Quando
li, há dois anos, o livro premonitório do escritor Douglas Kennedy sobre uma
nova secessão dos Estados Unidos, em 2045, depois de uma guerra civil, achei um
tanto excessivo. A história começa com execução pública na fogueira de uma
atriz de teatro, trans e judia nova iorquina, por haver proferido, numa de suas
apresentações, reflexões consideradas blasfémias sobre Jesus, morrendo de medo
antes de ser crucificado.
Donald
Trump era só um possível pesadelo, porém, há dois anos ninguém poderia imaginar
(exceto Douglas Kennedy) nem um terço do
que vem sendo praticado por Trump nestes primeiros meses de governo.
Como
ainda lhe restam três anos e meio, nada parece impossível em termos de
rompimento com a tradição democrática norte-americana. Ninguém pode se
considerar seguro num país sem garantia por tempo de serviço, sem garantia de
função, onde ministros, professores, reitores, altos funcionários públicos são
demitidos e onde Trump parece empenhado em limpar da história os lados negros
da escravidão com uma triagem nos livros nas bibliotecas. Em breve haverá uma
revisão nos programas escolares e já se pode prever censura política nos
cenários de filmes e na edição de livros.
Estarei
também sendo excessivo como critiquei o escritor Douglas Kennedy? Talvez não,
infelizmente.
A
Idade Média, durante a qual o Ocidente viveu alguns séculos, chegou ao fim,
entre outros fatores, com a invenção da prensa de Gutenberg, facilitando o
acesso ao conhecimento pelos livros e principalmente à livre interpretação dos
textos sagrados. Uma importante consequência foi a Reforma acabando com a
primazia da Igreja Católica e permitindo a prática independente do culto
cristão sem submissão aos dogmas papais.
Pouco
a pouco, o poder religioso de Roma foi se esvaecendo, enquanto o fim do
feudalismo, transformações sociais, revoluções e crises econômicas
impulsionaram na direção de formas democráticas de governo até as atuais
grandes concentrações econômicas, oligarquias,
convivendo com ditaduras políticas e teocracias, sem se esquecer das
novas tecnologias de comunicação, das high tech, geradoras das redes
sociais e de novos tipos de comunicações humanas imediatas, tudo conectado à
inteligência artificial.
Tudo
isso são os albores de um novo mundo e de novas conquistas sociais?
Aparentemente não. Ao contrário, esses albores parecem anunciar o despertar de
tempos já vividos.
E um sucesso de livraria na Europa dos livros
do escritor italiano Giuliano
da Empoli A Hora dos Predadores e Os
Engenheiros do Caos não são obras de premonição, mas tratam da nossa
realidade.
Um
mundo de populistas como Trump e Bolsonaro, como diz a apresentação dos livros,
cuja incompetência e erros se transformam em qualidades para seus eleitores.
Porém, eles seriam incapazes de ir mais longe se não fossem apoiados pelos
especialistas do Big Data. Pessoas desconhecidas do grande público estão
mudando as regras da política que, paradoxalmente, parecem provocar ou ameaçam
provocar uma enorme marcha-a-ré nas relações internacionais e sociais do nosso
mundo.
Por
que essa forte dose de descrença? Ao ler mais um dos projetos retrógrados do
governo Trump, anunciados pela imprensa - o de retirar das mulheres o direito
ao voto.
Num
comunicado trocado com pastores evangélicos norte-americanos, o ministro da
defesa Pete Hegseth mostrou-se favorável
ao fim do voto feminino e à sujeição das esposas ao seu marido, ao republicar
no X um trecho das entrevistas de pastores evangélicos contra o voto feminino.
Isso
no contexto de declarações do pastor Dough Wilson das Igrejas Reformadas
Evangélicas, sobre os EUA como um país cristão num mundo cristão, sem mulheres
participando das Forças Armadas.
Para
reforçar essas tomadas de posição contra a liberdade e igualdade das mulheres
com os homens, outro pastor declarou à CNN que, numa sociedade cristã ideal, o
voto seria por família representada pelo marido.
Com
esse tipo de regressão, as mulheres norte-americanas evangélicas acabarão
perdendo seus direitos e se tornarão como as mulheres iranianas e islâmicas
(que podem votar), cidadãs de segunda classe. Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da
Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça,
correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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