Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Macau - Um bairro de macaenses em peça do patuá

A pouco mais de um mês da estreia, a Tribuna de Macau foi assistir a um dos ensaios do grupo de teatro Dóci Papiaçám di Macau, que este ano apresenta a sátira “Oh, Que Arraial”, no Centro Cultural de Macau. A história passa-se num bairro de macaenses, o qual o Governo pretende revitalizar para atrair turistas. O grande drama começa quando a artista convidada não é de Macau. Miguel de Senna Fernandes, encenador e dramaturgo, disse a este jornal que a peça pretende mostrar o conflito existente entre o bairro não querer perder as suas características, mas precisar de gente de fora para se desenvolver. Revelou ainda que pela primeira vez se vai falar mandarim. Como já tem sido habitual, haverá também muita música à mistura. “A peça tem condições para ser um espectáculo engraçado”, observou Senna Fernandes


Um bairro macaense em plena época pós-pandémica – onde as brigas e intrigas não vão faltar, até porque há um café bastante frequentado pelos fregueses – e um plano do Governo para revitalizar os bairros antigos vão cruzar-se na peça “Oh, Que Arraial”, dos Dóci Papiaçám di Macau. O espectáculo vai subir ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Macau (CCM), no final de Maio (dias 26, 27 e 28). A pouco mais de um mês da estreia, os ensaios estão a correr bem, como disse Miguel de Senna Fernandes, apontando que o próprio bairro vai funcionar como “actor principal”.

“A ideia da peça assenta numa experiência-piloto do Governo de revitalização dos bairros antigos para atracção de turistas. Certo é que vai haver um bairro dos macaenses e interessa às autoridades que participem nesta revitalização – e isso terá sempre de ser com um carnaval”, explicou o encenador ao Jornal Tribuna de Macau. Fechar o bairro, instalar tendas de comes e bebes, e montar um palco para actuações são os objectivos das autoridades – ainda que na peça nada disto vá ser visível.

A notícia é recebida com muito bom agrado e todos se prontificam para aderir à festa, oferecendo-se para actuações diversas. Todavia, para atrair o maior número de pessoas e para o espanto do bairro, é contratado um artista de fora para abrilhantar a festa. “A artista principal vem de fora, como não poderia deixar de ser, e, portanto, há todo um drama em relação a este aspecto”, conta Miguel, acrescentando que o café da D. Rosália é onde se vão encontrar os vários membros da comunidade para comentar tudo e mais alguma coisa.

“Mano”, a personagem interpretada por Armando Ritchie, vai ser um dos fregueses “assíduos” do café. “Vai haver cenas hilariantes, vai ser uma comédia muito interessante”, conta o actor que começou a fazer teatro no Brasil e que desde 2012 integra os Dóci Papiaçám di Macau.

Também Sónia Palma, uma veterana e aliás fundadora do grupo de teatro em patuá, vai encarnar uma das clientes do café, uma “personagem pequena”, disse. “Vai ser um típico café de bairro em que as pessoas falam das coisas do dia-a-dia e às vezes de outras que aconteceram no passado”. “Há sempre intrigas”, acrescentou, entre risos.

Mandarim pela “primeira vez”

A artista convidada pelo Governo para actuar no Carnaval a decorrer no bairro dos macaenses não é local, como conta Helena Leong, que pela segunda vez participa no teatro em patuá. “Vou ser uma cantora da China. E vou falar mandarim no início, pelo que as pessoas não vão perceber nada do que digo, vai haver muitas confusões e coisas engraçadas a acontecer”, explicou a actriz, acrescentando que depois começa a falar cantonês, mas não “da forma correcta”.

Esta é uma das novidades da peça de teatro deste ano: a introdução do mandarim. “Vou levar uma pancada por causa disto. É a primeira vez que vamos ouvir mandarim na nossa peça, é só um cheirinho. A personagem depois começa a falar cantonense, mas com um sotaque muito forte do Continente”, referiu o dramaturgo.

“Tudo isto para dizer que isto é uma zona cantonense e não nos podemos esquecer disso. Culturalmente, é zona de Cantão e a cultura cantonense tem muito que ver com os macaenses. Os macaenses não têm tradição nenhuma de mandarim”, prosseguiu Miguel de Senna Fernandes, reiterando que o sotaque carregado com que a personagem encarnada por Helena Leong vai falar é assim de forma “intencional”.

Fazendo a ponte entre a ficção e a realidade, Miguel de Senna Fernandes defendeu que Macau tem de se abrir, e a própria comunidade macaense também: “Há muitos Velhos do Restelo aqui entre nós, a sociedade é assim. Temos de abrir para todo o lado, mas obviamente as portas do Continente estão aqui ao lado”.

No meio de tudo isto, aparece um português “faz-tudo”, porque está “à rasca e precisa de emprego”. É a personagem à qual João Picanço vai dar forma. “Sou um cidadão português que vem para Macau numa altura em que os portugueses estão a sair, portanto não podemos dizer que seja o português com melhor sentido de orientação”, afirmou, acrescentando que é provavelmente isso que dará “alguma graça” a “Maurício”.

A participar no teatro há já alguns anos, o jovem português disse ainda estar “muito interessado” em perceber como é que a personagem e a peça em si se vai desenvolver. “Digo isto porque os papéis que desempenhei anteriormente eram bastante sérios e este é muito mais ingénuo. É uma experiência nova e estou muito entusiasmado”, contou. Por outro lado, João Picanço vai também cantar pela primeira vez.

Música, maestro

Miguel de Senna Fernandes contou à Tribuna de Macau que este ano a peça de teatro vai contar com uma série de músicas às quais o próprio deu forma. “Fiz aí umas cinco ou seis músicas, que ainda tenho de produzir. Vai haver músicas em patuá, claro, depois uma em português e outra em chinês”, apontou. Este ano, há também um pequeno grupo de jovens interessados nesta missão de preservar o patuá que vão cantar algumas destas canções.

Também “Susana”, uma personagem interpretada por Agurtzane Azpiazu, e que namora com o filho da dona da tasca, o “Tito”, vai cantar em patuá. Agurtzane Azpiazu actuou pela primeira vez com os Dóci Papiaçám em 1999, tinha 15 anos. Em 2019 regressou ao território e desde então tem feito parte do elenco.

A jovem desvendou depois uma pouco sobre a personagem que lhe calhou desta vez: “A Susana é famosa e tem uma revista. Além disso namora com o Tito, um homem que não quer trabalhar, não quer fazer nada. E é aquela namorada chata que quer obrigá-lo a fazer alguma coisa. Sei que ele canta bem, então quero puxar por ele”, revelou.

Miguel de Senna Fernandes diz que “a peça tem condições para ser um espectáculo engraçado”. “As bocas que mandamos são para todos, até para nós próprios”, apontou, frisando que a mensagem que se pretende passar: o conflito entre manter as “características” e, por outro lado, de “haver a necessidade de ter pessoas de fora”. “Só isso é que faz andar o bairro, caso contrário, nunca mais sai do mesmo sítio”, defendeu.

Os bilhetes para a peça já estão à venda. Além do espectáculo, este ano haverá ainda, na Sala de Conferências do CCM, uma exposição fotográfica intitulada “Dóci Papiaçám di Macau – 30 anos no palco da multiculturalidade”.

O teatro em patuá, uma arte performativa única apresentada pela comunidade macaense, foi inscrito na Lista Nacional de Itens Representativos do Património Cultural Intangível da China em 2021. O patuá é um crioulo de Macau com origem na língua portuguesa antiga, combinada com malaio, espanhol, concanim, inglês e cantonense. Catarina Pereira – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”


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