Os
Jogos Olímpicos de Paris 2024 são um acontecimento típico dos tempos que
antecipam a conhecida “armadilha de Tucídides” que os dirigentes europeus
deviam conhecer e lhes devia servir de orientação, se fossem cultos e sensatos,
e se a História não fosse uma prova de que em situações de crise a humanidade
escolhe ser dirigida pelos mais grotescos dos seus exemplares, os que fecham os
olhos e investem contra o que lhes surge entre a sua ambição e a parede onde
vêm o inimigo, mais uma prova de que a racionalidade é um bem descartável,
sempre à mercê da arrogância e da ambição.
A
estudada armadilha de Tucidides (quem raio seria o Tucidides, devem
perguntar-se os warmongers em Washington e em Bruxelas, porque
certamente em Moscovo e em Pequim sabem e têm demonstrado que o sabem?) refere
a inevitabilidade de um conflito quando uma potência em ascensão ameaça
substituir uma potência dominante. Como hoje acontece entre a ascensão da China
e da Rússia, agregadores dos BRICS, e a decadência dos Estados Unidos e do que
estes designaram como o Ocidente Global, que são os Estados Unidos, os
satélites europeus e os aliados do Pacífico, a Austrália, a Nova Zelândia, o
Japão e a Coreia.
A
Primeira Grande Guerra começou dois meses antes do conflito armado, no maior
evento desportivo da altura, a Regata de Kiel, que reunia na cidade alemã os
maiores e melhores iates do mundo, o que quer dizer da Europa e que nesse ano o
Kaiser Guilherme queria aproveitar para celebrar o novo poder naval alemão e
assim desafiar a hegemonia naval da Inglaterra, fazendo essa demonstração sob a
capa de uma grande festa desportiva. Nada revela tão bem a insensatez e a
insensibilidade dos europeus para a grande guerra que estava prestes a
envolvê-los no que começou por ser uma disputa germano-britânica do que a
regata de Kiel na época do assassinato em Sarajevo do arquiduque da Áustria.
O
correspondente americano Frederic Wile escreveu mais tarde sobre o evento: “Por
aquela circunstância oculta que determina com deleite diabólico a ironia do
destino, foi ordenado que Kiel, 1914, fosse a ocasião de uma espetacular festa
de amor anglo-germânica, com uma esquadra de navios britânicos ancorados no
meio da pacífica Armada Alemã como um sinal para todo o mundo do calor não
explosivo das ‘relações’ anglo-germânicas. “A semana, que começou em 24 de
junho, não mostrou nenhum sinal de tensão entre as frotas britânica e alemã. .
. o Kaiser embarcou num navio de guerra britânico vestindo um uniforme de
almirante britânico, uma honra que veio de um título dado a ele por sua avó, a
Rainha Vitória. Marinheiros das duas nações se entretiveram com bebidas,
danças, boxe e uma “noite de sábado turbulenta que se fundiu com o domingo de
Sarajevo”.
O assassinato lançou um ar temporário de “tristeza e presságio” sobre as celebrações em
Kiel, mas não diminuiu a amizade entre os ingleses e os alemães. Homens em
ambas as marinhas falaram entusiasticamente sobre rumores de que a Marinha Real
logo retribuiria a hospitalidade dos novos amigos alemães. Um observador com
conexões próximas em ambos os países observou [mais tarde], “Estou certo
de que nenhuma alma de nós se considerou capaz de imaginar que, por causa
daquele crime remoto, a Grã-Bretanha e a Alemanha estariam em guerra cinco
semanas depois.”
Os
jogos Olímpicos de Paris têm semelhanças com a regata de Kiel, até com o
desfile dos barcos no rio Sena, que replica a dos iates no canal de Kiel — são
uma festa de aparências que os dias de chuva da abertura prenunciam como a
tempestade que se aproxima.
Os
Jogos Olímpicos de Berlim, de 1936 prenunciaram o mesmo fenómeno de uma guerra
após o espetáculo de convívio à volta do desporto.
Os
Jogos Olímpicos de Paris 2024 seguem o mesmo guião, agora com ainda mais
evidentes sinais de que marcam o final de uma época e com claros sinais de jogo
de guerra.
O
espetáculo montado na cidade luz que reúne os melhores atores mundiais, os mais
profissionais, as vedetas transformadas em ídolos na encenação, no canto, na
dança na representação, na performance desportiva e tecnológica é uma afirmação
de superioridade do Ocidente Global, que através dele desafia a Rússia, com
quem está em competição, negando-lhe a participação. Não houve coragem de negar
a entrada à China. Os BRICS fazem figura de amante a conquistar. A China
entendeu que ainda não era tempo de separar águas. Tem tempo. O Ocidente e a
Europa em particular e a pequena França do pequeno Macron demonstraram não ter
a grandeza, ou sequer a dignidade de afirmar uma autonomia, convidando a
Rússia, mas acolhendo com palmas Israel, o grande peão dos Estados Unidos para
dominar o Médio Oriente, um espaço de interesse estratégico vital para a
Europa. A sujeição da Europa aos Estados Unidos é absoluta. Já decidiu obedecer
aumentando as suas despesas militares adquirindo material americano. A única
sombra que paira, o imponderável que retirou o senil imperador do trono e abriu
a hipótese ao regresso do imperador incendiário. Os Estados Unidos estão em
convulsão interna e não podem aproveitar este momento único de afirmação de
poder que lhes foi preparado em Paris.
O
grande aparelho de manipulação universal através das redes de comunicação
encarrega-se de mostrar as tribunas presidenciais e as habilidades dos
artistas, os seus pequenos e grandes dramas. Morre-se na Ucrânia numa guerra
por procuração dos organizadores dos Jogos, morre-se na Palestina, no Líbano às
ordens do Império, morre-se no Sudão, em África, mas corre-se, salta-se,
dança-se, nada-se, rema-se, boxeia-se, esgrime-se, skata-se, joga-se com todas
as bolas, sobre relva, tartan e pó de tijolo, discute-se o sexo dos atletas,
com exibição de genitais onde devia estar uma outra peça da natureza, mas, mais
do que a guerra e a paz interessa o politicamente correto.
Perante
este espetáculo de Coliseu Romano, onde se discute com arreganho se uma das
cenas da abertura é a Ultima ceia do Novo testamento da Bíblia ou uma
representação de uma orgia de deuses pagãos, a pergunta dos impotentes que
somos nós, os arredados de todas as decisões nas democracias que nos são
apresentadas como o fim da História, porque nada mais os povos têm a dizer
contra o poder das oligarquias, devíamos, se nos fosse permitido, perguntar
quando serão as novas Olimpíadas, ou se haverá novas Olimpíadas. Mas, já que
nada aprendemos com a Regata de Kiel, nem com Berlim 1936, porque haveremos de
aprender com Paris 2024? As bestas que nos governam são da mesma estirpe e os
governados são a mesma manada que irá servir de carne para canhão. Matos Gomes
– Portugal in “Medium”
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