Obra polêmica
do escritor português Mário Cláudio ganha tradução para o italiano
I
Uma
novela que procura reconstituir o que teria sido a relação próxima do pintor
italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) com Gian Giacomo Caprotti (1480-1524),
mais conhecido como Salaì, seu discípulo, é o que leitor vai encontrar em Retrato
de rapaz (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014), obra do
escritor português Mário Cláudio, que acaba de ganhar tradução para o italiano
com o título Ritratto di ragazzo. Un allievo nello studio di Leonardo
da Vinci (Perugia, Morlacchi Editore, 2024, edição bilingue), de autoria de
Brunello Natale De Cusatis, professor (aposentado) de Línguas e Literaturas
Portuguesa e Brasileira da Universidade de Perugia e grande especialista na
obra do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935).
Retrato
de rapaz mereceu, no ano de sua publicação, o Grande Prêmio
de Romance e Novela da Associação Portuguesa
de Escritores, que o autor já havia obtido em 1984 com o livro Amadeo.
A princípio, parte de uma polêmica afirmação de pesquisadores italianos segundo a qual Salaì teria sido o
modelo do quadro Mona Lisa. Para tanto, destacaram a semelhança
de algumas características faciais, especialmente o nariz e a boca, da Gioconda
com aquelas que se vê em quadro que retrata o discípulo, conclusão que, no
entanto, foi contestada por especialistas do Museu do Louvre, de Paris, onde se
encontra exposta a obra-prima do pintor.
No texto de apresentação, De Cusatis lembra que Gian
Giacomo Caprotti começou a trabalhar como aprendiz na oficina, em Milão, do
grande pintor, ainda muito jovem, em 1490, como consta na primeira folha de um
manuscrito anotado pelo próprio Leonardo da Vinci e que hoje faz parte do
acervo do Instituto de França, em Paris. Trata-se de um manuscrito que reúne
não só notas sobre as atividades do grande mestre toscano como anotações sobre
a sua vida cotidiana e sobre o delitos cometidos pelo jovem Gian Giacomo, “como
lhe ter roubado dinheiro logo um dia após a sua chegada à oficina”. É de se
lembrar que foi o próprio pai de Salaì quem o encaminhou
ao estúdio, “ainda com andrajos e piolhos”, para que o grande artista, que
também exumaria cadáveres e construía máquinas voadoras, procurasse endireitá-lo
e fizesse dele seu criado.
II
Bibliotecário e pesquisador meticuloso, Mário Cláudio, a
partir da consulta a esse códice, tratou de recuperar, às vezes recorrendo também
à imaginação, o que teria sido essa relação tantas vezes conturbada como
harmoniosa entre mestre e discípulo. E que, desde o início, fez o grande pintor
tratar seu discípulo por Salaì, nome um tanto grotesto que, em língua árabe,
pode significar “diabinho”, “ladrão”, “mentiroso”, “teimoso”, “ambicioso”, “irriquieto”
e outros vocábulos depreciativos.
No entanto, como se percebe na descrição de Mário Cláudio,
Leonardo da Vinci teria sido sempre indulgente com aquele que se tornaria seu
discípulo, provavelmente atraído por sua extraordinária beleza angelical e
natureza ambígua. Tudo isso sem levar em conta murmúrios que diziam ser Salaì
“abusador da inocência de meninos e meninas, e prostituto de padres desdentados
desta ou daquela confraria” (pág. 164).
Fosse como fosse, Salaì acabaria por ganhar a confiança
do mestre, tornando-se “o seu primeiro modelo e seu discípulo predileto”,
acompanhando-o em tudo e até em suas mudanças de residência, pelo menos até
1514, quando o mestre trasladou-se com sua oficina de Milão para Veneza e logo
a seguir para Florença, para Milão de novo e, finalmente, para Roma. Ou seja,
por duas décadas, Leonardo da Vinci foi seu “protetor infatigável”, como se lê
nesta inovadora novela que, embora construída
como ficção, utiliza como personagens indivíduos que, de fato, existiram e
algumas passagens que seriam abonadas por documentação manuscrita.
Em
texto ágil, delicado e erudito, Mário Cláudio mostra que, num jogo de pequenas
traições mútuas, cria-se entre Salaì e o pintor uma cumplicidade que os
aproximará, a princípio, como se fossem pai e filho. E, depois, como amantes, o
que fica explícito à página 83 em que o autor trata “esse aspecto, a um tempo
fundamental, controverso e escabroso, da vida de Leonardo da Vinci, vale dizer,
sua inclinação sexual”, como observa De Cusatis ao final de seu texto de
apresentação. Mais adiante, irrompem na vida de ambos Três Graças viciosas que
semeiam a discórdia e o ciúme, numa trama que há de enlevar o leitor através de
um texto extremamente sedutor.
Retrato
de rapaz é, portanto, uma novela sobre a relação entre mestre e
discípulo, nem sempre isenta de drama e decepção, e sobre a criatividade de um
artista genial em tudo, até mesmo na gestão dos seus sentimentos.
III
Mário
Cláudio (1941), pseudônimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nascido no Porto,
é autor de vasta e multifacetada obra que abarca ficção, crônica, poesia,
dramaturgia, ensaio, literatura infantojuvenil e ainda letras para fado e numerosos
artigos publicados na imprensa portuguesa e estrangeira. Suas obras estão
traduzidas em inglês, castelhano, francês, italiano, alemão, húngaro, checo,
croata e turco.
Filho
único de uma família da burguesia, fez no Colégio Almeida Garrett, no Porto, os
estudos primário e secundário. Licenciado em Direito pela Universidade de
Coimbra, em 1966, veio a diplomar-se mais tarde com o curso de
Bibliotecário-Arquivista, da Faculdade de Letras da mesma Universidade. Como
bolseiro do Instituto Nacional de Investigação Científica, frequentou a
Universidade de Londres (University College), onde se pós-graduou
como Master of Arts in Library and Information
Studies, em 1976.
Em
1985, começou a atividade de docente na Escola Superior de Jornalismo do Porto.
Foi ainda professor convidado da Universidade Católica do Porto e formador de
Escrita Criativa, na Fundação de Serralves e no Politécnico do Porto. Dirigiu a
Biblioteca Pública Municipal de Vila Nova de Gaia e foi técnico superior da
Delegação Norte da Secretaria de Estado da Cultura.
Antes
de ser mobilizado para a guerra colonial, em 1968, entregou ao pai, para
publicação, a sua primeira obra, de poesia, intitulada Ciclo de Cypris,
lançada no ano seguinte. É autor ainda de Guilhermina (1986), Rosa
(1988), A Quinta das Virtudes (1990), Tocata
para dois clarins (1992), Dois equinócios
(1996), O pórtico da Glória (1997), Peregrinação
de Barnabé das Índias (1998), Camilo Broca
(2006), Boa noite, senhor Soares (2008), Tiago
Veiga: uma biografia (2011), Astronomia (2015) e Tríptico
da salvação (2019), entre outras obras, que lhe valeram vários
prêmios literários.
Foi
galardoado com comendas da Ordem Militar de Sant’Iago
da Espada (2000), de Chevalier des Arts et
des Lettres (2006), atribuída pelo Ministério da Cultura de
França, e da Grã-Cruz da Ordem do Infante
D. Henrique (2019). A 11 de dezembro de 2019, recebeu o título de
Doutor Honoris Causa da Universidade do Porto, em cerimônia que
contou com a presença do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
IV
Brunello
Natale De Cusatis (1950) nasceu em Fuscaldo Marina (CS) na Calábria, Itália.
Formou-se em Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade de Perugia, onde
exerceu sua carreira acadêmica – primeiro como assistente responsável, depois
como pesquisador e, por fim, como professor associado e chefe das cadeiras de
Línguas e Literaturas Portuguesa e Brasileira, de 1976 a 2014, ano em que, por
opção própria, decidiu se aposentar.
Tem
numerosas publicações, tanto em volumes quanto em revistas e jornais, na Itália,
no Brasil, em Portugal e em outros países. De 1996 a 2002, foi editor da série Brasiliana
(Roma, Antonio Pellicani Editore) e, de janeiro de 2010 a junho de 2014, das
séries Pessoana e Saggistica luso-afro-brasiliana
(Perugia, Edizione dell'Urogallo). Desde 2007, dirige uma série publicada pela
Morlacchi Editore, de Perugia: Letteratura Luso-Afro-Brasiliana,
cujas obras se caracterizam por apresentar sempre, ao lado da tradução
italiana, o texto original em português: é o caso tanto de Retrato de
rapaz – Ritratto di ragazzo como de outra novela
marioclaudiana, Boa noite, senhor Soares / Buona
notte, signor Soares, volume editado, na primeira edição,
em 2015.
É
autor das monografias O Portugal de Seiscentos na
“Viagem de Pádua a Lisboa”, de Domenico
Laffi - estudo crítico (Editorial Presença, Lisboa 1998); Tra
Italia e Portogallo. Studi storico-culturali
e letterari (Roma, Antonio Pellicani, 1999); Esoterismo, Mitogenia
e Realismo Político em Fernando Pessoa
– uma visão de conjunto (Porto, Caixotim Edições,
2005); e Riflessioni etico-religiose (Perugia, Associazione
Progetto Marianna – Onlus, 2013).
Suas
áreas de investigação vão desde a História da Cultura e Literaturas Portuguesa
e Brasileira até à Literatura Italiana e Comparada. De Fernando Pessoa, traduziu
para o italiano e comentou seus artigos e fragmentos sociológicos, políticos,
mito-proféticos e econômicos, reunidos em três volumes: Scritti di
sociologia e teoria politica (Roma, Settimo
Sigillo, 1994), também em tradução alemã (Karolinger, Wien 1995); Politica
e profezia. Appunti e frammenti 1910-1935
(Roma, Antonio Pellicani, 1996 / nova edição revisada, Milão, Edizioni Bietti,
2018); e Economia & commercio – impresa, monopolio,
libertà (Roma, Ideazione Editrice, 2010 / nova edição revisada, Perugia,
Edizioni dell'Urogallo, 2011).
Além
disso, publicou a tradução italiana da elegia pessoana À memória do
Presidente-Rei Sidónio Pais, acompanhada de um extenso
ensaio introdutório (Roma, Antonio Pellicani Editore, 1997 / nova edição
revisada, Perugia, Edizioni dell'Urogallo, 2010), e o volume La vita
plurale di Fernando Pessoa, do espanhol Ángel
Crespo (Roma, Antonio Pellicani, 1997 / republicado em 2014 e editado por Bietti
de Milão em nova edição extensamente anotada. Adelto Gonçalves - Brasil
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Ritratto di ragazzo.
Un allievo nello studio di Leonardo da Vinci, de Mário
Cláudio, tradução para o italiano de Brunello Natale De Cusatis. Perugia,
Itália: Morlacchi Editore, 249 páginas, 16 euros, 2024. Site: www.morlacchilibri.com; E-mail: editore@morlacchilibri.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil
perdido (Lisboa, Editorial
Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os
vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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