Os
jornais, televisões, rádios e redes sociais dedicaram grandes espaços e tempos
de duração com diferença de alguns dias, no Brasil e na França, para duas
notícias necrológicas fora do comum: os falecimentos de um homem de televisão,
Sílvio Santos, e de uma star do cinema, Alain Delon.
A
língua francesa permite sintetizar esse tipo de passamento apoteótico com a
frase "reussir sa mort" bem mais forte e expressivo que a tradução
literal "ter sucesso na morte", que soa chocho, pois morte e ter
sucesso são palavras que se opõem. Mas não se poderia utilizar
"consagração na morte" porque ficaria a impressão de ter sido
gloriosa a morte, dando a ideia de um ato heroico no momento de morrer.
Nada
disso. Ambos tiveram seu sucesso, o seu reconhecimento durante a vida, mas ao
deixarem de viver a mídia lhes prestou homenagens com os meios de que dispõe:
manchetes, textos, reportagens, depoimentos, lembranças, vídeos, fotos. Os
falecidos, tanto um como o outro, não puderam curtir essa apoteose póstuma como
também não tiveram influência na sua programação.
A
repercussão na mídia da morte de pessoas populares, ilustres, amadas, famosas,
deriva de um trabalho paralelo de programação ignorado pelo público: todos os
órgãos de imprensa têm um dossiê, uma biografia atualizada, fotos, tudo
preparado para publicar e divulgar no dia da morte das personalidades e
artistas mais conhecidos.
Talvez
hoje com as novas tecnologias, arquivos e atualização de dados automáticos, não
exista mais a figura do repórter mortuário nos grandes jornais, figura
importante por garantir o prestígio do órgão junto às famílias enlutadas. No
jornal Estadão, como é conhecido o tradicional matutino criado pelo velho e
respeitado Mesquita, o dedicado colega responsável pelos obituários, na época
em que ali trabalhei, ainda na rua Major Quedinho, acabou integrando no seu
nome a sua função. Era o célebre Toninho Boa Morte, encarregado do noticiário
fúnebre.
Sua
dedicação à sua função vale um parágrafo. Sua dedicação à função garantiu sua
popularidade nas redações paulistanas, tanto que ao chegar sua vez de morrer,
aos 77 anos em março de 2011, António Carvalho Mendes mereceu destaque no
Estadão e na Folha de S. Paulo. Foram mais de 800 mil mortes registradas com
zelo durante cinquenta anos de serviço.
No
caso de Sílvio Santos, chamou a atenção a maneira com que toda imprensa deu
destaque à sua morte tornando-a um luto nacional, por personificar o homem
comum e ser uma expressão da cultura popular brasileira. O luto francês e de
certa forma europeu e mesmo internacional foi mais sofisticado, Alain Delon
sintetizava o gosto refinado, artístico da cultura cinematográfica francesa
personificado no que se convencionou considerar seu melhor ator, elevado à
condição de star.
A
televisão cria líderes populares, dotados é claro de poder de comunicação e de
carisma, e Sílvio Santos conseguiu se tornar parte da família da maioria dos
brasileiros, com sua presença na tela dos televisores. Politicamente era de
direita mas sabia conviver com Lula e Dilma, como soubera com os ditadores
militares.
Isso
tem um nome, mas não importa, até petistas ficaram tristes no dia de sua morte
e compartilharam isso nos seus whatsapps. A revista Veja fala dessa
política do beija-mão do dono da SBT, que incluiu também o presidente
Bolsonaro.
E
pouca gente se lembrou de criticar o Baú da Felicidade que, no seu canal
Youtube, Leonardo Stoppa, chama de Baú da Infelicidade. Celso Lungaretti lembra
o vendedor de bugigangas na Praça da República, fala de sua mãe, embrulhada na
ilusão do Baú da Felicidade e, no seu blog Náufrago da Utopia, pergunta:
"mas por que fez tanto sucesso, apesar de ser o pior tipo do sanguessuga,
aquele que chupa o sangue das coitadezas? Porque quem na conversa vende algodão
por veludo sempre se dá bem no Brasil, onde tem bobo pra tudo". Paulo
Ghiraldelli, no seu Canal, lembra também de seu pai, enganado pelo camelô
Silvio Santos.
Alain
Delon era o cinema francês, a expressão visual nas telas do saber artístico dos
grandes realizadores do cinema com a beleza, malícia, atração dos excessos
sexuais sugeridos mais a brutalidade cativante dos gângsters franceses. Delon
era o homem francês e o que as mulheres pensavam e desejavam desse homem
refletido no seu olhar que podia ser cínico e cruel.
De
origens modestas, tanto Sílvio quanto Alain conseguiram surpreender com sua
força e expressão natural. Sílvio, um vendedor de bugigangas como camelô nas
praças paulistanas, encontrou seu público maior na televisão popular; Alain,
mau aluno expulso de diversas escolas, era manhoso, esperto, sabia enganar.
Seria um péssimo açougueiro, profissão a que seu tio lhe destinava. Viver o que
não era e o que era, como excelente ator, foi seu tremendo sucesso.
Mas possuía também seu lado secreto mau e misterioso, que fortalecia sua imagem. Durante anos toda imprensa francesa seguiu seus passos, tentando decifrá-lo no famoso escândalo do seu amigo iugoslavo Markovic, encontrado morto num depósito de lixo. Uma história envolvendo até a esposa do primeiro-ministro e depois presidente francês Pompidou. Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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