Não
sei se Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) era bilharista. A sê-lo,
alinharia pelos que se comprazem na complexidade do jogo às três tabelas,
arredio a submeter-se às triangulações mais clássicas e lineares — a acreditar
no vaticínio do seu arqui-inimigo José Agostinho de Macedo: “É um gênio incapaz
de simetria!” De fato, não se pode dizer de Elmano Sadino — o seu nome arcádico
— que, como Shakespeare, Mozart ou Picasso, fosse artista, capaz de captar,
sintetizar ou magnificar tudo o que a sua época lhe oferecia.
Há
um anacronismo muito português que o fere, um engenho que lhe minou a obra até
ao achamento de si. Para a época clássica, a natureza do gosto era submetida a
leis universais e invioláveis e seria necessário romper com demasiadas coisas
para assomar no plano estético a subjetividade que culminaria no Romantismo.
Bocage,
por exemplo, fez a gesta, mas tal como Ovídio, que traduziu, só procurou nos
lugares a reminiscência “histórica”. Foi essa a ilusão que o traiu, a raiz do
seu desencontro com os lugares — velados pelos mitos. Vai ao Brasil, à Ilha de
Moçambique, a Goa, a Damão, a Macau, perseguindo a irradiação de Camões, sem se
abrir à experiência.
O
despojamento de Bocage, tanto dos mitos como dos aplausos que tão facilmente
arrebatava nos botequins e salões dos árcades, obrigá-lo-á a efetuar dois
movimentos redutores. Só após esse desengano trágico pôde o poeta alcançar o kairos,
a oportuna conjugação com o agora e com os lugares. Só aí a sua visão,
expurgada do peso canônico, se abre finalmente à subjetividade, ao seu
ineditismo.
O
barroco começara a separar o autor e a obra, o arcadismo acentuou a
“esquizofrenia”. Bocage, após ter sofrido na pele a exacerbação dos mitos,
regressa à pequena ficção de si: foi onde foi grande.
Bocage,
o perfil perdido (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo - Imesp, 2021), do brasileiro Adelto Gonçalves, é uma biografia
deliciosa, exaustiva e rigorosamente documentada. O autor é jornalista,
escritor e professor universitário, e entre outros livros já tinha assinado uma
biografia, Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira, 1999), com a qual ganhou o Prêmio Ivan Lins de Ensaios, da União
Brasileira de Escritores e da Academia Carioca de Letras; sendo ainda autor de
um romance saído em Portugal: Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada,
1999; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015).
Bocage,
o perfil perdido é um livro de fôlego, notável, que nos
leva a atravessar o século XVIII português e se estende aquém e além das
balizas cronológicas do poeta, faz o esforço de colocar este em contexto — e é
desde já uma referência imprescindível.
O
livro aponta primeiro à genealogia, à história do avô materno francês, Gil
l´Hedois du Bocage, corsário, que acosta a Lisboa com uma apresada carga de
relógios e acaba por prestar serviços à Coroa, como o de garantir a
inexpugnabilidade do Rio de Janeiro, contra uma esquadra francesa. Adelto
descreve com sabor, numa prosa que sabe ser informativa sem estar enxaguada e
que, sem abandonar a densidade requerida, entretém.
A
investigação foi aturada e traz novidades: fixa com provas e argumentação
inabalável o local de nascimento do poeta, na rua das Canas Verdes; exuma o
drama da família por causa da prisão do pai, José Luís Soares de Barbosa,
durante seis anos na cadeia do Limoeiro; desfaz a ideia-feita de uma disputa
amorosa entre Bocage e o irmão pelo coração de Gertrudes; revela os dias de
miséria vividos pela irmã, Maria Francisca, após a sua morte, e descreve os
sobressaltos que lhe minaram o espólio (entre os quais a possível sonegação de
muitos originais por José Agostinho de Macedo); betuma com dados e documentos
uma série de lacunas que persistiam.
Depois
segue o passo do poeta com a virtude de, como se diz na contracapa da edição
portuguesa, o emoldurar nos “tempos em que viveu” — a queda do marquês de
Pombal, a ação de Pina Manique, a campanha do Rossilhão, além de nos dar um
retrato do quotidiano de Lisboa.
Complementa
ainda o livro um vasto acervo documental, reproduzido em fac-símile, e
fotografias das casas onde foi parido e morreu aquele que ditou na hora do fim:
“Já Bocage não sou!... À cova escura/ Meu estro vai parar desfeito em vento
(...)”. Felizmente que não, como o comprova esta biografia, de muito longe
a melhor, do vate setubalense. António Cabrita - Moçambique
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Bocage, o perfil perdido, de Adelto Gonçalves. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), 520 páginas, 2021, R$ 85,00. Site: https://livraria.imprensaoficial.com.br/bocage-o-perfil-perdido.html
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António
Cabrita (1959) tem mais de 20 livros publicados em
Portugal, Brasil (três livros de ficção) e Moçambique (livros de fábulas,
poesia e ensaio). Foi jornalista durante 23 anos e editor. Em 2005, emigrou
para Moçambique, onde, neste momento, é professor de Dramaturgia e cronista no
semanário Savana. Tem também uma coluna no jornal Hoje Macau.
Escreveu inúmeros roteiros para filmes. Entre os seus livros, destacam-se: Inferno
(2001), sobre Camilo Castelo Branco, Bagagem não reclamada, Anatomia comparada
dos animais selvagens (Prémio PEN Clube 2018), A Kodak faliu. também
o Dick, o cão da minha infância (2020), poesia; e A maldição de
Ondina, 2013 (Taubaté-SP: Letra Selvagem, 2011), Éter, 2015, A
Paixão segundo João de Deus, 2019, e Fotografar contra a luz (2020),
romances. E-mail: cabrita96323@gmail.com
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ResponderEliminarFolgo muito em saber que a obra "Bocage, o perfil perdido", da autoria do professor Adelto Gonçalves, foi editada no Brasil.
ResponderEliminarUma obra de referência, rigorosa e bem documentada, que revê e traz informação nova sobre um escritor incontornável da lusofonia.
Bem haja, professor!
António Chitas