I
A
tênue película que nos separa deste mundo
(João Pessoa-PB, Ideia Editora, 2024), que obteve o primeiro lugar no Concurso
Nacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE), da Paraíba, é o
primeiro livro de ficção de Ademir Demarchi, poeta consagrado com mais de uma
dezena de livros publicados no gênero, além daqueles que reúnem ensaios e
crônicas. Obra de inspiração onírica, seu novo livro traz pequenos relatos
escritos a partir de sonhos ou mesmo pesadelos que, muitas vezes, beiram o
fantástico, fazendo o leitor penetrar num universo kafkiano em que as regras
são dominadas ou violadas pela imaginação.
São
relatos que se aproximam do conto, mas que, escritos em prosa poética,
avizinham-se também da poesia, como aquele que leva o título “A avó”, que, de
poucas linhas, segue aqui na íntegra à guisa de exemplo para o estilo do texto
que o leitor irá encontrar:
“O homem, diferentemente de todos
os seus amigos freudianos, rejeitava todas as mulheres que se parecessem com
sua mãe. Bastava lembrar o tamanho diminuto que a assemelhasse a uma espécie de
chinesa, identificar um traço como um modo de mover os lábios, a cor dos cabelos,
o jeito de olhar... que ele se desinteressava, continuando sua busca
interminável. Até que um dia encontrou uma mulher que o seduziu e com a qual se
casou. As gozações feitas pelos amigos, baseadas no fato dele querer ser
diferente falsearam e mudaram de tom quando conheceram a avó desse homem e
descobriram que a mulher que ele encontrara era uma cópia dela”. (pág. 47).
Já
o título do livro vem exatamente do relato que encerra a obra, “Ler e
enlouquecer”, em que o autor diz que escrever é como se meter em um sonho, ao
procurar contestar aquelas “pessoas que acham que enlouquecem se entrarem por
um livro adentro, atravessando a tênue película que nos separa deste mundo”.
(pág.133). E que, de certo modo, faz
lembrar aquela passagem bíblica em que Festo diz, em voz alta, a Paulo: “Estás
louco, Paulo, as muitas letras te fazem delirar” (Atos, 26:24).
E o apóstolo responde que não delira: “(...) antes digo palavras de verdade e
de um são juízo”.
II
É
o que faz também Demarchi que, ao beber na fonte da intertextualidade, procura
reviver cenários, sensações e experiências individuais através de um alter
ego, como se constata naquele mesmo relato que encerra o livro, em que ele
cita Nueva antologia personal (1968), de Jorge Luis Borges
(1899-1986), obra que parece ter marcado decisivamente a sua trajetória como
escritor, a ponto de ter escolhido para um dos seus livros o título Antologia
impessoal (Florianópolis, Nave Editora, 2022), que remete para o autor
argentino.
Enfim,
o que o leitor vai encontrar são relatos marcados por uma visão poética da
realidade que, pelo tom e pela forma, vão deixá-lo diante das reflexões de um
poeta ou ficcionista, todas repassadas de lirismo e, às vezes, de um clima
fantástico, mas que se caracterizam por uma poetização do cotidiano, como se vê
neste trecho do relato intitulado “A estrada da vertigem horizontal”:
“Entrei também em catedrais
portentosas e de arrojo arquitetônico externo, porém vazias de tudo por
dentro... Numa delas, com o pavilhão enorme e sem nenhum móvel sequer para
sentar, o prédio em formato cônico apontando para um céu infinito e negro, tive
a sensação de certa falta de ar, um estranhamento que sonegava dos olhos toda
noção de céu azul e colocava em seu lugar o infinito negrume do universo. Depois
que consegui me abstrair da sedução narcótica da transcendência retornei à rua
e entrei em outro prédio com numerosas salas destinadas a artistas (...)”. (pág.
43).
III
Ademir
Demarchi (1960), nascido em Maringá, no Paraná, mas estabelecido em Santos e
São Vicente, no litoral do Estado de São Paulo, desde 1993, foi editor das
revistas de poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, de
2000 a 2017, e Babel Poética, de 2011 a 2013, premiada em primeiro lugar
entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento de 2009/2010, do Ministério
da Cultura. Atualmente, é coeditor da revista digital Poetrishy, mantida
pela University of Bristol, da Inglaterra.
É
graduado em Letras na área de Francês pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM) e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), com tese que teve a orientação do professor argentino Raul
Antelo, um dos maiores especialistas acadêmicos na área da Antropofagia. É ainda
doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), na mesma área.
Começou
sua trajetória poética em 1979, com Ironia e poesia, ainda à época da
geração do mimeógrafo. Depois, em 1985, publicaria Maria, a cidade sem
rosto, também impressa por mimeógrafo, pelo Diretório Central dos
Estudantes da UEM, obra que seria reescrita e incluída em Pirão de sereia
(Santos, Realejo Livros, 2012), que reúne sua obra poética de 30 anos. São
poemas que têm por inspiração a vida na cidade de Maringá à época do regime
militar (1964-1985) e pós-ditadura.
Publicou
também Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Livros, 2007); Passeios
na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do
sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007; Lima,
Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012);
Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos,
Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); O amor é lindo
(São Paulo, Editora Patuá, 2016); Siri na lata (Santos (Realejo Livros,
2015); Gambiarra: uma pinguela para o futuro do pretérito (Bragança
Paulista, Urutau, 2018); Espantalhos, ensaios (Florianópolis, Editora
Nave, 2017); Contrapoéticas, ensaios, resenhas, prefácios e depoimentos
(Florianópolis, Editora Nave, 201); In fuck we trust,
poemas (Bragança Paulista, Editora Urutau, 2020); Cemitério da Filosofia
– Preceitos da dúvida, poemas (Curitiba, Kotter Editorial,
2020), Louvores gozosos: iluminações profanas com
performance de destruição de dispositivos ideológicos,
poemas (Ponta Grossa-PR, Olaria Cartonera, 2020) e Antologia impessoal,
poemas (Florianópolis, Editora Nave, 2022), entre outros.
Com
numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites,
foi colaborador por oito anos do jornal impresso Diário do Norte do Paraná,
de Maringá. Organizou as antologias Passagens – antologia de poetas
contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do Estado do Paraná,
2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas poéticas no
Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca Pública do
Paraná, 2014).
Com o conto “El gran circo mundial del tráfico de barbis”, ganhou o Premio Desmadres de Escritura en Portuñol, promovido pelo Festival de Literatura Latinoamericana Desmadres, em Buenos Aires, de 16 a 23 de agosto de 2023. Esse foi o primeiro concurso que procurou viabilizar a produção literária escrita em portunhol, fenômeno muito comum nas zonas fronteiriças entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O conto, que tem como personagem um anão que vive na fronteira do Brasil com o Paraguai, foi considerado o melhor entre os textos inscritos no concurso e abre o livro Travesías del portuñol, antologia dos dez melhores contos do Premio Desmadres de Escritura en Portuñol. Adelto Gonçalves - Brasil
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A tênue película que nos separa deste mundo, de Ademir Demarchi. João Pessoa-PB, Ideia Editora, 134 páginas, R$ 40,00, 2024. E-mail para contato: revistababel@uol.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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