Obra
do professor Flávio R. Kothe traz 30 contos que procuram penetrar nos mistérios
insondáveis da alma
I
Vítima
de atos arbitrários tomados pelos militares e seus áulicos depois que
assaltaram o poder em 1964, que o levaram a passar longos anos fora do Brasil, Flávio
R. Kothe, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), volta a se
inspirar em sua própria vida para escrever vários dos 30 contos que integram Rio
do Sono (São Paulo, Editora Cajuína, 2023), a exemplo do que fez
também em Crimes no campus: novela de detetive (São Paulo,
Editora Cajuína, 2023).
Em
ambos os livros, o autor procura recuperar memórias perdidas, nem todas ligadas
à ditadura, como se a literatura fosse uma historiografia inconsciente, ou uma
recuperação do ocultado na História. Como exemplo, basta lembrar que, em
novembro de 1989, o autor estava em Berlim quando houve a queda do muro que
separava as duas Alemanhas. E que, com as lembranças desse episódio, escreveu O
Muro (São Paulo, Editora Scortecci, 2016), longo romance histórico sobre
o processo de desintegração do socialismo na Alemanha Oriental.
Enfim,
uma vida de muitas aventuras e várias desditas. Depois de ingressar na UnB em
1974, foi afastado da instituição ao final de 1977, início de 1978, juntamente
com outros professores que lutavam pela criação da Associação dos Docentes. Foi
anistiado pela emenda constitucional nº 18, ao início de 1988, quando já estava
na Universidade de Rostock, na Alemanha, como catedrático visitante.
Trata-se
da mesma emenda que favoreceu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “O
problema foi que a Universidade não me recebeu de volta como professor, pois fiquei
esperando por cinco anos. E só fui reintegrado em dezembro de 1992, com a ajuda
do procurador-geral da UnB, que eu conhecia de Piracicaba, mas não fui
“alocado” em nenhum departamento, pois não me queriam de volta”, recorda.
Segundo
o professor, ele teve de esperar por quase um ano até ser realocado por decisão
do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe). “Quando voltei a dar aula,
na segunda semana, uma aluna me chamou a atenção para uma bolsa que havia
ficado numa carteira aos fundos. A identidade nela não correspondia a nenhum
aluno matriculado, era de um policial, e havia ainda um revólver dentro”, conta.
“Eu estava me sentindo tão ameaçado que entreguei a bolsa na portaria da
universidade, como se fosse um objeto esquecido, mas era um recado”, acrescenta.
Anos depois, já no governo Dilma Rousseff (2011-2016), recebeu um pedido de
desculpas da União, pelas perseguições a que havia sido submetido.
II
Em
seu retorno à Universidade, recorda que encontrou má vontade e perseguição também
por parte de colegas que haviam coonestado o regime espúrio e estabelecido oligarquias
regionais no ensino público. Tudo isso o leitor encontrará em textos que vão
prendê-lo pelo enredo, pela magia da linguagem e por personagens que nos
parecem familiares.
O
título do livro vem desse desfiar da memória, que escorre como um curso d´água,
o que levou o autor a optar por essa escolha depois de conhecer o verdadeiro
Rio do Sono, que sai do parque estadual do Jalapão e percorre todo o Estado de Tocantins.
E ainda dá nome a um hotel em Palmas, capital do novo Estado, criado em 1989, onde
ele ficou hospedado por duas ou três semanas, quando foi ministrar um curso de
pós-graduação, dentro de um acordo da UnB com a universidade local que se
destinava a preparar quadros para a administração estadual.
Isso,
porém, não significa dizer que o livro traz apenas relatos autobiográficos
porque o autor, tal como um repórter, reproduz com suas palavras o que
testemunhou em sua vida nômade, trançando o texto “como a bordadeira faz com
fios, o artesão faz com cores no vasilhame, a fazedora de redes faz no trançado”,
como se lê no texto de apresentação na contracapa, em que consta também a
advertência segundo a qual o que o leitor vai encontrar na obra “não é bem
idêntico ao que fez o autor”.
Ou
ainda como se pode constatar nas palavras do próprio autor em entrevista que
deu, em 5/3/2023, ao jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz
do Sul-RS, sua cidade natal: “Quando adormecemos, imagens do inconsciente nos
visitam, chamam a atenção para o caráter simbólico de cenas e coisas que
havíamos olvidado. A maior parte disso retorna ao esquecimento, mas algumas memórias
se mantêm, são reelaboradas pela fantasia em novas unidades”.
III
Um
dos contos que transmitem ao leitor a dureza – nem sempre confessada – pela
qual costumam passar aqueles que se desiludem com o País e vão buscar melhor
sorte no exterior é o que leva o título “Banco de jardim”, texto longo, de 24
páginas, em que o personagem conta um pouco da vida difícil pela qual teve de
passar, como se vê neste trecho:
“(...) Tive de trabalhar no que aparecia. Fui servente de
pedreiro na Áustria, chapeiro do Mac Donald na França, pizzaiolo na Inglaterra.
Cedo aprendi que nesses países eu não tinha alma, não valia nada o que eu havia
aprendido em escolas no Brasil. Só tinha o meu corpo para sustentar meu corpo.
Fiz um curso de hotelaria e, como era fluente em algumas línguas, consegui
emprego em uma rede hoteleira internacional.” (pág.
306).
Sobre
este conto, o autor passou para este resenhista que o texto começou como uma
espécie de homenagem, mas observou que o importante, no entanto, era delinear
dois horizontes diferentes. “Ou seja, um mais conformista, de autoajuda, que
não havia tido embates com a repressão e tinha sido aceito pela grande mídia;
outro, não apenas marginal, pois não quer ficar apenas à margem, e não apenas
marginalizado, pois seria aceitar o mando e o comando de quem ficou e está com
todo o apoio do poder, mas que conseguiu suspeitar de um horizonte mais amplo,
com voos de condor (ou abutre) sobre abismos”.
O
autor lembrou que, neste conto, havia procurado expressar a limitação do
primeiro lado nos seus quatro volumes sobre o cânone brasileiro, escritos na
solidão de Rostock, enquanto via um mundo se desfazendo e sendo desfeito ao seu
redor. “Esse horizonte estrito de expectativa é o que domina a intelectualidade
e o público leitor brasileiro. O que é celebrado sempre tem estado dentro desse
horizonte. O paradoxo é que isso, que é premiado e aplaudido, não tem nada a
dizer que já não tenha sido dito. O problema está, portanto, na liberdade que
se abre para os diversos sendeiros ainda não percorridos, onde se pode e se
precisa começar a pensar. Exatamente o que não se faz. Em vez de ver nas luzes
que por aí estão penduradas, eu vejo alertas de escuridão”, concluiu.
No
conto “O pássaro preto”, também é um professor que, em São Paulo, vindo de
Berlim, já divorciado, reencontra uma cientista muito reconhecida e que, depois
de um novo flerte, desiste do relacionamento, como se vê neste excerto:
“(...) O que mais me tirava o ânimo – se bem me entendem –
era a possibilidade de casar. Eu não casaria com mulher capaz de casar comigo.
O antídoto da atração não era só o casamento: já havia gente demais na Terra.
Eu já estava então casado: com minha tese, pura alma, a que eu tinha de dar
corpo. Enquanto não me divorciasse dela, não me deixaria seduzir por belas
curvas e um doce sorriso. Eu era fiel a meu modo. Praticava uma cegueira
seletiva: não queria ver o futuro da tese ou o que seria depois. Era uma
corrida curta, com barreiras”. (pág. 263).
IV
Já
no conto “Dos papeis de Willie”, o personagem principal é um self made
man com mais de 70 anos, divorciado e abandonado pela família, que já
passou por um câncer e vive numa clínica de idosos à espera do desenlace fatal.
Enquanto isso, recuperara um pouco de suas memórias, deixando-as registradas em
papeis que, depois de sua morte, vão parar nas mãos do amigo que faz uma
espécie de preâmbulo para o conto. Eis um trecho:
“(...) Também eu estou tendo de ver a vida a partir da
perspectiva da morte. Estou morrendo aos poucos. Meus pais – e digo pais e não
meu pai – não mereceram o filho que tiveram em mim. Não estavam à altura de sua
tarefa. O meu destino era ficar capinando na roça, sendo açoitado como um
escravo. O que me salvou foi um padre que me indicou para o seminário católico,
onde fiquei estudando até ingressar na faculdade pública. Meus pais fizeram o
melhor possível: não atrapalharam”. (pág.
101).
Ao
procurar explicar a gênese de seus contos, Kothe lembrou ainda que uma tese
antiga é que a grande obra precisa surgir a partir do horizonte instituído, mas
indo além dele. “Quando procuro relatar histórias pouco ou nada contadas,
quando falo da repressão da ditadura, esse é apenas um aspecto da questão”,
ressaltou. “Acho que a literatura tem condições de sugerir reflexões que o
ensaio em geral não consegue. Não é qualquer obra que aparece por aí ou até
consegue ser premiada. É uma obra para raros. Vai demorar que seja percebida
como tal. Ela como que vai ter de criar o seu próprio público”, acrescentou.
Para
o autor, se o jornalismo vive da notícia imediata, a literatura não: “Ela vive
do olvido do fato imediato, para buscar aquele núcleo em que se entrecruzam
vivências e reflexões, para permitir que saiamos do nosso imediato”. Por aqui
se constata, de maneira ainda mais clara, o olhar do ficcionista, que enxerga
além das aparências e procura, como um fotógrafo, retratar os mistérios
insondáveis da alma. E tudo com fino
humor e sutil ironia. Por isso, não é demais enfatizar, não irá se arrepender
quem se aventurar a ler estes contos. Pelo contrário. Só terá a ganhar em
experiência de vida.
V
Nascido
em Santa Cruz do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, Flávio René Kothe
(1946) é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP), com livre-docência pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC), de Campinas. Fez estágios de pós-doutorado nas universidades de Yale, nos
Estados Unidos, Heidelberg, Berlim, Konstanz, Bonn e Frankfurt, na Alemanha.
Lecionou também na PUC, de São Paulo, e na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Na
Europa, teve como interlocutores alguns dos maiores nomes da Filosofia, da
Literatura e de outras Ciências Humanas. Em seu retorno à UnB, trabalhou com as
disciplinas de Teoria Literária, Literatura Comparada, Tradução, Narrativa Trivial
e Cânone Brasileiro.
Dedica-se,
sobretudo, a questões de estética, arte comparada e semiótica da cultura.
Atualmente, coordena o Núcleo de Estética, Hermenêutica e Semiótica e é editor
da Revista de Estética e Semiótica, que está
no Portal de Periódicos da UnB. Foi presidente da Academia de Letras do Brasil,
em Brasília, por três períodos (seis anos), e é editor da revista impressa da
instituição, de publicação semestral.
Dono
de vasta obra que inclui mais de 50
livros e mais de 600 trabalhos publicados nos gêneros romance, novela, contos,
poesia, tradução e ensaios, entre os seus últimos títulos (todos publicados
pela Editora Cajuína) estão também: Alegoria,
aura e fetiche (ensaios, 2023), O herói (ensaios,
2022), Benjamin & Adorno: confrontos (ensaios,
2020), O cânone colonial (ensaios, 2020), Literatura
e sistemas intersemióticos (ensaios, 2019), Fundamentos
da teoria literária (ensaios, 2019), Segredos da
concha (contos, 2019), Sem deuses mais (poesias,
2019) e Casos do acaso (contos, 2018).
É
tradutor de autores como Walter Benjamin (1892-1940), Theodor Adorno
(1903-1969), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Karl Marx (1818-1883), Paul Celan
(1920-1970), Franz Kafka (1883-1924), Heinrich Mann (1871-1950), Patrick
Süskind (1949) e outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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Rio do Sono, de Flávio R. Kothe, com painel na capa do pintor, gravador, cenógrafo, figurinista e professor D. J. Oliveira (1932-2005). São Paulo: Editora Cajuína, 348 páginas, R$ 110,00, 2023. Site: www.cajuinaeditora.com.br E-mail: contato@editoracajuina.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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