I
Quem
chamou a atenção deste resenhista para o modo diferente como as mulheres escritoras
olham o mundo foi o escritor catalão Eduardo Mendoza (1943), em entrevista que
concedeu, em janeiro de 1990, em Barcelona. E que seria publicada à época na
revista Linden Lane Magazine, de Princeton, Nova Jersey/EUA, no Jornal
de Letras, de Lisboa, em O Estado de S. Paulo, no Suplemento
Literário Minas Gerais e em A Tribuna, de Santos, e ainda pode ser
lida no site www.filologia.org.br.
Eis o que disse Mendoza: “Interesso-me, entre os contemporâneos, pelas mulheres. Elas interessam-me porque escrevem de uma maneira distinta. É difícil que um homem, nestes momentos, faça uma imagem que não seja conhecida. Já as mulheres têm imagens próprias, completamente novas. São uma janela para outro mundo, outra sensibilidade e outra forma de ver as coisas”.
Pois
bem, o novo livro de Eltânia André (1966), Terra dividida (São Paulo,
Laranja Original Editora, 2020), é uma confirmação das palavras de Mendoza. E
uma prova de como o olhar feminino na literatura é diferente daquele feito por
homens, como sabe quem tem intimidade com as obras de Clarice Lispector
(1920-1977), Cecília Meirelles (1901-1964), Nélida Piñon (1937), Cora Coralina
(1889-1985), Carolina de Jesus (1914-1977), Lygia Fagundes Telles (1923) e
Hilda Hilst (1930-2004), só para ficarmos com algumas autoras brasileiras. É um
outro olhar.
II
O
romance de Eltânia mostra como pano de fundo Pirapetinga, cidade de 10 mil
habitantes, que fica na divisa dos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro,
com o rio do mesmo nome separando o território mineiro de Santo Antônio de
Pádua, no lado fluminense. Embora nascida em Cataguases, cidade mineira que
constituiu extraordinário celeiro de artistas da mais alta relevância para o
País ao longo do século 20, desta vez, a autora preferiu se inspirar em
Pirapetinga, terra de seus avós, que fica a 150 quilômetros de distância, e,
assim, construiu um mundo imaginário cortado pelas águas de um rio e pelos
valores, dramas e contradições que circundam as relações pessoais.
Em
linguagem extremamente criativa e pessoal, Eltânia vai enumerando, numa prosa
escorreita e acessível a qualquer leitor, os acontecimentos na vida de uma
família, ao mesmo tempo em que traça paralelos entre a frágil democracia
brasileira e as recentes tentativas para o seu enfraquecimento, que vão até a
um possível golpe de mão armado antes das eleições previstas para 2022. Aliás,
concluído em agosto de 2016, o romance é premonitório, ao reproduzir em sua
penúltima página a fala de um esbirro da ditadura militar (1964-1985) exaltando
a figura de um torturador, prenúncio dos maus tempos que viriam com aquele que
já é considerado o pior governo da História republicana.
Em
seu romance, a autora adota a técnica do fluxo de consciência joyceano, ao percorrer
as trajetórias de figuras anônimas, como Naira, Socorrinha, Eneida, Basílio,
Nena e Almeidinha, procurando desvendar os mistérios da mente de cada
personagem. Como exemplo, eis um trecho do depoimento de Socorrinha:
“Muitas garotas não se previnem e
engravidam por descuido e de dão mal como eu. A maioria dos homens que conheço
não quer saber de compromisso doméstico, ajuda a lavar as louças e acha que
está sendo moderno. O Laurindo, ex-marido da Efigênia, fez tudo quanto é tipo
de falcatrua para enganar o juiz, no final deixou uma pensão minguada para os
quatro filhos. O Aldo se mandou sem olhar para trás, a menina dele teve que ir
ao psicólogo, tão triste ficou com o sumiço do pai de outrora. A carga bruta
sobra é pra gente (...)” (págs. 88-89).
Já
Basílio é marcado pelo prenúncio de novos tempos, pois nasce no dia 15 de março
de 1985, data em que caiu a ditadura militar. O seu depoimento vai até a época
do impeachment da presidente eleita Dilma Roussef, que, aliás, caiu mais por
ser a primeira mulher a ocupar a presidência da República brasileira do que por
qualquer outra razão alegada.
Como
se percebe, a ação do romance começa, cronologicamente, na era pré-digital, em
que as indústrias e até as redações dos jornais e revistas começavam a passar
pelas transformações ditadas pela informática, até chegar à época atual em que muitas
conversas são feitas através de e-mails, messenger do facebook,
instagram ou whatsApp, imagens privadas são divulgadas por youtube
e os negócios já não exigem dinheiro vivo para serem realizados, mas moedas
virtuais, como a bitcoin, criptomoeda criada para ser um meio de
pagamento totalmente eletrônico que transfere créditos pela rede.
III
Como
observa no prefácio a poeta Kátia Bandeira de Mello Gerlach, neste livro de
Eltânia, “o inferno das aparências reina desde antes da revolução digital e
persegue e cria marca de ferro nos seus habitantes em termos existenciais”. Para a prefaciadora, o texto de Eltânia lembra
o da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís (1922-2019), principalmente em
seu livro A sibila (1954), palavra que, entre os antigos, designava a mulher
a quem se atribuíam o dom da profecia e o conhecimento do futuro, ou seja, a
profetisa.
De
fato, tal como se dá em A sibila, o fio condutor principal é bastante
descontínuo e vai mais além, pois, se no romance de Agustina é a partir do
relato da vida de Quina, a sibila, que se sucedem episódios muito variados com
numerosas personagens, em Terra dividida as personagens principais são
pelo menos sete, além do gato Getúlio, que acompanha a sucessão de fatos com
atenção, como se fosse um ser humano.
Tal
como Agustina, Eltânia André procura mostrar a profunda dimensão humana que se
pode encontrar num espaço rural tradicional, onde cabe à mulher um papel de
primeira grandeza, pois, geralmente, os homens fogem à responsabilidade e
acabam por buscar um possível futuro melhor nas grandes cidades, deixando às
parceiras a responsabilidade maior de criar e educar os filhos. Por aqui se vê
que o livro de Eltânia chega para merecer um lugar de destaque na literatura de
Língua Portuguesa. E vem provar que as escritoras oferecem mesmo um olhar
diferente do mundo que não se vê na literatura praticada por homens.
IV
Depois de
viver experiências traumáticas com a violência urbana que marca a vida numa
cidade grande como São Paulo, Eltânia André hoje mora em São Pedro do Estoril,
aldeia da freguesia de Cascais e Estoril, perto de Lisboa. É formada em
Administração e Psicologia, com especialização em Psicopatologia e Saúde
Pública.
Tem uma
obra que já se destaca entre os autores da Literatura Brasileira: Meu nome
agora é Jaque (contos, Belo Horizonte, Editora Rona, 2007), seu livro de
estreia; Manhãs adiadas (contos, São Paulo, Editora Dobra, 2012); Duelos
(contos, Editora Patuá, 2018), Para fugir dos vivos (romance, São Paulo,
Editora Patuá, 2015) e Diolindas (romance, São Paulo, Editora Penalux,
2016), escrito em parceria com o marido, o romancista Ronaldo Cagiano. Adelto
Gonçalves - Brasil
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Terra
dividida, de Eltânia André, com prefácio de Kátia
Bandeira de Mello Gerlach e apresentação de Evandro Affonso Ferreira. São
Paulo: Laranja Original Editora, 316 páginas, 2020, R$ 55,00. Site: www.laranjaoriginal.com.br E-mail: eltaniaandre@hotmail.com
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor
de Gonzaga, um poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo, Imesp/Academia Brasileira de
Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (São
Paulo, Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia
e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo - 1788-1797 (São
Paulo, Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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