Obra da
atriz e doutora em Letras Flávia Resende discute a influência da peça de
Sófocles em contextos pós-conflitos
I
Decifrar
a imagem mítica de quatro Antígonas – duas europeias, duas latino-americanas,
todas escritas num contexto de estado de exceção e, obviamente, totalitário – é
o que busca a professora e atriz Flávia Almeida Vieira Resende em Antígonas
– Apropriações políticas do imaginário mítico
(Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, 2023),
originalmente apresentado como tese de doutoramento na Faculdade de Letras da
UFMG, em 2017.
A
partir do texto fundador do dramaturgo grego Sófocles (497/496a.C-406/405a.C.),
um dos mais importantes escritores de tragédia ao lado de Ésquilo
(525/524a.C-456/455a.C) e Eurípedes (ca.480 a.C-406a.C.), a autora procura
analisar as formas de organização do imaginário mítico de Antígona (em grego Ἀντιγόνη),
figura da mitologia grega, irmã de Ismênia, Polinice e Etéocles, todos filhos
do casamento incestuoso de Édipo e Jocasta.
Para
quem desconhece o mito, é preciso dizer que esta versão clássica sobre a
Antígona é uma das três obras que compõem o que ficou conhecido como Trilogia
Tebana, da qual também fazem parte Édipo Rei e Édipo em Colono. Essas três
peças foram unidas posteriormente e não faziam parte da mesma trilogia quando
Sófocles as escreveu. Como se sabe, a linhagem de Antígona está marcada por
grande selvageria, já que Édipo, numa guerra, sem saber, mata o próprio pai e
casa-se com a própria mãe.
Filha
de Édipo e Jocasta, Antígona é um exemplo do amor fraternal, pois foi a única
filha que não abandonou Édipo quando este foi expulso de seu reino, Tebas,
pelos seus dois filhos. Seu irmão, Polinice, tentou convencê-la a não partir do
reino, enquanto Etéocles manteve-se indiferente. Antígona acompanhou o pai em
seu exílio até sua morte e, quando voltou a Tebas, seus irmãos brigavam pelo
trono. Ao seu retorno, desafiaria a proibição do rei Creonte de enterrar seu
irmão Polinice, que foi considerado um traidor. Creonte, então, encaminha
Antígona para a morte e Hemon, seu filho e noivo de Antígona, tenta alertar o
pai para o ato tirânico, mas sem sucesso, o que o leva ao suicídio, ao
constatar a morte de Antígona. Em resumo: o tema central da peça é um confronto entre
leis humanas e leis divinas, ou entre o direito positivo e o direito natural.
II
Bem
pesquisada e escrita em linguagem erudita, a obra como projeto surgiu quando a
autora ensaiava a peça Klássico (com K), do Mayombe Grupo
de Teatro, em Belo Horizonte, em 2012, como atriz no papel de Antígona. “Já
naquele momento, a escolha da personagem foi motivada por uma inquietação que
ela me provocava, especificamente por sua capacidade de resistência política”,
conta na introdução.
Ainda
neste texto de abertura, ao explicar a razão da escolha por um tema
extremamente difícil, a autora diz que as versões que surgiram a partir da
apropriação desse mito trágico suscitaram novos recortes “com imagens que
adquiriram um sentido de resistência em sua própria época”.
Como
se lê na contracapa, as imagens construídas em cada uma das peças analisadas
assumem uma posição por meio “do que se diz e do que se cala, do que é mostrado
e do que é ocultado em relação à primeira imagem mítica”. Desse modo, a autora trata
de analisar “quais são essas formas de organização do imaginário mítico de
Antígona e como este é utilizado para pensar as formas de organização política
de determinados espaços e tempos”.
III
O
trabalho de Flávia Resende está dividido em três partes. A primeira, “Antígona desde
a Grécia Antiga”, contempla o imaginário mítico inicial criado em torno de
Antígona, a partir, especialmente, da tragédia de Sófocles, trabalhando as
bases sobre as quais se funda. “Passamos, inicialmente, pelos contornos
históricos e míticos da tragédia sofocliana, e pelos principais pontos que a
configuram: o embate entre Antígona e Creonte, a relação entre irmãos”, explica
a autora. A partir daí, ela procura estabelecer o fundamento trágico em
Antígona que está por trás das peças que tratou de analisar em seu trabalho.
Na
segunda parte, no capítulo 2, “Antígona no contexto da Segunda Guerra Mundial”,
apresenta a personagem no contexto europeu do final daquele conflito (1939-1945),
mais especificamente com Antígona, de Jean Anouilh (1910-1987), texto de
1944 que, embora seja considerado símbolo da Resistência Francesa, por ser
aberto e maleável, agradou aos resistentes e aos colaboracionistas, a ponto de
passar pela censura alemã. Escrito à época da estadia da autora na França, foi
resultado de várias consultas a estudiosos, especialmente à professora Ariane
Eissen, da Université de Poitiers.
No
terceiro capítulo, Flávia Resende trata da Antígona de Sófocles,
de Bertold Brecht (1898-1956), peça escrita três anos após o término da Segunda
Guerra Mundial, quando o dramaturgo voltava do exílio. “O que Brecht propõe, a
nosso ver, é a inserção de causas e responsabilidades históricas pelos
sofrimentos de Antígona e da população tebana naquele momento de guerra”, diz.
E acrescenta: “Assim, ele pôde aproximar a tragédia sofocliana da tragédia do
povo alemão, em um sentido próximo ao que Raymond Williams (1921-1988) entende
por tragédia: acontecimentos e padecimentos irreversíveis, mas que, no entanto,
poderiam ter sido evitados”.
IV
A
terceira parte, “Antígona na América Latina”, traz reescrituras de Antígona nos
contextos latino-americanos de ditadura militar na Argentina e no Peru. A
primeira peça analisada é a da escritora argentina Griselda Gambaro, Antígona
furiosa, na qual “é a mulher quem dá a última palavra”. Nessa peça, de
1986, com a ditadura já terminada, há o drama dos corpos insepultos, em meio a
diversos decretos que procuram normalizar a impunidade e conceder anistia
também aos torturadores e assassinos. “A referência às “loucas” das Madres
de la Plaza de Mayo pode ser vista nos
julgamentos que os outros personagens fazem de Antígona, mas também na força de
resistência dessa personagem”, observa a autora.
O
último capítulo trata da peça Antígona, trabalho coletivo do poeta peruano
José Watanabe (1945-2007) e do grupo de teatro Yuyachkani, escrito em 2000
e que contextualiza o período do conflito armado ocorrido no Peru entre 1980 e
2000, em que o grupo Sendero Luminoso, o Movimento Revolucionário Tupac Amaru e
as Forças Armadas criaram um fogo cruzado que atingiu especialmente a população
rural e indígena (de fala quéchua), dizimando mais de 69 mil pessoas.
Em
resumo: tanto na peça argentina como na peruana, a personagem Antígona, ao
desafiar a ordem estabelecida por Creonte para enterrar seu irmão Polinices, é
utilizada como símbolo de resistência contra a tirania e a injustiça, sendo
invocada em contextos de luta por liberdade e direitos.
Nas
considerações finais, Flávia Resende observa que o que a fez unir as versões europeias
e latino-americanas do mito é que “todos os contextos de reescritas de Antígona
tinham em comum a proximidade com a instauração de estados de exceção, de
governos totalitários, em que era preciso criar forças de oposição”.
Por
fim, a autora anexou à análise entrevista que fez, em 2015, com Teresa Ralli,
atriz, escritora, diretora de teatro e professora da Pontifícia Universidad
Católica del Perú, que foi quem deu início ao projeto da Antígona
peruana, que seria depois acolhido pelo grupo Yuyachkani e pelo diretor
Miguel Rubio Zapata e, posteriormente, pelo poeta José Watanabe.
V
Flávia
Almeida Veira Resende é doutora em Literaturas Modernas e Contemporâneas pelo
Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG,
com período sanduíche (Capes/PDSE) na Université de Poitiers
(França) e na Pontificia Universidad Católica del Perú
(Lima), com tese premiada como a melhor do ano. É mestre em Teoria da Literatura pelo mesmo
programa (bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Minas Gerais –
Fapemig) e graduada em Letras pela UFMG (2010). É também atriz formada pelo
Centro de Formação Artística (Cefar) – Palácio das Artes, de Belo Horizonte.
Realizou pós-doutorado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Mato Grosso do Sul (MS), com pesquisa sobre a relação entre arte e ditadura na América Latina atual. Tem experiência nas áreas de Literatura e Artes, com ênfase em dramaturgia, atuando principalmente nos seguintes temas: atualização de textos clássicos, teatro político, teatro brasileiro e dramaturgia contemporânea. Atualmente, faz pós-doutorado na UFMG, com bolsa da Fapemig, sobre reescritas de Antígona no Brasil. Adelto Gonçalves – Brasil
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Antígonas – Apropriações
políticas do imaginário mítico, de Flávia Almeida
Vieira Resende. Belo Horizonte: Incipit Linguística, Letras e
Artes/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 290 páginas, R$ 40,00, 2023.
Site: www.editoraufmg.com.br E-mail:
editora@ufmg.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil
perdido (Lisboa, Editorial
Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os
vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP,
Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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