A peça “O embondeiro que sonhava pássaros”, exibida na passada sexta-feira, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, teve em palco os astros do teatro nacional a contracenar as nossas esperanças e certezas. Uma obra escrita e encenada por Evaristo Abreu e inspirada num conto de Mia Couto. Esta peça fez mais do que dar teatro ao público, reabriu um drama da cultura moçambicana, o debate sempre adiado e o descortinar de um futuro cheio de incertezas. Muito tem se falado destes tempos como a grande dúvida, Lipovetsky (1983) chegou mesmo a escrever o ensaio “A era do vazio”, onde parecer é ser, tudo é efémero, passa tão rápido que sequer chegou a acontecer. Mas já lá vamos, primeiro, exaltemos o espectáculo que, de certeza, mostrou-nos que a alma do teatro moçambicano está em chamas e que todas as gerações dão-nos garantias.
Ver
em palco Adelino Branquinho, Yolanda Fumo e Elliot Alex, a contracenar com
Horácio Guiamba — que já não tem mais nada a provar —, Fernando Macamo e
Lucrécia Noronha, estes dois que já performaram em alguns espectáculos e a
estudante Shércia Carolina que se mostrou à altura do desafio, é um
acontecimento marcante. São actores de gerações diferentes, o que deixa à vista
que o teatro vive, sobrevive e pode ganhar outras vidas, como por exemplo, o
facto de as salas de teatro estarem em extinção ou a servir para outros fins, a
falta do necessário apoio institucional e mecenas, tudo isto, curiosamente,
quando já há um curso superior de teatro e muitos actores à disposição.
Em
palco estava o passado que facilmente se confunde com o presente e, se não
houver “vigilância” — os acontecimentos diários mostram isso — pode se repetir
esse passado tenebroso: escravatura, exploração e segregação. O resto é actual,
as personalidades feitas de ira – de fúria irracional —, a coisificação do
outro, o racismo, a bajulação e o cumprimento de ordens sem questionar. Em meio
a tudo isso há um belo que se não vê: o encanto na natureza, nas coisas simples
como os pássaros de várias espécies a voar livremente e a cantar para os
humanos tomados pela insanidade instalada, o tempo que nos falta para
contemplar de forma desinteressada o belo, mas também a classificação dos
seres. Como pode uma criança branca brincar com uma negra? Como se não
bastasse, falarem a mesma língua, apreciarem a mesma natureza e ainda
mergulharem nas realidades de cada sociedade. A partir do diálogo dessas duas
personagens, a preta e cuidadora de pássaros — Yolanda Fumo — e a criança
branca — Shércia Carolina — encontram-se dois mundos: no mundo dos brancos
representado por Adelino Branquinho, sempre zangado, com o chicote e a
esbracejar “igual a uma coruja”; e, por outro lado, estão os pretos,
representados por Yolanda Fumo, que compreende o desejo e a essência dos
humanos, igual aos pássaros, nascidos para serem livres.
É
uma família dominante, branca, vive amargurada e na encruzilhada do racismo,
sobretudo por se julgar uma classe superior, que tem o direito à terra, os
recursos, incluindo as pessoas pretas que são objectos de uso, força bruta, sem
sequer capacidade de raciocinar — Elliot Alex, Fernando Macamo e Lucrécia
Noronha —, que vai se ver desestruturada por uma criança que decidiu ignorar as
diferenças, olhou com os olhos inocentes de uma criança o mundo à sua volta.
É
possível ler-se os papéis de Elliot, Fernando e Lucrécia nas entrelinhas das
personagens da vida real, capazes de aplaudir e executar tarefas sem
questionar, por vezes, com danos sobre gente da mesma classe social que a sua.
A ideia de estar com quem manda e que faz pensar que temos poder e por isso os
outros seres humanos não valem nada, está muito bem representada.
O
narrador Horácio Guiamba conseguiu ser o pivô da trama, sem deixar que ela se
transformasse numa história contada, antes, um elemento para conectar os
acontecimentos que ocorrem num ritmo frenético. Escusado é dizer que começa a
ser moda o narrador Horácio Guiamba em palco (o actor cumpriu quase o mesmo
papel em “Aqueles dias da rádio”, musical dirigido por Zé Pires). O
acompanhamento musical de Cheny wa Gune e Xixel Langa foi certeira por
torná-los presente no espectáculo, preencheu as cenas.
Foi,
em suma, um trabalho ao nível do senhor de teatro que é Evaristo Abreu. O que
nos leva à questão seguinte.
- 1. As condições em que a peça foi exibida foram as melhores
possíveis, é verdade. Aliás, não é em vão que o CCFM é dos melhores espaços
culturais da cidade. Porém a sala grande não foi capaz de dar as condições que
o teatro precisa: a acústica necessária para a projecção das vozes, para que as
palavras sejam ouvidas e compreendidas. Apesar de todo empenho e esforço até,
muitas foram as palavras que coube ao espectador mais atento tirar as certezas
se foi dito. As falas de Adelino Branquinho, por exemplo, e até do Elliot Alex,
foram disso exemplo. O Horácio cuja presença era sobretudo em discurso, não sei
se não lhe sobraram dores pelo esforço para se fazer ouvir. E, aliado a tudo
isso, como havia a voz no microfone e os instrumentos musicais, o desnível foi
evidente. Ao contrário do que se viu e se vê com os especáculos do género
quando acontecem no auditório. Esse, sim, era o sítio indicado.
- 2. O cenário podia ser melhor, a sensação de um imenso vazio
é inquietante. Sim, é a nossa realidade, fazer muito com pouco, mas foi notável
o sofrimento dos actores naquele palco, ora à procura de preencher espaços ou a
cuidarem para não se deixar derrubar nas poucas coisas ali presentes, porém de
uma precariedade patente. Por outro lado, foi como se aqueles elementos fossem
estranhos aos actores. Não será pelo tempo de ensaio com o cenário do
espectáculo?
- 3. Quando vai parar a sina de ver só uma vez os bons
espectáculos de teatro, penso eu com os meus botões enquanto oiço os murmúrios
dos espectadores. Compreendo as várias razões por detrás das instituições e do
cenário artístico nacional, mas é um desperdício dos níveis de quem deixa uma
torneira aberta com a água a escorrer pelas areias. Não é assim só com este
espectáculo, foi assim com “Aqueles dias de rádio” (2023), por exemplo, uma das
melhores obras de arte em palco que se produziu nos tempos actuais. Como é
possível um elenco daquele nível, os ensaios de meses, a publicidade feita — a
acrescer a que continua a ser feita por via de comentários positivos dos que
viram o espectáculo — resultar em apenas uma apresentação? Será que o custo de
uma repetição é maior que o de tudo o que se investiu para conceber o trabalho?
Esta questão não é dirigida ao CCFM, é sobretudo uma reflexão que todo o sector
cultural deve fazer. Um pouco por todos os centros culturais os espectáculos
são exibidos só uma vez, nunca percebo as razões, mas se elas se prenderem com
o factor “oportunidade para todos”, “cabimento orçamental” ou “público”, então
é uma questão talvez mais fácil de resolver. Mas se a razão for do tipo fazer
muito eventos e acolher a todos ou for por importar os hábitos da música para o
teatro, então a situação é grave. Enquanto a música pode ser gravada e ouvida
através de várias plataformas, a qualquer momento, o teatro precisa de palco
para ser visto, e o bom teatro, ainda mais.
Quando
a arte é exposta desta maneira, incorre-se ao risco de banalizar-se o talento,
o trabalho árduo e comprometer o profissionalismo nas artes, como analisa Mário
Vargas Llosa em A Civilização do Espetáculo (2012).
Pensar
em tudo isto, na esteira de “o embondeiro que sonhava pássaros”, que instiga a
memória colectiva, revisita a história, reflecte a contemporaneidade dos
comportamentos, das trivialidades e desperta-nos para uma sociedade em modo
loop — as diferenças entre classes, o medo de sonhar, os limites às liberdades
—, é no mínimo exercer o próprio papel do teatro, despertar-nos para o drama da
vida, dos indivíduos, das sociedades, enfim, levar ao palco os nossos dilemas e
contextos.
Um
trabalho como o visto no dia 12 de Abril de 2024, deveria ser possível
revisitá-lo, pelo menos, mais três vezes. Ao contrário disso, quando tudo é
dado assim, aos bocados, honestamente, é fácil cair na banalidade, no vazio
enfim, no esquecimento. Eduardo Quive – Moçambique in “O País”
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