O
escritor e ex-militar Carlos de Matos Gomes define o seu novo livro, “Geração
D”, como uma homenagem e uma autobiografia da sua geração, a que conheceu a
ditadura, a Guerra Colonial e fez o 25 de Abril de 1974.
“Esta
geração protagonizou a grande mudança da História de Portugal, a que acabou com
a ditadura, com a guerra, com as leis da sociedade patriarcal… Mas continuou a
conviver com a ideia de um glorioso passado, em simultâneo com a ilusão de um
futuro maravilhoso”, lê-se na obra publicada pelo Porto Editora.
Foi
uma geração que viveu as grandes transformações do pós-Segunda Guerra Mundial,
a nível económico e social, que assistiu ao termo das possessões coloniais
francesas e britânicas, à eclosão de conflitos na Argélia e no Vietname, que
atravessou as décadas de 1950 e 1960.
Era
uma geração aberta ao exterior, por oposição ao “orgulhosamente sós” de
Oliveira Salazar e da sua ditadura. Era uma geração que via na violência da
luta pelas independências, o reflexo da violência das autoridades coloniais
portuguesas sobre as populações africanas.
No
seu novo livro, Matos Gomes explica que a “Geração D” é a geração da
“Democracia, da Deserção, da Descolonização, das Doutrinas e do Doutrinar, da
Discussão, da Dialética, do Desmistificar, do Desmobilizar, da Denúncia, da
Desobediência, do Divórcio”, a geração que “viveu sob um regime de ‘doidos do
império’” e dele se libertou.
“Calhou-lhe
– prossegue – ser a primeira geração que, pela liberdade e universalidade do
voto, foi inteiramente responsável pelo seu presente e pelo seu futuro.” E
conclui: “O D dos Dilemas é também do Desafio e o do Desprezo pelos
Desprezíveis da Geração D”.
“Geração
D”, o livro, toma a forma de uma “autobiografia ficcionada de uma geração”. Não
é um romance. Por isso, o autor quis assumi-lo com o seu nome de baptismo,
Carlos de Matos Gomes: “É uma assunção desta pessoa que sou eu e que faz esta
ficção tendo como narrador a personagem principal, que também sou eu”, disse à
agência Lusa.
Carlos
de Matos Gomes, 78 anos, assinou vários romances em que estava patente a
temática africanista, sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz, como “Nó Cego”
(1983), a sua estreia, “Soldadó” (1988) e “Os Lobos Não Usam Coleira” (1991).
“’Geração
D’ é o reverso do ‘Nó Cego’, o primeiro romance que escrevi, em que pretendi
transmitir aos outros o que a minha geração tinha passado durante a Guerra
Colonial [1961-1974]. Como cada um de nós, que vínhamos de vários sítios – e
cada um agregado numa e determinada unidade militar, que tinha sido sujeita a
várias forças de dissolução -, como aquele grupo, que representava a minha
geração, tinha reagido e enfrentado uma situação tão crítica”, afirmou.
“Passados
42 anos, é o retrato da minha geração depois de ter passado pelo pós-Guerra
[Mundial], pela guerra [colonial], pelo 25 de Abril, pelo 25 de Novembro [de
1975], pela construção desta sociedade que se ligou depois, [que] voltou a
integrar-se na Europa, fez a descolonização e viveu os dilemas todos, do fim de
uma epopeia. Nós tínhamos ainda sido educados na epopeia d’’Os Lusíadas’, e
esta história é o fechar d’’Os Lusíadas’”, afirmou o autor “sem querer ser
pretensioso”.
Matos
Gomes deu conta das muitas conversas que teve com o seu amigo Salgueiro Maia, o
capitão de Abril que tinha sido seu colega na Escola Nun’Álvares, em Tomar, com
o qual reflectia sobre o dever “para com os portugueses em geral”, o dever de
“restituir-lhes a liberdade e a dignidade”.
“A
guerra [colonial] tinha sido determinada por um regime que os portugueses nunca
tinham legitimado, e nós entendíamos que, se queremos fazer a guerra, os
portugueses [tinham] de [a] legitimar”, disse enfatizando: “Nós fomos a
primeira e a única geração que conheceu África no seu interior porque nos
anteriores 400 anos, a África era bordejada”, vivida nas margens do continente,
sobretudo no litoral, na costa.
“A
violência que as autoridades portuguesas exerciam sobre as populações africanas
reflectia-se na violência com que a guerrilha nos respondia [aos militares]”,
disse Matos Gomes à Lusa, referindo-se à situação nos diferentes países, então
sob administração portuguesa, durante a guerra colonial.
“Isto
levou-nos a perguntar o que nós fazíamos ali. Em segundo lugar, a perguntar em
que sociedade vivíamos, em que não éramos informados nem nos pediam opinião”.
Segundo
Matos Gomes, “havia um conflito” entre a sua geração, “a geração militar, e a
geração política, dos estudantes, dos trabalhadores”, com o regime. “Já não
tínhamos nenhuma ligação ideológica nem vínculo ao regime que tinha sido
estabelecido por [António de Oliveira] Salazar em 1933 e que vinha desde 1926”,
quando, em Maio desse ano, se deu o golpe militar liderado pelo general Gomes
da Costa.
Estas
nova geração política, militar entendia-se como europeia. “Nós ouvíamos as
mesmas músicas que se ouviam em Londres, conhecíamos os casos de Maio de 1968,
as questões que estavam a ser colocadas na Alemanha [Federal] nos ‘anos de
chumbo’ e também em Itália”, afirmou.
No
caso dos militares, conheciam ainda a situação na Indochina, que culminaria na
Guerra do Vietname – “e nesse sentido os livros do Jean Lartéguy foram muito
importantes” -, e depois a situação na Argélia, que levaria à independência da
antiga colónia francesa em 1962, quando a guerra colonial estava ainda no
começo.
“Portanto,
pertencíamos já a uma geração aberta ao exterior”, afirmou Matos Gomes. “O
dilema que existia era: temos de nos integrar [no regime] ou derrubá-lo.”
“Para
percebermos a História de um país ou de uma sociedade, uma das fontes, é
exactamente a ficção. Há coisas que dizemos com mais facilidade através da
ficção, e são mais próximas da verdade do que a História” que se baseia em
estatísticas, relatórios e outros documentos, explicou.
“A
literatura permite-me entrar dentro do pensamento dos protagonistas”,
argumentou. A escrita reflecte assim “a literatura como uma história”, e “a
história também como uma parte da literatura”.
Para
escrever “Geração D”, Matos Gomes recorreu a diferentes fundos documentais,
como o Arquivo de Defesa Nacional.
“A
nossa forma de estar no mundo é a integração europeia. A descolonização está na
zona do mito: havia o mito do império, apesar de o império antes da guerra
[colonial] ser muito pequeno. Havia antes o imaginário da Índia, que acabou
antes de 1961. Tinha havido o imaginário do Brasil, que se mantinha e ainda se
mantém um pouco. E, finalmente, havia o império de África e das colónias, etc…
Porque em termos económicos – os interesses económicos – eram dominados pelos
ingleses e pelos norte-americanos, pois as colónias africanas nunca foram de
povoamento”.
Actualmente,
diz Matos Gomes, o que nos define é “a integração europeia”.
Sobre
as celebrações do 25 de Abril, o ex-militar reconheceu que “há um esforço muito
grande de as levar à sociedade o mais alargada possível, nomeadamente aos
jovens”, mas “há sempre uma parte da sociedade que fica fora, há as classes
visíveis e as invisíveis”, afirma.
“Quando
aparecem fenómenos como a recente votação no Chega [nas legislativas do passado
10 de Março], o das claques [desportivas], nós perguntamos de onde estes tipos
vêm. Vêm das classes invisíveis, e é aí que devemos fazer um esforço de lá
chegar, explicar, e saber quem são eles”. Nuno Lopes – Agência Lusa in “Jornal
Tribuna de Macau”
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