I
Siri na lata
(Santos, Realejo Edições, 2015), livro premiado e selecionado em 2014 para
publicação pelo Programa de Apoio Cultural da Secretaria de Cultura da
Prefeitura de Santos, reúne crônicas publicadas pelo poeta e crítico literário
Ademir Demarchi, de 2008 a 2015, em revistas e jornais, principalmente no Diário
do Norte do Paraná, de Maringá, além de resenhas e textos para orelhas e
prefácios de outras obras e uma percuciente entrevista dada pelo autor à
jornalista e pesquisadora Márcia Costa, publicada no Jornal da Orla, de
Santos, em 17/11/2008.
O
título, expressão muito popular na região litorânea que tenta refletir a
situação de desespero em que fica um siri ou um caranguejo preso numa lata
antes de ir para a panela, procura refletir a tensão de um trabalho que foi
escrito no “calor da hora” diante da obrigatoriedade de produzir semanalmente
um texto de cultura que prendesse a atenção do leitor de jornais diários. Como
se sabe, este tipo de leitor – cada vez mais raro nestes tempos digitais –
geralmente está mais preocupado com as coisas do dia a dia e com aquilo que
pode prejudicar a sua vida, em função da parlapatice que tem marcado a ação dos
homens públicos. São textos em que autor experimenta a crônica, a ficção, a
prosa poética, a resenha e até faz comentários de fundo político.
Desses
textos, surpreende a vasta cultura do autor e a elasticidade de suas
preferências como leitor, pois não só percorre com facilidade as obras de
autores clássicos mundiais como se demora em analisar obras de poetas,
romancistas e contistas pouco difundidos ou de renome apenas regional, o que
lhe dá a autoridade de ser um dos maiores conhecedores da produção literária
praticada nas últimas três décadas no Brasil.
II
Na
primeira parte do livro, Siri nas nuvens, a mais lírica, surpreende
aquela crônica em que o cronista reclama que, até então (o texto é de 2010), o
Brasil não deixava Barbosa morrer em paz.
Moacir Barbosa Nascimento (1921-2000) foi aquele infeliz goleiro que, na
Copa do Mundo de 1950, não segurou um chute do uruguaio Alcides Ghiggia
(1926-2015) na final disputada no Maracanã. A seleção brasileira perdeu quando
lhe bastava apenas um empate. E Barbosa morreu esquecido, como um mocho nas
solidões, aos 79 anos, em 2000, e foi enterrado no cemitério da Grande Planície
em Praia Grande, onde vivera os seus anos de ostracismo.
Mas,
em 2010, por falta de pagamento, a administração do cemitério queria se livrar
dos ossos do ex-goleiro porque pretendia aproveitar o seu túmulo para enterrar
outras pessoas. Ou seja, desta crônica, pode-se concluir que um lance fortuito
pode tanto consagrar como comprometer não só a vida de alguém para sempre como
até o seu futuro pós-morte. “Pelo jeito tem gente lá (na Praia Grande), vivinha,
que ainda não engoliu a Copa de 50”, lamenta o cronista, com ironia, na última
linha de sua crônica.
Na
segunda parte da obra, que dá título ao livro, o cronista trata de ir mais
fundo ao analisar, na crônica “A idiocracia galopante que nos governa”, o
cenário político brasileiro de há nove/dez anos, para antecipar com precisão a
situação desesperadora em que vive o país real hoje, resultado de uma
escolha desastrada por uma população facilmente manipulável por demagogos. E
cita o filme Idiocracy, dirigido em 2006 por Mike Judge, em que aparece
um presidente norte-americano, que é também “ator de filmes pornôs, truculento
e burro, mas aplaudido pela massa de ignorantes que baba com admirada estupidez
diante de gente assim que os representa, quer por se parecerem ou por
estarem em anúncios na tevê”.
Na
mesma crônica, lembra que, de 1970 para cá, dos “90 milhões em ação...para frente
Brasil, salve a Seleção”, passamos para os 200 milhões de habitantes de hoje.
“Ao longo desse tempo, temos assistido à ascensão social e econômica de uma
infinidade de brasileiros que estavam na miséria (...)”, reconhece. E conclui:
“Mas os índices não mentem: o país é formado por 7% de analfabetos absolutos e
68% de analfabetos funcionais (aqueles alfabetizados, no entanto, incapazes de
ler um livro que não seja do Paulo Coelho, e olhe lá). Restam 25% da população,
apenas, de alfabetizados, mas que praticamente não leem, não vivenciam a
cultura complexa que o país acumula. Os que o fazem talvez sejam uns 5%...”.
Em
outras palavras: o cronista parece querer dizer que nunca os idiotas mandaram
tanto, confirmando uma previsão do cronista Nelson Rodrigues (1912-1980)
segundo a qual eles “iriam tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela
quantidade, pois são muitos”.
III
Na
quinta parte do livro, Siri à caiçara, Demarchi reúne resenhas que escreveu
para assinalar a publicação de obras escritas por autores santistas ou que
estão ligados à Baixada Santista, como Marcelo Ariel, Alexandre Martins, Carlos
Gama, Edson Amâncio, Gilberto Mendes (1922-2016), Luiz Cancello, Madô Martins,
Flávio Viegas Amoreira, Manoel Herzog, Regina Alonso, José Macia, o Pepe,
antigo ponta-esquerda do Santos FC, e Patrícia Galvão (1910-1962), a Pagu, que
se tornou musa do movimento modernista, embora não tenha participado da Semana
de Arte Moderna de 1922, além de dois textos que dedicou a romances deste
resenhista.
Nas
demais seções do livro, Siri na estante, Siri na tela, Siri no corpo e Siri
no prato, o leitor ainda encontrará textos diversos dedicados a outras
obras e filmes e, por fim, à atriz Maria Alice Vergueiro (1935-2020), que, aos
80 anos, ainda excursionava com uma nova peça de teatro em que dirigia e
protagonizava uma velha senhora, “numa metáfora de si mesma que, à espera da
morte, morre e a peça se transforma em seu velório”. Por aqui, pela qualidade
do texto e pela sutileza das observações do autor, vê-se que o leitor, por
certo, só terá a acrescentar em sua cultura se vier a conhecer este livro.
IV
Ademir
Demarchi, nascido em Maringá, em 1960, mas estabelecido em Santos e São Vicente
desde 1993, foi editor das revistas de poesia Babel – Revista de Poesia,
Tradução e Crítica, de 2000 a 2017, e Babel Poética, de 2011 a 2013,
que foi premiada em primeiro lugar entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento
de 2009/2010 do Ministério da Cultura. Edita o selo editorial de livros
artesanais Sereia Ca(n)tadora, com 31 títulos publicados entre 2010 e 2018.
É
graduado em Letras na área de Francês pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM) e mestre em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), sob a orientação de Raul Antelo, um dos maiores especialistas
acadêmicos na área da Antropofagia. É doutor em Letras pela Universidade de São
Paulo (USP) na mesma área.
Publicou
Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Edições, 2007); Passeios
na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do
sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007: Lima,
Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012);
Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos,
Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); Pirão de sereia,
que reúne sua obra poética de 30 anos (Santos, Realejo Edições, 2012); O
amor é lindo (São Paulo, Editora Patuá, 2016); Gambiarra: uma pinguela
para o futuro do pretérito (Bragança Paulista, Urutau, 2018); Espantalhos,
ensaios (Florianópolis, Editora Nave, 2017) e Contra poéticas
(Florianópolis, Nave Editora, 2020), entre outros.
Com
numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites
da Internet, é colunista há 13 anos do jornal Diário do Norte do Paraná,
de Maringá, e desde 2014 dos jornais impressos RelevO, de Curitiba, e O
Duque, de Maringá. Organizou as antologias Passagens – antologia de poetas
contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do Estado do Paraná,
2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas poéticas no
Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca Pública do
Paraná, 2014). Adelto Gonçalves – Brasil
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Siri na lata, de Ademir Demarchi. Santos, Realejo Edições, 395 págs., R$ 40,00, 2015.
E-mail: ademirdemarchi@uol.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um poeta
do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Editorial Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras
d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada
(José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o
poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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