Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Demarchi: relatos além da imaginação

                                                                            I

A tênue película que nos separa deste mundo (João Pessoa-PB, Ideia Editora, 2024), que obteve o primeiro lugar no Concurso Nacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE), da Paraíba, é o primeiro livro de ficção de Ademir Demarchi, poeta consagrado com mais de uma dezena de livros publicados no gênero, além daqueles que reúnem ensaios e crônicas. Obra de inspiração onírica, seu novo livro traz pequenos relatos escritos a partir de sonhos ou mesmo pesadelos que, muitas vezes, beiram o fantástico, fazendo o leitor penetrar num universo kafkiano em que as regras são dominadas ou violadas pela imaginação.

São relatos que se aproximam do conto, mas que, escritos em prosa poética, avizinham-se também da poesia, como aquele que leva o título “A avó”, que, de poucas linhas, segue aqui na íntegra à guisa de exemplo para o estilo do texto que o leitor irá encontrar:

          “O homem, diferentemente de todos os seus amigos freudianos, rejeitava todas as mulheres que se parecessem com sua mãe. Bastava lembrar o tamanho diminuto que a assemelhasse a uma espécie de chinesa, identificar um traço como um modo de mover os lábios, a cor dos cabelos, o jeito de olhar... que ele se desinteressava, continuando sua busca interminável. Até que um dia encontrou uma mulher que o seduziu e com a qual se casou. As gozações feitas pelos amigos, baseadas no fato dele querer ser diferente falsearam e mudaram de tom quando conheceram a avó desse homem e descobriram que a mulher que ele encontrara era uma cópia dela”. (pág. 47).

Já o título do livro vem exatamente do relato que encerra a obra, “Ler e enlouquecer”, em que o autor diz que escrever é como se meter em um sonho, ao procurar contestar aquelas “pessoas que acham que enlouquecem se entrarem por um livro adentro, atravessando a tênue película que nos separa deste mundo”. (pág.133).  E que, de certo modo, faz lembrar aquela passagem bíblica em que Festo diz, em voz alta, a Paulo: “Estás louco, Paulo, as muitas letras te fazem delirar” (Atos, 26:24). E o apóstolo responde que não delira: “(...) antes digo palavras de verdade e de um são juízo”.

 

                                                         II

É o que faz também Demarchi que, ao beber na fonte da intertextualidade, procura reviver cenários, sensações e experiências individuais através de um alter ego, como se constata naquele mesmo relato que encerra o livro, em que ele cita Nueva antologia personal (1968), de Jorge Luis Borges (1899-1986), obra que parece ter marcado decisivamente a sua trajetória como escritor, a ponto de ter escolhido para um dos seus livros o título Antologia impessoal (Florianópolis, Nave Editora, 2022), que remete para o autor argentino.

Enfim, o que o leitor vai encontrar são relatos marcados por uma visão poética da realidade que, pelo tom e pela forma, vão deixá-lo diante das reflexões de um poeta ou ficcionista, todas repassadas de lirismo e, às vezes, de um clima fantástico, mas que se caracterizam por uma poetização do cotidiano, como se vê neste trecho do relato intitulado “A estrada da vertigem horizontal”:

          “Entrei também em catedrais portentosas e de arrojo arquitetônico externo, porém vazias de tudo por dentro... Numa delas, com o pavilhão enorme e sem nenhum móvel sequer para sentar, o prédio em formato cônico apontando para um céu infinito e negro, tive a sensação de certa falta de ar, um estranhamento que sonegava dos olhos toda noção de céu azul e colocava em seu lugar o infinito negrume do universo. Depois que consegui me abstrair da sedução narcótica da transcendência retornei à rua e entrei em outro prédio com numerosas salas destinadas a artistas (...)”. (pág. 43).

 

                                                         III

Ademir Demarchi (1960), nascido em Maringá, no Paraná, mas estabelecido em Santos e São Vicente, no litoral do Estado de São Paulo, desde 1993, foi editor das revistas de poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, de 2000 a 2017, e Babel Poética, de 2011 a 2013, premiada em primeiro lugar entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento de 2009/2010, do Ministério da Cultura. Atualmente, é coeditor da revista digital Poetrishy, mantida pela University of Bristol, da Inglaterra.

É graduado em Letras na área de Francês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com tese que teve a orientação do professor argentino Raul Antelo, um dos maiores especialistas acadêmicos na área da Antropofagia. É ainda doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), na mesma área.

Começou sua trajetória poética em 1979, com Ironia e poesia, ainda à época da geração do mimeógrafo. Depois, em 1985, publicaria Maria, a cidade sem rosto, também impressa por mimeógrafo, pelo Diretório Central dos Estudantes da UEM, obra que seria reescrita e incluída em Pirão de sereia (Santos, Realejo Livros, 2012), que reúne sua obra poética de 30 anos. São poemas que têm por inspiração a vida na cidade de Maringá à época do regime militar (1964-1985) e pós-ditadura.

Publicou também Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Livros, 2007); Passeios na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007; Lima, Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012);  Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos, Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); O amor é lindo (São Paulo, Editora Patuá, 2016); Siri na lata (Santos (Realejo Livros, 2015); Gambiarra: uma pinguela para o futuro do pretérito (Bragança Paulista, Urutau, 2018); Espantalhos, ensaios (Florianópolis, Editora Nave, 2017); Contrapoéticas, ensaios, resenhas, prefácios e depoimentos (Florianópolis, Editora Nave, 201); In fuck we trust, poemas (Bragança Paulista, Editora Urutau, 2020); Cemitério da FilosofiaPreceitos da dúvida, poemas (Curitiba, Kotter Editorial, 2020), Louvores gozosos: iluminações profanas com performance de destruição de dispositivos ideológicos, poemas (Ponta Grossa-PR, Olaria Cartonera, 2020) e Antologia impessoal, poemas (Florianópolis, Editora Nave, 2022), entre outros.

Com numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites, foi colaborador por oito anos do jornal impresso Diário do Norte do Paraná, de Maringá. Organizou as antologias Passagens – antologia de poetas contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas poéticas no Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca Pública do Paraná, 2014).

Com o conto “El gran circo mundial del tráfico de barbis”, ganhou o Premio Desmadres de Escritura en Portuñol, promovido pelo Festival de Literatura Latinoamericana Desmadres, em Buenos Aires, de 16 a 23 de agosto de 2023.  Esse foi o primeiro concurso que procurou viabilizar a produção literária escrita em portunhol, fenômeno muito comum nas zonas fronteiriças entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O conto, que tem como personagem um anão que vive na fronteira do Brasil com o Paraguai, foi considerado o melhor entre os textos inscritos no concurso e abre o livro Travesías del portuñol, antologia dos dez melhores contos do Premio Desmadres de Escritura en Portuñol. Adelto Gonçalves - Brasil

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A tênue película que nos separa deste mundo, de Ademir Demarchi. João Pessoa-PB, Ideia Editora, 134 páginas, R$ 40,00, 2024. E-mail para contato: revistababel@uol.com.br

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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br



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