Quando
li no site Variety e vi no Le Monde a escolha de um novo filme do cineasta
iraniano Mohammad Rasoulof para a competição no Festival de
Cinema de Cannes, A Semente da Figa Sagrada, me lembrei
imediatamente do Festival de Berlim em 2020, do lugar onde estava sentado com
minha esposa, do cinema repleto e da projeção do filme iraniano There is no
Evil, de Rasoulof. E me lembrei também da mochila que alguém colocou ao meu
lado no corredor - eu estava na ponta de uma fileira de lugares - me deixando
tenso com receio da mochila explodir. O filme ganhou o Urso de Ouro!
Mohammad
Rasoulof não pôde estar presente à projeção do seu filme e nem pôde ir a Berlim
para receber o prêmio máximo do Festival, o Urso de Ouro. Como recompensa a
essa conquista, Mohammad foi preso alguns dias depois e a imprensa
internacional publicou, eu inclusive no Brasil, o risco de Rasoulof ser
contaminado com o vírus do Covid na prisão.
Naquele
Festival havia um filme brasileiro, um dos últimos a participar de competição
internacional nos festivais de cinema, em consequência da censura ou cortes de
verba para a Ancine e para produtores. Era Todos os Mortos, de Caetano Gotardo
e Marco Dutra, sobre a importação de negros da África para serem escravos no
Brasil.
Nos
corredores, me encontrava com a produtora Sara Silveira, inquieta com o futuro
do cinema brasileiro sob o presidente Jair Bolsonaro, decidido a acabar com as
subvenções para a cultura e forçar a privatização desse setor, sob o controle
dos evangélicos dispostos a censurar toda manifestação cultural fora das quatro
linhas da Bíblia. O cinema brasileiro vai se recuperar dos anos bolsonaristas.
E o Irão deixará Mohammad Rasoulof ir a Cannes mostrar a semente sagrada?
Nos
meus primeiros anos de exílio em Paris, quando frequentava a rue Saint
Guillaume, onde fica a Sciences Po, ia sempre encontrar amigos na livraria
Maspero, almoçar em um dos restaurantes universitários e discutir política
brasileira, francesa e internacional nos cafés do Quartier Latin, todos nós
éramos contra o Xá Rheza Pahlevi do Irão. Longe estaríamos de imaginar que a
entrega do Irão ao aiatolá Khomeini iria levar à teocracia islâmica ou
islamita, à antiga Pérsia, onde se perseguem cineastas e se matam mulheres por
não se vestirem e nem cobrirem a cabeça como manda o Profeta.
Uma
longa reportagem da BBC News Monde - Liberdade de expressão no Irão, lembrou
como era a vida das mulheres no Irão antes da revolução islâmica, onde o uso do
véu ou chador havia sido abolido em 1936. Alguém poderá arguir - e daí? A
revolta contra o Xá era contra uma ditadura e contra o imperialismo americano.
É
verdade, mas naquela época, ninguém pensou nas consequências diretas para as
mulheres da chegada do aiatolá ao poder. E nem se imaginava ser uma revolução
masculina. Essas consequências foram trágicas e não eram apenas questões de
roupas, vestidos compridos, cobrindo braços e pernas, e o chador cobrindo os
cabelos e a cabeça. Significou o retorno à uma situação de submissão e
dependência total da mulher aos homens e ao sistema religioso. A restrição às
mulheres ao acesso ao mundo cultural e profissional. Uma submissão de longe
mais grave que a exigida pelos neopentecostalistas norte-americanos e
brasileiros.
Um
site francês, Le Grand Continent, publicou logo após o assassinato da jovem
iraniana Mahasa Jina Amini, por ter o véu mal colocado na cabeça, um
depoimento-reportagem da escritora Sorour Kasmai sobre o tema Ser Mulher no Irão,
o prefácio do seu livro Mulher, Sonho, Liberdade (editora Actes Sud) reunindo
12 histórias inéditas de mulheres no Irão. Sem esquecermos de Narges Mohammadi,
prêmio Nobel da Paz, apodrecendo na prisão de Evin, no Irã, por seus combates
contra a opressão das mulheres no Irão e pela promoção dos direitos humanos
para todos.
Cineastas,
mulheres... Outro dia, me surpreendi ao ver num dos canais do Youtube, num
debate, três universitárias brasileiras falando do Irão mas se esquecendo ser
uma teocracia onde as mulheres perderam todos seus direitos. Tive vontade de
deixar uma mensagem, comecei a escrever, mas apaguei... Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da
corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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