martins.
Maria
Ondina Braga colaborou em vários jornais, nomeadamente Diário de Notícias,
Diário Popular, n’A Capital, e também em revistas, como Panorama, Mulher, Acção
e Colóquio/Letras. Numa entrevista à jornalista e escritora Maria Teresa Horta,
em Abril de 1992 (Diário de Notícias), Maria Ondina Braga declarou: “Penso que
a única coisa que me deu gosto na vida, o que na verdade me interessou, foi
escrever”. Maria Ondina Braga recebeu o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia
das Ciências de Lisboa, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Literatura
ITF/dst.
Sobre
os títulos reunidos neste primeiro volume, o co-coordenador do projecto recorda
que “Passagem do Cabo” foi publicado pela primeira vez em 1965, pela
ex-Agência-Geral do Ultramar, na sua colecção “Unidade”, sob a direcção de Luís
Forjaz Trigueiros, com o título de “Eu Vim para Ver a Terra”. Em 1994 voltou a
ser publicado, pela Editorial Caminho, com “muito significativas alterações,
incluindo um novo título, embora a belíssima frase do título original se
mantenha no ‘incipit’ narrativo da obra”, assinala Cândido Oliveira Martins,
acrescentando que o “livro foi objecto de outras mudanças consideráveis, com
destaque para a introdução de novos textos, sobretudo significativamente
alterados face à 1ª edição”.
“De
facto, o aturado trabalho de reescrita opera uma revisão muito profunda do
texto original de cada capítulo. No trabalho que preside à nova edição foram
acrescentadas quatro secções, cujos títulos reforçam a ideia de etapas de uma
viagem ou itinerário, desde África até Macau, bem como a inclusão de frequentes
epígrafes poéticas, próprias e alheias (de Fernando Pessoa, Agostinho Neto,
Vimala Devi, Camilo Pessanha, Almada Negreiros). Ao mesmo tempo, a reedição de
‘Passagem do Cabo’ é ainda enriquecida com múltiplas epígrafes entremeando os
vários capítulos”, escreve Oliveira Martins, sugerindo que “seria muito
elucidativo e proveitoso um trabalho de crítica genética que cotejasse
analiticamente todo este trabalho de revisão”.
“Estátua
de Sal”, escrito em Macau, em 1963, foi editado pela primeira vez em 1969, pela
Sociedade de Expansão Cultural. “Entre outras particularidades, nesta edição
inaugural, na capa e folha de rosto, continha apenas o nome de ‘Maria Ondina’,
alterando depois para Maria Ondina Braga. Ao mesmo tempo, esta edição inicial
contava com o elogioso prefácio de um prestigiado escritor nortenho, intitulado
‘Algumas palavras de Tomaz de Figueiredo’, texto prefacial onde a franca
apreciação de qualidades da jovem escritora coexiste com um natural
paternalismo do consagrado escritor, também ele de raízes bracarenses e
minhotas”, escreve Cândido Oliveira Martins.
Cândido
Oliveira Martins revela que, num exemplar da primeira edição, actualmente na
posse da família da escritora, Maria Ondina Braga deixou um comentário à sua própria
obra: “’Estátua de Sal’ foi decerto um dos mais belos textos que escrevi.
Palavras, pois, que pedi ao grande escritor Tomaz de Figueiredo, e assim com
ele encontraria eu um verdadeiro livro. Acabei, pois, por ser simplesmente como
sua filha que me chamava ‘alma’ e eu a pertencê-lo ao mundo do ‘alheamento e da
solidão’”.
“Vidas
Vencidas”, terceiro título incluído neste volume, foi editado uma única vez,
pela Caminho, em 1998, na colecção “O Campo da Palavra”. “Está estruturado em
17 capítulos breves, recorrendo à estratégia citacional de colocação de algumas
epígrafes, apenas do poeta António Nobre”, afirma o coordenador do projecto.
Quanto
ao “processo de fixação do texto destas três obras, seguimos as edições mais
recentes, publicadas em vida pela autora, embora sem desconhecer a [sua]
evolução”, explica Cândido Oliveira Martins, sobre o trabalho de coordenação
desenvolvido com a professora da Isabel Cristina Mateus, do Centro de Estudos
Humanísticos da Universidade do Minho, especialista em Literatura Portuguesa
Moderna e Contemporânea.
De
contos e crónicas como os reunidos em “Amor e Morte”, “A Revolta das Palavras”
e no derradeiro “O Jantar Chinês”, à novela e ao romance, como em “A
Personagem”, a obra de Maria Ondina Braga reúne perto de duas dezenas de
títulos como “Os Rostos de Jano”, “Estação Morta”, “A Casa Suspensa”, “Nocturno
em Macau”, “A Rosa de Jericó” e “Filha do Juramento”, além de “Angústia em
Pequim”, relato de uma vivência expatriada, como leitora de português.
Uma
“sagaz e ‘distanciada’ biógrafa da sensibilidade feminina, em conflito com as
regras obsoletas, por vezes ferozes, por vezes ridículas, de uma sociedade
masculina arcaica e repressiva”, escreveu Urbano Tavares Rodrigues, o autor de
“Bastardos do Sol”, sobre a obra de Maria Ondina Braga, num artigo sobre a
escritora, no antigo Jornal do Comércio. In “Jornal
Tribuna de Macau” – Macau com “Lusa”
Sem comentários:
Enviar um comentário