“Tchevengur” procura recriar o mundo ideal que
teria existido, se a revolução comunista de 1917 tivesse dado certo
I
O comunismo – talvez os nazifascistas
bolsonaristas não saibam disso, já que ainda sonham pegar em armas para
combatê-lo (risos) – é uma teoria louvável, que imagina um mundo ideal,
semelhante ao celestial. Por isso mesmo, não é aplicável ao mundo dos vivos,
idealizado talvez para uma geração extraterrestre, nunca para a espécie humana.
Mais ideal ainda é o anarquismo, igualmente inaplicável, mas que, ao longo dos
anos, atraiu muitas pessoas de bom coração, que imaginavam que seria aceitável
sacrificar-se para garantir um futuro melhor para as gerações vindouras.
Quem visita a Rússia de hoje lamenta que o regime
que se autointitulava comunista tenha deixado como herança apenas prédios
velhos, com os encanamentos de fora, escadas rolantes do metrô que não
funcionam, como se vê largamente em Moscou, ou trens de segunda classe que mais
se assemelham aos que se veem em filmes sobre a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), enquanto a beleza arquitetônica que se admira é aquela deixada
pelos czares em São Petersburgo. Em Moscou, não são muitos os locais que merecem
ser vistos: a Praça Vermelha, o Teatro Bolshoi e mais um ou outro edifício.
Este introito vem a propósito da leitura de Tchevengur
(Belo Horizonte, editora Ars et Vita, 2021), romance de Andrei Platônov
(1899-1951), escrito entre 1927 e 1929 e agora traduzido pela primeira vez para
o português por Maria Vragova e Graziela Schneider, obra que discute dialeticamente
a utopia soviética naquela década. Porque não agradava aos censores da época do
stalinismo, o livro só foi completamente publicado em 1978, em inglês, com
tradução de Anthony Olcott (1950-2018), mas apenas em 1988 é que os leitores da
antiga União Soviética tiveram acesso à obra, por meio da publicação do romance
na revista literária A Amizade dos Povos, a um tempo em que o regime
soviético já agonizava.
Ou seja, até o final da vida, Platônov não teve
a ventura de ver o seu volumoso trabalho publicado, embora, em 1928, tenham
saído à luz dois fragmentos da primeira parte do romance. Em 1929, esses textos
seriam também publicados como novela sob o título A origem de um mestre,
embora tenham sofrido alterações exigidas pela censura, especialmente trechos
que faziam alusões à sexualidade, e outras feitas pelo autor, como se lê no
prefácio escrito por Maria Vragova, uma das tradutoras do texto para o
português.
É de se lembrar que este romance é da mesma
época de Coração de cachorro, de Mikhail Bulgakov (1891-1940), que,
escrito em 1925, só seria publicado em 1987, depois de estar apreendido por
décadas, e que igualmente constitui uma sátira à chamada “ditadura do
proletariado”. No Brasil, faz parte da coletânea Coração de cachorro e
outras novelas (São Paulo, Editora Edusp, 2010), com tradução de Homero
Freitas de Andrade. Em Portugal, saiu em 2014, com o título Coração de cão
(Lisboa, editora Aletheia), com tradução de Silvia Valentina. O mesmo livro,
com o título Coração de cachorro, saiu em 2019 em formato e-book,
com tradução de Alex Zuchi.
II
O livro de Platônov conta a história de Aleksandr
Dvánov, filho de um suicida, e Stepán Kopienkin, acompanhado por seu rocim
Força Proletária, que seguem pela estepe russa em busca do éden comunista e
acabam em uma cidadezinha alucinante, Tchevengur, que dá título ao livro.
Naquele lugarejo, seres humanos belos e possessos imaginam o inconcebível paraíso
comunista, que nunca existiu na Terra, mas apenas na cabeça dos mais ingênuos,
enquanto os mais hábeis e de moral mais elástica brigavam entre si pelos
melhores cargos no Partido Comunista e nas empresas estatais, repetindo as iniquidades
tão comuns no mundo capitalista.
Intitulado, a princípio, Construtores da primavera,
este espesso romance procura construir, de forma quixotesca, a vida que poderia
ter sido – e que não foi, para se repetir aqui um trecho de um poema de Manuel
Bandeira (1886-1968). Por isso, muitas vezes beira o absurdo ao expressar as
ideias “ultrarrevolucionárias” das personagens cujas contradições são expostas
na própria língua, ou nas várias línguas que povoam a paisagem platonoviana.
Como se lê no romance, no vilarejo de Tchenvengur, o verdadeiro comunismo é
implantado, já que lá ninguém teria trabalho ou ocupações, pois “o sol, que
tinha sido declarado proletário universal, trabalhava por todos e por cada um”.
Como observa a tradutora Maria Vragova,
“considerar Tchevengur um romance comunista ou anticomunista seria
reduzir o pensamento platonoviano: ele não dá respostas, mas, sobretudo,
questiona a natureza, o significado e o futuro do projeto revolucionário”. Na
verdade, os verdadeiros ideais revolucionários sempre estiveram com Platônov e
os velhos bolcheviques que nunca concordaram com a doutrina e a prática
política adotada pelo Partido Comunista que só levavam em conta os interesses e
os privilégios da troika e dos burocratas. Basta notar que dos líderes
da revolução de 1917, apenas três morreram de morte natural – Lenin (1870-1924),
Josef Stalin (1878-1953) e Yankel Sverdlov (1885-1919) –, enquanto os demais
foram assassinados.
Por isso, os personagens deste romance parecem
mais messiânicos do que revolucionários, pois imaginam a criação de um mundo
ideal, tal como aquele que algumas igrejas cristãs sugerem que há de vir depois
do retorno de Cristo, mas que estaria reservado apenas aos que se mantiverem
fiéis à doutrina até o último dia de sua vida. Já esse comunismo messiânico
sugeriria a criação do paraíso na terra, ideia que coincidia com o chamado
quiliasmo, doutrina do reino milenar que era seguida por muitos camponeses ao
final do século XIX e início do século XX na Rússia e que afirma que os
predestinados ficariam ainda na Terra durante mil anos após o julgamento final,
no gozo de todos os prazeres.
No vilarejo de Tchevengur, até mesmo o trabalho
seria abolido, já que fomentava a origem da propriedade, que, por sua vez,
causava a opressão de um cidadão sobre outros. E no comunismo lá adotado até
mesmo a família deixaria de existir, pois o casamento entre homem e mulher
seria abolido, ideia que era defendida por um dos primeiros profetas sectários
da Rússia, Daníla Filippovitch, em meados do século XVII, como observa Maria
Vragova.
Munido de uma linguagem paródica-poética e ao
mesmo tempo devastadora, o autor construiu um mundo mítico, que não caberia nos
moldes que hoje conhecemos e que tampouco são aceitáveis por quem pensa um
pouco além, pois só têm estimulado guerras e morticínios que podem até levar a
espécie humana ao desaparecimento. Seja
como for, Platônov acabou por escrever um romance único que ocupa uma posição de
destaque não só na literatura russa como na universal. E que, de certo modo,
antecipa o drama que se vive hoje na Ucrânia, onde, por culpa de ambos os lados
em conflito, muitas vidas inocentes têm sido ceifadas e a cultura histórica destruída.
III
No prefácio, a tradutora Maria Vragova faz um
resumo da biografia de Platônov, lembrando que o autor nasceu nos arredores de
Voronezh, no centro da Rússia europeia, cidade fundada em 1586 no reinado do
czar Teodoro (1557-1598). Era filho de um mecânico ferroviário e de uma mulher
profundamente religiosa, que teria transmitido ao filho uma concepção cristã do
mundo. Platônov começou a trabalhar aos
14 anos, como entregador, fundidor em uma fábrica de tubos e ajudante de maquinista
e, depois da revolução de 1917, ingressou no departamento eletrotécnico da
politécnica ferroviária. Esse universo ferroviário revolucionário teria grande
influência em sua obra literária.
Entusiasmado com os novos rumos, Platônov chegou
a participar da União Comunista de Jornalistas e passou a publicar artigos,
contos e poemas em jornais e revistas de Voronezh. Em 1920, representou aquela
entidade no Congresso de Escritores Proletários, em Moscou. Por pouco tempo,
fez parte do Partido Comunista, mas as suas ideias libertárias não encontravam
eco entre aqueles que se acomodavam à ditadura leninista, à época da Nova
Política Econômica, o que resultou em sua expulsão em 1921, pois foi considerado
“elemento instável e inconstante”. Como observa Maria Vragova, neste mesmo ano,
ele publicou Eletrificação e, em 1922, o seu primeiro livro de poemas A
profundeza azul.
A partir de então, passou a dedicar-se quase
integralmente à engenharia. Em 1927, transferiu-se para Moscou, onde, naquele
mesmo ano, escreveu as novelas O cidadão estatal e Makar, o duvidoso,
que não passariam pelo crivo da censura stalinista. Aliás, o próprio ditador
Stalin teria lido os originais e desaprovado o que já havia sido visto pelos
críticos oficiais como ambiguidade ideológica e anarquismo do autor. O escritor
Maksim Gorki (1868-1936), dramaturgo, poeta e fundador da literatura do
realismo socialista, teria até reconhecido os méritos de Platônov, mas
concluído o que o seu espírito anárquico o prejudicava e tornava os seus
escritos absolutamente inaceitáveis pelos critérios da censura stalinista.
Ainda ao final daquela década, o romancista
iria conhecer várias propriedades agrícolas estatais, recolhendo material para
escrever a novela A escavação, concluída em 1930. No ano seguinte,
publicaria a novela De reserva, que seria vista como uma calúnia contra
o “novo homem” que a sociedade comunista procurava criar e um ataque ao Partido
Comunista.
Isolado, Platônov teve de fazer uma autocrítica
em carta encaminhada aos jornais oficiais. Apesar disso, não deixou de
escrever, tendo trabalhado em Quatorze isbás vermelhas,
tragédia popular que narra a fome na província russa, e na novela O mar juvenil,
inspirada nas viagens que fizera por propriedades agrícolas coletivas mantidas
pelo Estado. A propósito, isbás é o nome que se dá na Rússia a
habitações camponesas típicas. Mais tarde, em 1934, Platônov publicou O rio
Potudán, numa época que coincide com o grande terror que culminou com a
execução de mais de 700 mil pessoas que seriam consideradas “inimigos do povo”.
Por pouco, Platônov teria escapado da repressão.
Plotônov ainda escreveu os livros As
reflexões de um leitor e Nikolai Ostróvski, que não seriam
publicados e seus originais destruídos pelos censores do Partido Comunista.
Depois disso, o autor limitou-se a escrever livros infantis. Durante a Segunda
Guerra Mundial, atuou no front como correspondente do jornal A
Estrela Vermelha, período em que escreveu quatro livros de prosa militar.
Produziu outros livros de contos que foram repudiados pela censura, acusado de
caluniar o soldado-herói russo. Tuberculoso, morreu sem ver suas principais
obras publicadas.
IV
A tradutora Maria Vragova, diretora da editora
Ars et Vita, especialista em literatura russa, tem-se destacado também como
produtora cultural em numerosos projetos culturais e artísticos nas mais
diversas linguagens: exposições de artes visuais, mostras de cinema,
espetáculos de artes cênicas e projetos editoriais. Em 2007, foi responsável pela
organização dos eventos dedicados ao aniversário da Catedral Ortodoxa de São
Pedro e São Paulo, em Karlovy Vary, na República Checa.
Em 2007, organizou a primeira retrospectiva do
arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), no Museu de Arquitetura de Moscou, na
ocasião do seu centenário de nascimento, e, em 2008, no mesmo local, a
exposição do arquiteto português Álvaro Siza Vieira. Convidada por Serguey
Gordeev, senador da região de Perm, na Rússia, colaborou em um projeto de
urbanização de Perm e na criação de um novo plano diretor para a cidade, em
parceria com a cidade de Curitiba e com o ex-prefeito Jaime Lerner (1937-2021).
Em 2009, participou da organização do Progetto
Argerich, em Lugano, na Suíça, com 35 artistas de vários países do mundo.
Realizou a produção da exposição Antanas Sutkus: um olhar livre,
que percorreu 16 cidades brasileiras; da exposição Vladimir Lagrange: Assim
Vivíamos, da exposição A União Soviética Através da Câmera e da Mostra
de Cinema Russo Contemporâneo, entre outras. É responsável pela coordenação
do Festival Internacional de Artes de Tiradentes-MG. Adelto Gonçalves -
Brasil
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Tchevengur, de Andrei Platônov, tradução de Maria Vragova
e Graziela Schneider, com ilustrações da artista russa Svetlana Filippova, texto
de apresentação de Irineu Franco Perpetuo, prefácio de Maria Vragova e posfácio
de Francisco de Araújo. Belo Horizonte: editora Ars et Vita, 584 páginas, R$ 96,90,
2021. Site: www.arsetvita.com
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Adelto
Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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