As académicas Cátia Miriam Costa e Olívia Pestana analisaram a forma como os jornais Diário de Lisboa e O Comércio do Porto noticiaram a aventura dos aviadores José Manuel Sarmento de Beires e António Jacinto da Silva Brito Pais, que em 1924 voaram de Vila Nova da Milfontes com destino a Macau acabando por aterrar em Cantão. Ambas as publicações deram grande destaque à viagem, que serviu de bandeira nacional, e cujo 97º aniversário se celebra daqui a duas semanas
No
dia 2 de Abril de 1924 os aviadores portugueses José Manuel Sarmento de Beires
e António Jacinto da Silva Brito Pais partiram de Vila Nova de Milfontes, em
Portugal, para fazer aquela que seria a primeira viagem de avião entre Portugal
e Macau, apenas dois anos depois da célebre travessia entre Lisboa e o Rio de
Janeiro feita por Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
No
entanto, os dois aviadores, que se fizeram acompanhar por um alferes mecânico,
Manuel Gouveia, acabariam por aterrar nos arredores de Cantão a 23 de Junho,
depois de terem percorrido 16.380 quilómetros. Foram usados dois aviões, com os
nomes “Pátria” e “Pátria II”.
Cátia
Miriam Costa, do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e Olívia
Pestana, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, analisaram a forma
como dois jornais portugueses da época, o Diário de Lisboa e O Comércio do
Porto, noticiaram a viagem, no trabalho académico “De Lisboa a Macau: A
conquista dos ares vista pela imprensa portuguesa do ponto de vista comparativo”,
publicado recentemente no Portuguese Journal of Social Science.
Além
de olharem para a cobertura do evento do ponto de vista jornalístico, as
autoras analisaram “o compromisso [dos jornais] com a recolha de fundos e o seu
papel na mobilização do público como intermediários entre os pilotos e as
autoridades públicas”.
Apesar
do entusiasmo gerado, as académicas concluem que a aventura acabou por cair no
esquecimento. “Apesar dos investigadores das ciências aeroespaciais
considerarem ainda esta viagem como essencial para o conhecimento técnico e
científico, o voo é geralmente desconhecido e pouco estudado. Enquanto Portugal
celebra outras aventuras aéreas, esta parece ter caído no esquecimento, e as
referências oficiais são pequenas e escassas”, pode ler-se no documento.
As
explicações para este esquecimento foram dadas por Cátia Miriam Costa à agência
Lusa, em 2019, e devem-se a questões políticas. “Esta viagem foi apagada da
memória portuguesa não porque seja menos importante que a viagem de Gago
Coutinho e Sacadura Cabral. Mas, sobretudo, porque Sarmento de Beires é um opositor
ao regime que se anunciava.”
“Apesar
de militar, não concorda com a Ditadura militar, nem posteriormente com o
Estado Novo, é um homem perseguido durante o período das ditaduras em
Portugal”, recordou.
Um “evento nacional” e não só
Porquê
estes jornais? Segundo as autoras, “a escolha reflecte a necessidade de
comparar diferenças abordagens à viagem aérea e detectar eventuais estratégias
editoriais que poderiam justificar as diferenças existentes”. Além disso, os
familiares dos aviadores tinham estreitas ligações às cidades de Lisboa e do
Porto, “o que ajudou a aumentar o interesse do seu desafiante voo na
experiência destas famílias”.
As
autoras concluem que “o Diário de Lisboa publicou mais notícias sobre este
assunto do que O Comércio do Porto”, embora com “visíveis diferenças”. “Do
ponto de vista do discurso jornalístico, o orgulho pelos pilotos e pelo
projecto é uma realidade desde o início. No entanto, há também um discurso
patriótico que emerge à medida que as dificuldades aumentam e a aventura
avança. O uso de pontos de exclamação era também um padrão”, acrescenta-se.
No
caso do Diário de Lisboa, foi usada com “frequência a expressão ‘aqui e agora’,
convidando o leitor a tomar parte desta iniciativa que é sempre apresentada
como um evento nacional envolvendo todos os portugueses”.
Quando
não havia informações para publicar sobre a viagem propriamente dita, os
jornais recorriam a histórias em torno dos seus protagonistas. “O Diário de
Lisboa publicava notícias sobre a campanha de recolha de fundos, com
entrevistas aos apoiantes do projecto em Portugal (como por exemplo, o Director
de Aviação) ou artigos sobre as dificuldades que os aviadores e as suas
famílias iam enfrentando”, descrevem as investigadoras.
No
caso d’O Comércio do Porto, as notícias “eram em menor número”. “Os
acontecimentos em torno do voo transformaram-se numa narrativa que preencheu
páginas de jornal quando não havia notícias sobre os pilotos. Conteúdos sobre a
campanha de fundos são sempre noticiados em relação com o projecto e como parte
da aventura, devido ao facto de uma das dificuldades mais significativas
durante a viagem foi a falta de fundos, sejam de fontes públicas ou privadas”,
pode ler-se.
No
início do século XX, as fontes usadas pelos jornais passavam pelas entrevistas,
telegramas e agências noticiosas. Segundo as autoras, “o discurso directo foi
usado algumas vezes no Diário de Lisboa, muitas vezes transcrito em forma de
diálogo, enquanto que em outras alturas foi usado o discurso indirecto,
apresentando linhas gerais da narrativa enquanto cita declarações (em geral
pessoas directamente envolvidas com o projecto ou com o campo da aviação”.
No
caso do jornal do Porto, foi muito usado o discurso indirecto, “provavelmente
devido ao facto de ter citado fontes de informação”.
Em
ambos os jornais “os telegramas oficiais e as notícias de agências
internacionais eram transcritas, tal como outra correspondência (cartas a
familiares, por exemplo), em adição de informação com base em telefonemas”.
Foi
detectado, por parte das autoras do estudo, “um forte compromisso de afirmar a
credibilidade da informação e a sua verosimilhança através (…) do uso de
fontes, recursos de estilo no discurso, a busca pela identificação e
envolvimento do leitor na aventura”. Este compromisso “é evidente em ambos os
jornais, mas O Comércio do Porto mostra a credibilidade da informação ao citar
notícias de outras fontes de informação”.
Apesar
do esquecimento a que ficou votada a jornada, ela teve, à época, uma dimensão
equiparada às viagens feitas internacionalmente. “Outro aspecto que merece ser
enfatizado é o panorama nacional e internacional deste evento: as notícias
publicadas sobre o estado da aviação em Portugal, bem como o seu significado
político. O mesmo tipo de projectos desenvolvidos pelos aviadores de outras
nacionalidades são também mencionados, o que nos permite posicionar este evento
ao mesmo nível dos outros [a nível internacional]”, denotam as investigadoras.
O
Diário de Lisboa foi fundado em 1921 e publicou-se na capital portuguesa até
1990. A publicação “orgulhava-se da independência das opiniões dos
jornalistas”, assumindo-se, pelos fundadores, como um jornal republicano,
moderado e independente. No caso d’O Comércio do Porto, foi fundado em 1854 e
fechou portas a 30 de Julho de 2005.
Uma viagem importante
Cátia
Miriam Costa e Olívia Pestana apontam que, quando Brito Pais e Sarmento Beires
começaram os planos depararam-se de imediato com a necessidade de recolha de
fundos. “Nem o poder político estabelecido nem as forças armadas tinham fundos
necessários para patrocinar a viagem, então a primeira vez que esta viagem
captou a atenção do público foi através da ideia de obter fundos para comprar
um avião.”
Com
uma crise económica e divisões políticas, o primeiro voo entre Portugal e Macau
acabou por ganhar “um significado de unificação e uma forma de confirmar a
presença portuguesa no radar dos céus”.
O
primeiro avião, “Pátria”, cairia perto de Cantão devido a uma tempestade.
Durante o voo, “os aviadores perderam a aeronave e tiveram de esperar pela sua
substituição”. Novamente os pilotos conseguiram comprar um segundo avião
através da recolha de fundos, e desta vez com um maior envolvimento da imprensa
portuguesa.
Tratou-se
de uma viagem “com várias paragens” e acompanhada também pelos media
internacionais, “o que transformou o projecto num evento internacional”. Os
jornais analisados pelas investigadoras noticiaram a viagem “desde o início”,
tendo os leitores “respondido aos apelos por fundos e mantendo-se fiéis” às
notícias e reportagens sobre o voo.
O
feito serviu também para Portugal se “comparar a outra nação poderosa”. Neste
período “as relações com a China eram tensas devido ao debate em torno das
águas que circundavam Macau”, pelo que o voo “era um símbolo de como Portugal
era ainda um poder político com capacidade externa para lutar pelos seus
territórios”.
“A
ligação com as relações sino-portuguesas não é clara mas a aventura emerge como
algo acima dos eventos políticos em Portugal, que exalta a presença portuguesa
no mundo”, apontam as autoras.
Em
1924 estava no auge o conflito entre a I República, que já estava na sua fase
terminal [a Ditadura Militar foi instituída em 1926], e os aviadores da Força
Aérea. O voo serviu também “para desviar as atenções dos jornalistas e leitores
dos problemas das Forças Armadas e as tensões entre o Governo, o parlamento e
os militares”.
Brito
Pais não esteve envolvido intelectualmente nem ideologicamente com esse tipo de
lutas. No entanto, acaba por sofrer do mesmo ostracismo que vem do facto de não
se poder reconhecer o seu companheiro de viagem”, indicou Cátia Miriam Costa à
Lusa.
Em
Macau os pilotos foram recebidos de forma “triunfal”, descreveu a
investigadora, ainda que o voo não tenha terminado no território. Ainda assim,
nas páginas do Diário de Lisboa a aventura foi considerada um sucesso. “As
dificuldades causadas por uma tempestade sazonal e o facto de não haver nenhum
lugar preparado em Macau para a aterragem foram aspectos noticiados pelo Diário
de Lisboa antes do fim da viagem.”
Desta
forma, as publicações “acabaram por baixar as expectativas e preparar o público
para a possibilidade da viagem ser incompleta. O jornal celebrou o fim da
viagem como se o avião tivesse aterrado em Macau.”
Em
Lisboa os pilotos também foram bem recebidos e receberam condecorações
militares ainda das mãos dos governantes da I República. Com a instauração do
Estado Novo, em 1933, a viagem e os pilotos acabariam por ser despenhar num
profundo esquecimento. Andreia Silva – Macau in “Hoje
Macau”
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