Obra
do professor Flávio R. Kothe ressurge em nova e ampliada versão, com alterações
e adendos
I
Até
o século XIX, a arte sempre serviu para mostrar como a classe dominante exercia
o seu domínio sobre escravos, servos e trabalhadores, incluindo aqui os povos
originários que viviam nas terras que seriam colonizadas por invasores
europeus. E o herói viveu seu papel em diferentes momentos históricos,
mostrando a contradição das forças sociais. É o que expõe o professor Flávio R.
Kothe em O Herói (São Paulo, Editora Cajuína, 2022), obra escrita
há mais de 40 anos, mas que recebeu nova versão, ampliada, com alterações e
adendos, na qual mostra que os heróis clássicos são todos da classe alta, tanto
o herói épico como o trágico.
Quanto
aos heróis baixos, em seu livro, o autor levanta o que havia no Germinal
(1885), do francês Émile Zola (1840-1902), mostrando como viviam os operários
nas minas de carvão francesas. E observa que isso dialoga com o naturalismo
brasileiro, com O cortiço (1890) e O mulato (1881), de Aluísio
Azevedo (1857-1913), ideia presente em seu Cânone Imperial (2025).
Depois, enfoca o surgimento do pícaro espanhol, o anti-herói clássico, o Lazarillo
de Tormes (1554), de autor anônimo, que faz parte do núcleo clássico
do gênero, que inclui Guzmán de Alfarache (1599), de Mateo
Alemán (1547-1614), e El Buscón (1626), de Francisco de Quevedo
(1580-1645).
A
partir da análise de Arte poética, do filósofo grego Aristóteles
(384 a.C-322 a.C), o autor defende que, sob a perspectiva aristocrática,
somente nobres poderiam corporificar valores elevados, ser personagens épicos
quando acumulam poder e trágicos quando o perdem, ao passo que ridículas seriam
as pessoas de extração social baixa com a pretensão de ser elevadas. “Surgiram,
na história, diversos líderes que alteraram a história e não eram de origem
alta, assim como houve aristocratas que se tornaram ridículos”, observa.
Em
outras palavras: os heróis clássicos são heróis da classe alta, que procuram
demonstrar a “classe” dessa classe. Como diz o estudioso, “classificar” a
tragédia e a epopeia como gêneros maiores e ver nos seus heróis apenas o
elevado seria desconhecer uma diferença básica entre o herói épico e o herói
trágico, bem como uma dinâmica estrutural que se manifesta nas “grandes obras”.
II
Trazendo
essa constatação para a obra de Machado de Assis (1839-1908), apontado como o
maior expoente da Literatura Brasileira, Kothe mostra como esse escritor sempre
esteve atrelado às classes dominantes, fazendo a sua defesa, embora trouxesse
no rosto as marcas da miscigenação. Afinal, os personagens principais de suas
obras sempre são quase todos oriundos das camadas altas da sociedade
fluminense, enquanto os escravos, “que constituíam a grande maioria da
população, estão quase ausentes”, diz o ensaísta, lembrando que, quando aparece
um negro em sua obra, é para atuar como um carrasco, “que tem a bondade de se
pendurar no enforcado para que morra mais depressa”. Em outras palavras: ao
contrário de Lima Barreto (1881-1922), Machado de Assis teria sido um
lambe-botas da oligarquia.
No
entanto, o autor reconhece que, se Machado não se inclina a mostrar o
socialmente baixo como elevado e, ao contrário, trata de mostrá-lo como cheio
de baixezas, conforme se vê em figuras como José Dias e Capitu, personagens do
romance Dom Casmurro (1899), também não mostra a classe alta como
sendo simplesmente elevada: “pelo contrário, é um moralista, que questiona e
corrói todas as posturas morais”. E conclui que Machado não seria um autor
trivial nem de direita nem de esquerda. Quer dizer, trata-se de uma análise a
que poucos críticos têm chegado até aqui, se é que exista algum que já a tenha
feito com tamanha agudeza mental e capacidade de discernimento.
Essa
perspicácia se vê na análise que faz dos personagens de Dom Casmurro,
cujo enredo, ao traçar o percurso ascensional de Capitu, quer demonstrar que
não é possível confiar nessa gente que vem de baixo. “Ela provém da classe
média baixa, sobe na sociedade através do casamento, mas depois é infiel ao
marido (não se sabe se para ser mais fiel a si mesma)”, diz. E questiona: “O
que o romance não pergunta nem expõe é se houve uma profunda paixão entre ela e
Escobar, impedida de ser levada adiante pelo patriarcalismo”.
Diz
mais: “O romance se pergunta se Capitu não andou manipulando Bentinho para
subir pelo casamento. A família de Bentinho é tradicional da classe dominante,
a viver de “rendas” (do trabalho escravo). Por outro lado, Escobar representa a
ascendente classe dos comerciantes”. Para o analista, a ligação entre Capitu e
Escobar encena a nível de enredo aquilo que ia ocorrendo com a evolução da
economia brasileira daquela época: os que viviam de rendas iam sendo
substituídos por empresários.
Kothe
conclui que o discurso de Bentinho/Dom Casmurro procura rebaixar Capitu,
mostrando-a como uma pessoa não-confiável em termos morais, mas acaba
centralizando a atenção nela, “fazendo com que fulgure a ambiguidade de sua
posição e de seu modo de ser, vislumbrando-se o seu drama interior, drama da
própria evolução socioeconômica”. Enfim, depois de uma análise como esta, que
vai além da superficialidade que tem marcado a crítica brasileira diante da
hegemonia machadiana, por certo, não haverá quem não avalie se não valerá a
pena uma releitura de Dom Casmurro sob esta ótica.
III
Entre
os heróis baixos, o ensaísta cita o pícaro como herói trivial às avessas, pois,
embora seja um personagem de extração social baixa, não faz a defesa do
socialmente baixo; pelo contrário, tende a ridicularizá-lo., rebaixando-o ainda
mais. É o caso do Lazarillo de Tormes, que surgiu a uma
época em que o capitalismo ainda se implantava. “Ele representa um estágio
inicial da “liberdade” do operário em escolher o seu patrão. A mobilidade
social do capitalismo é corporificada nessa figura do pícaro”, diz.
O
que se pode acrescentar é que essa atitude é plenamente justificável. Como nas
sociedades injustas de hoje, a nobreza espanhola ao tempo do pícaro era
responsável pelos desníveis sociais que levavam à delinquência urbana e rural.
Aos nobres, tudo era permitido: dificilmente, alguém dessa classe social era
processado, muito menos punido. A justiça sempre o protegia. A repressão era
feita somente contra os não-privilegiados. (No caso brasileiro, contra negros,
mestiços, indígenas e brancos pobres). Com base nessa constatação, pode-se
dizer que a picaresca trata da impossibilidade de um homem de baixa extração,
condenado pela herança social, vir a ser respeitado.
Por
isso, o êxito do Lazarillo dá-se porque concentra suas críticas
exatamente sobre duas classes cujo ócio e opulência eram fontes permanentes de
insatisfação popular – o clero e a nobreza. E porque também destruía o conceito
de honra: de origem humilde e até infame, o Lazarillo assimila truques
para escapar da fome e aceita a indecente proposta de seu protetor, o
arcipreste de San Salvador, para casar com uma criada dele, sem que o religioso
tenha de renunciar aos favores sexuais da mulher.
A
esse respeito, Kothe faz questão de ressaltar a importância e imbricação do
pícaro com os heróis trágicos e épicos, como uma contrapartida, em que não se
eleva socialmente o baixo, mas se rebaixa o pretensamente elevado. Para o
autor, no livro, o importante não é rebaixar um determinado bispo, com a ménage
a trois em que no fim todos parecem sair ganhando, ou seja, mais importante
que uma determinada figura, a obra atinge diretamente uma classe, uma
instituição: no caso, a hipocrisia da Igreja Católica, sua supremacia e
grandeza, apoiando a monarquia. Não por acaso não se sabe ao certo quem foi o
autor do Lazarillo, pois à época havia Inquisição na Espanha.
Em
resumo, esta obra serve para ajudar a repensar a literatura, aprender a pensar,
pois ensina a decifrar estruturas profundas nas narrativas. Por isso, está
muito ligada a outro livro do autor, A narrativa trivial (1994), que
igualmente despertou muitos questionamentos no ambiente acadêmico.
IV
Nascido
em Santa Cruz do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, Flávio René Kothe
(1946) é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP), com livre-docência pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC), de Campinas. Fez estágios de pós-doutorado nas universidades de Yale, nos
Estados Unidos, Heidelberg, Berlim, Konstanz, Bonn e Frankfurt, na Alemanha.
Lecionou também na PUC, de São Paulo, e na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Foi professor visitante nas universidades de Rostock, na Alemanha, onde
conseguiu refúgio por cinco anos, fugindo da perseguição da ditadura militar
brasileira (1964-1985), e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Depois
de ter sido eliminado da UnB pelo regime militar, retornou como anistiado em
1994. É pesquisador sênior e professor titular aposentado de Estética. Na
Europa, teve como interlocutores alguns dos maiores nomes da Filosofia, da
Literatura e de outras Ciências Humanas. Em seu retorno à UnB, trabalhou com as
disciplinas de Teoria Literária, Literatura Comparada, Tradução, Narrativa Trivial
e Cânone Brasileiro.
Dedica-se,
sobretudo, a questões de estética, arte comparada e semiótica da cultura.
Atualmente, coordena o Núcleo de Estética, Hermenêutica e Semiótica e é editor
da Revista de Estética e Semiótica, que está
no Portal de Periódicos da UnB. Foi presidente da Academia de Letras do Brasil,
em Brasília, por três períodos (seis anos), e é editor da revista impressa da
instituição, de publicação semestral.
Dono
de vasta obra que inclui mais de 50
livros e mais de 600 trabalhos publicados nos gêneros romance, novela, contos,
poesia, tradução e ensaios, entre os seus últimos títulos (todos publicados
pela Editora Cajuína) estão: Alegoria,
aura e fetiche (ensaios, 2023), O herói (ensaios,
2022), Benjamin & Adorno: confrontos (ensaios,
2020), O Cânone Colonial (ensaios, 2020), Literatura
e sistemas intersemióticos (ensaios, 2019), Fundamentos
da Teoria Literária (ensaios, 2019), Cânone Imperial
– ensaios (2025); Segredos da concha (contos, 2019),
Sem deuses mais (poesias, 2019), Casos do acaso
(contos, 2018), Rio do Sono (contos, 2023) e Crimes
no campus (novela, 2023) . É tradutor de autores como Walter
Benjamin (1892-1940), Theodor Adorno (1903-1969), Friedrich Nietzsche
(1844-1900), Karl Marx (1818-1883), Paul Celan (1920-1970), Franz Kafka
(1883-1924), Heinrich Mann (1871-1950), Patrick Süskind (1949) e outros. Adelto
Gonçalves - Brasil
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O Herói, de Flávio
R. Kothe. São Paulo: Editora Cajuína, 1ª edição, 130 páginas, R$ 52,00, 2022.
Site: www.cajuinaeditora.com.br E-mail:
contato@editoracajuina.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil
perdido (Lisboa, Editorial
Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os
vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global
Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na
Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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