Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 31 de agosto de 2025

Timor-Leste - Festival Literário desafia o país a transformar-se através da leitura

O Movimento LETRAS acredita que Timor-Leste enfrenta uma “crise silenciosa” de leitura que ameaça o pensamento crítico e o futuro do país. O grupo aposta num festival literário para transformar hábitos e desafiar o Estado a encarar a literacia como prioridade nacional. Estudantes, professores e ativistas denunciam o desinteresse pela leitura e a falta de políticas públicas eficazes


“O Estado torna-se frágil quando os cidadãos são fracos.” É o alerta lançado pelo Movimento LETRAS, que em setembro organiza a terceira edição do Festival Literário sob o tema “Ler para a Transformação Social”. O evento, gratuito e aberto a toda a comunidade, terá lugar entre 6 e 8 de setembro de 2025 na Fundação Oriente, em Díli, e assinalará o Dia Internacional da Literacia.

Apesar de uma parte significativa da população timorense saber ler e escrever, o LETRAS considera que o hábito da leitura em Timor-Leste está numa situação “profundamente preocupante”, sobretudo entre a comunidade académica. Esta fragilidade, sublinha o movimento, afeta diretamente a capacidade crítica das pessoas de analisar textos, refletir sobre os acontecimentos e tomar decisões conscientes no dia a dia.

A docente de Didática da Literatura da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), Maria da Cunha, confirma a tendência. Para a professora, o problema não é a falta de recursos, mas a ausência de uma verdadeira cultura de leitura. “Concordo com a avaliação de que a comunidade académica lê pouco. Isso é algo que observo e experiencio diariamente com os meus próprios alunos”, afirmou.

Apesar de propor leituras e trabalhos, poucos alunos cumprem as tarefas. “Entre dez estudantes, às vezes, apenas um ou dois leem os textos. Os restantes não mostram progressos”, lamentou a docente, acrescentando que o uso excessivo das tecnologias e dos telemóveis é uma das principais razões do desinteresse. “Hoje, até crianças andam com o telemóvel na mão. Os jovens preferem estar online a ler”, criticou.

A docente sublinhou que as bibliotecas estão acessíveis e muitos textos são distribuídos em formato digital, mas, mesmo com estas facilidades, o desinteresse persiste. Segundo a professora, a falta de leitura afeta diretamente o desenvolvimento do pensamento crítico, o enriquecimento do vocabulário e o domínio da língua. “O contacto com o professor não é suficiente para adquirir conhecimentos profundos nas áreas filosófica, científica, pedagógica, literária, social e cultural”, explicou.

Maria da Cunha defende que os alunos devem assumir responsabilidade pelo seu próprio percurso académico. “Nas universidades, o encontro com o professor representa apenas 25%. Os outros 75% dependem do esforço individual do aluno. Infelizmente, os nossos estudantes ainda não têm essa mentalidade voltada para a leitura”, afirmou.

A docente recordou ainda as dificuldades do seu tempo de estudante, quando os recursos eram muito mais limitados. “Não tínhamos telemóveis nem energia elétrica como agora. Usávamos petromax para estudar, mas, mesmo assim, tínhamos de ler”, lembrou.

Para inverter este cenário, sugere iniciativas práticas dentro e fora das universidades, como prémios literários, oficinas de escrita, tertúlias e atividades que estimulem o gosto pela leitura. “A promoção da leitura deve envolver todas as áreas do conhecimento, porque a literatura é essencial para o desenvolvimento do pensamento crítico e da identidade cultural de um país”, concluiu.

Segundo o Censo de 2022, 72,4% da população timorense com 10 anos ou mais sabe ler e escrever, o que representa um progresso em relação a 2015, quando a taxa era de 67,3%.

Apesar da melhoria, os dados revelam fortes desigualdades entre género, faixas etárias e regiões. Os homens continuam a apresentar níveis mais elevados de alfabetização (74,7%) do que as mulheres (70,0%).

Entre os jovens com menos de 25 anos, a taxa varia entre 85% e 90%. Já na população com mais de 30 anos, os níveis descem drasticamente. Entre as mulheres com idades entre 60 e 65 anos, apenas 21,0% sabem ler e escrever, contra 45,2% dos homens da mesma faixa etária.

Em termos regionais, Díli lidera com 89,6% da população alfabetizada, seguido de Manufahi com 75,8%. Oé-Cusse, por sua vez, regista os números mais baixos, com apenas 56,7% de alfabetização entre pessoas com 10 ou mais anos.

O organizador e gerente do programa, Basílio Sanches Sávio, afirmou que o festival pretende mobilizar a sociedade para refletir sobre a importância da leitura, promovendo-a como base de uma cidadania crítica e informada.

Segundo o responsável, a iniciativa surge como resposta ao panorama frágil da cultura de leitura no país, ainda longe de estar enraizada. “A influência da globalização tem reduzido a consciência crítica dos cidadãos, afastando-os do hábito de ler livros com atenção e profundidade”, afirmou.

“O nosso compromisso é promover a leitura como um direito e um dever cívico fundamental”, acrescentou. A programação será diversificada: debates temáticos sobre feminismo, política, economia, arte e literatura de resistência; sessões com autores nacionais e internacionais; seminários de escrita criativa; oficinas de colagens e produção de zines; e uma feira do livro com participação de bibliotecas, livrarias e movimentos literários do país.

Para as crianças, haverá a hora do conto e atividades artísticas, enquanto a vertente cultural trará exposições, pintura ao vivo, poesia, música e teatro.

“O festival não é apenas uma celebração da literatura, mas também um espaço para valorizar a arte como ferramenta de construção social e intelectual”, destacou Basílio. Queremos reforçar o papel da literacia como base de uma sociedade mais crítica, justa e participativa”, concluiu.

O evento está a gerar grande expetativa entre jovens e estudantes, que o veem como um espaço de partilha e reflexão crítica.

Heger Robinson, de 22 anos, participa regularmente nas atividades do grupo e sublinha a importância do evento. “Se conseguir participar, será a minha primeira experiência. Vai ser um espaço de diálogo para os jovens e vai aumentar o interesse e a paixão pela literatura”, disse.

Para Robinson, a leitura é uma ferramenta essencial para o desenvolvimento pessoal e social. “O conhecimento que adquirimos através da leitura deve ser aplicado no quotidiano, para nos tornarmos cidadãos críticos e ativos na sociedade”, acrescentou.

Também Alcinda Menezes Martins, de 22 anos, estudante do Departamento de Gestão da UNTL, mostrou entusiasmo. “Quero ganhar experiência e aprender com os conhecimentos que os escritores vão partilhar. Espero que as atividades sirvam de motivação para nós, estudantes, dedicarmos mais tempo à leitura”, afirmou.

Alcinda reconheceu, contudo, os desafios no acesso aos livros. Segundo a estudante, uma das maiores barreiras é a escassez de títulos nas bibliotecas universitárias. “Muitas vezes, os livros que precisamos não estão disponíveis e temos de recorrer ao Google”, explicou.

Outro entrave é o preço elevado dos livros em Díli. “Gostaríamos de comprar para apoiar os nossos estudos, mas os preços variam entre 10 e 15 dólares. Muitos de nós não temos capacidade financeira”, lamentou.

Apesar disso, Alcinda defende a importância da leitura. “Ler ajuda-nos a formar pensamento crítico e a tomar consciência da realidade social em que vivemos. É essencial para construirmos um futuro melhor”, concluiu.

O Movimento LETRAS defende que uma sociedade com uma forte cultura de leitura e altos níveis de literacia é essencial para a construção de uma nação desenvolvida, próspera, justa e democrática. “Não basta apenas ler; é preciso compreender o que se lê e transformar essa compreensão em ação social, promovendo os valores da humanidade e dos direitos humanos”, frisou o coletivo.

Contudo, acusa o Governo de negligenciar a promoção da leitura. Em Timor-Leste, a leitura continua marginalizada pela falta de políticas públicas e pelo desinteresse institucional.

Mesmo assim, a participação da população nas atividades continua reduzida. Para Henrique dos Santos, membro do LETRAS, a causa não é apenas desinteresse individual, mas sobretudo a falta de condições estruturais. “O país não tem uma Biblioteca Nacional e os currículos escolares, do básico ao superior, não exigem a leitura de obras literárias como parte essencial da formação dos estudantes”, afirmou.

Já Basílio apontou outro problema: a falta de atualização e distribuição de livros nas escolas, agravada pelos preços elevados no mercado. “O Governo poderia subsidiar editoras e livrarias para tornar os livros mais acessíveis”, defendeu.

Segundo ele, essa situação desincentiva o gosto pela leitura. “A cultura de leitura em Timor-Leste é extremamente frágil, porque não têm sido feitos esforços consistentes para criar condições que a promovam.”

Educação quer transformar leitura em prioridade nacional

A chefe do Departamento de Currículo do Ensino Básico do Ministério da Educação, Édia Monteiro, reconheceu a falta de hábitos de leitura em Timor-Leste e sublinhou que o Governo está a intensificar os esforços para transformar a leitura num hábito nas escolas. A prioridade é melhorar as competências de literacia dos estudantes desde o primeiro ano de escolaridade.

Segundo Édia Monteiro, vários estudos demonstram que muitos alunos apresentam ainda níveis baixos de leitura. Para combater esta realidade, o Ministério da Educação tem implementado diversas iniciativas, como a distribuição de livros de histórias a todas as escolas e a formação de formadores para apoiar os professores na melhoria da literacia dos alunos.

“Começámos a implementar um programa de leitura antes das aulas para todos os estudantes do primeiro e segundo ciclos do ensino básico. Temos também o programa EMLULI (Educação na Língua Materna), que nos ajuda a avaliar a capacidade de leitura dos alunos”, destacou.

Apesar de alguns alunos já conseguirem ler, a compreensão dos textos continua a ser um grande desafio. “Estamos a trabalhar para mudar esta realidade e reforçar a literacia de forma contínua”, acrescentou Édia.

Para tornar os livros mais acessíveis, o Ministério criou o programa “Cantinas de Leitura”, em que os professores disponibilizam livros em sala de aula. “As bibliotecas gerais são limitadas devido à falta de infraestruturas e de pessoal qualificado para o atendimento”, reconheceu.

De acordo com a responsável, nas turmas iniciais — como a pré-escola e os dois primeiros ciclos do ensino básico — já foram criadas minibibliotecas em cada sala. Os livros distribuídos estão adaptados a cada disciplina e incluem ainda histórias infantis, de forma a incentivar o gosto pela leitura.

“A leitura passou a ser uma prioridade nacional. Por isso, no currículo do primeiro e segundo ciclos, colocámos o foco na literacia em tétum e português, com o objetivo de desenvolver a leitura e a escrita. Estamos a implementar programas para que as crianças se familiarizem com os livros desde cedo”, reforçou Édia Monteiro.

A Ministra da Educação, Dulce de Jesus Soares, recordou que o hábito de leitura não é uma responsabilidade exclusiva do Ministério, mas de toda a sociedade, sobretudo dos pais e encarregados de educação. “Os pais devem incentivar e acompanhar os seus filhos na leitura dos livros distribuídos pelo Ministério”, apelou.

De acordo com a governante, este ano o foco está na literacia básica. “As crianças precisam de livros interessantes, que as motivem a ler. Para o currículo do 3.º ciclo, temos livros escritos por timorenses, com o apoio de consultores nacionais, para criar conteúdos atrativos. Queremos que a escola seja um espaço interessante, e não um ambiente intimidador”, sublinhou.

A ministra acrescentou que o Ministério continua a produzir e a adquirir livros para distribuir às escolas em todo o país. “Mesmo que alguns livros estejam desatualizados, ainda são úteis, porque contêm conhecimentos e ciências de que precisamos”, afirmou.

Dulce de Jesus Soares apelou ainda à comunidade escolar para que os livros não fiquem guardados nas bibliotecas, mas sejam levados pelos alunos para casa, como preparação para as aulas. “Queremos evitar a prática em que os professores escrevem no quadro e os alunos apenas copiam. Precisamos de mudar essa realidade”, concluiu.

Ameaça às elites

No entanto, o movimento LETRAS vai mais longe, afirmando que o sistema político, dominado por elites, dá prioridade a interesses pessoais em vez de decisões públicas que beneficiem todos. “As elites sentem-se ameaçadas quando percebem que a sociedade começa a pensar de forma crítica. Uma sociedade que lê e produz conhecimento é um risco para quem pretende manter o controlo”, denunciou Basílio.

Para o jovem ativista, esta realidade não é fruto do acaso, mas de um sistema nacional e global construído sobre bases injustas, que impede o desenvolvimento do pensamento crítico. “Isso abre espaço para que elites políticas usem os recursos públicos em benefício próprio e de pequenos grupos de interesse”, acusou.

Apesar da falta de apoio estatal e dos recursos limitados, o Movimento LETRAS mantém a sua atuação com base no voluntariado. Este ano, além do festival, vai lançar o projeto-piloto “Literacia para Todos”, em seis municípios: Díli, Baucau, Lautém, Ainaro, Aileu e Liquiçá, com o apoio de jovens, estudantes e colaboradores.

Com o lema “Nós lemos, nós sabemos, nós transformamos”, o LETRAS quer fortalecer a cultura de leitura em Timor-Leste como passo essencial para o desenvolvimento humano e social.

A visão do movimento é criar condições para a construção de uma sociedade crítica, criativa e capaz de se transformar, promovendo a justiça social e os direitos humanos. Entre os seus principais objetivos estão: aumentar a consciência pública sobre a importância da leitura, influenciar políticas públicas que favoreçam o acesso ao conhecimento e garantir a disponibilização de materiais e espaços de leitura nas comunidades.

“O acesso à leitura é um direito fundamental. Investir na literacia é investir no futuro do país”, concluiu o Movimento LETRAS. Rilijanto Viana – Timor-Leste in Diligente


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