As marcas do passado colonial português “continuam vivas” em ideias, emoções e ações, considera o pintor afrodescendente Francisco Vidal, para quem “descolonizar o pensamento contemporâneo português” continua a ser importante, passadas cinco décadas da Revolução de Abril
“Temos
de fazer isto, passados 50 anos, porque ainda há marcas”, conclui o artista
plástico nascido em Lisboa, em 1978, já depois da Revolução dos Cravos, como
faz questão de sublinhar, numa entrevista à agência Lusa, a propósito da
efeméride.
Francisco
Vidal – cuja pintura é dominada por cores vivas e linhas caligráficas que lhe
conferem movimento – sente-se, ao mesmo tempo, cidadão português, angolano e
cabo-verdiano, por ser descendente de pais africanos, que o educaram numa
“cultura de paz”. “Eu já nasci num Portugal que vai do Minho até ao Algarve,
não vai até Timor, mas sou descendente de um pai e de uma mãe que vêm de outros
territórios que eram chamados colónias”, ressalvou o pintor que se tem
interessado por descobrir a história dos movimentos anti-colonialistas,
sobretudo na figura de Amílcar Cabral (1924-1973), político e intelectual
guineense, envolvido na luta antifascista e contra o colonialismo português.
Amílcar
Cabral, nascido na Guiné, um dos fundadores do então partido clandestino PAIGC
– Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, foi assassinado
em 1973. “Nasci depois do 25 de Abril, mas estudo bastante o passado colonial
porque tenho de perceber de onde venho e para onde vou”, comentou o artista que
em 2014 apresentou o projeto de pintura “Utopia Luanda Machine” na 56.ª Bienal
de Veneza, no Pavilhão de Angola, com curadoria de António Ole, e também na
Expo Milão, com curadoria de Suzana Sousa.
O
artista plástico considera que ainda hoje é importante “descolonizar” o
pensamento, as emoções e as ações da sociedade portuguesa: “Ainda vivemos,
todos nós, numa estrutura que vem do espaço colonial, portugueses, angolanos,
cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, todo o nosso universo lusófono pensa
em português. Este tipo de pensamento ainda existe no pensamento contemporâneo
português”, sublinha. “Eu percebo a necessidade de sair dessa mentalidade e
entender essa estrutura mental colonizada, e trazê-la para um presente e um
futuro mais consciente”, defende, lembrando um passado que “deixou marcas” que
“continuam vivas e activas”.
No
Festival Iminente, Francisco Vidal apresentou uma performance com batucadeiras
cabo-verdianas para recordar e homenagear o ator Bruno Candé, assassinado em
2021 em pleno dia, em Lisboa, por um ex-combatente da guerra colonial, que
ficou registado como ataque de ódio racial.
Para
a performance, Vidal disse ter-se apercebido que falou com as batucadeiras para
explicar que era importante fazer aquela iniciativa, “embora Bruno Candé fosse
guineense e não cabo-verdiano”. “Só mais tarde refleti sobre essa necessidade
minha de lhes justificar”, disse, referindo-se às suas experiências de
infância, e a certas crenças que continuam na mente de muitos africanos e
afrodescendentes. “Ultimamente estive a ver o documentário sobre a guerra
colonial do Joaquim Furtado e percebi que, nessa altura, existiu uma estratégia
do exército português de ‘dividir para reinar’ nas antigas colónias. A ideia,
colocada em prática, era pôr os guineenses contra os cabo-verdianos, porque
foram aqueles que, no espaço colonial, da ditadura, tinham sido instrumentalizados
para que esse espaço existisse em África”, apontou o artista que usa também o
desenho e instalações no seu trabalho.
Quando
era criança, nos anos 1980, Francisco Vidal recorda-se de ouvir várias pessoas
dizerem-lhe que “ser filho de pai angolano e mãe cabo-verdiana era uma mistura
terrível”. “’O teu pai e a tua mãe não se vão dar bem, não vai dar certo’,
diziam-me. Isto foi e é ainda um traço da cultura colonial que temos de
descolonizar” passadas várias décadas, defende o artista licenciado em
Escultura pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, e que
estudou Artes Visuais na Escola de Artes Visuais Maumaus, em Lisboa.
Vidal
viveu durante algum tempo nos Estados Unidos, obtendo o mestrado na School of
Visual Arts da Columbia University, em Nova Iorque. Começou a pintar
profissionalmente em 2000, e a expor com regularidade a partir de 2005, em
mostras individuais e coletivas, em Lisboa, Luanda, Paris, São Tomé,
Joanesburgo, São Paulo, Londres, Macau, Lagos e Chile. “Essa cultura
anti-guerrilha do exército português, de dividir para reinar, existiu realmente
no passado. Não acredito que na nossa cultura isso aconteça ainda. Já não
queremos dividir os cabo-verdianos para ter domínio sobre eles, mas ainda há
resquícios dessas marcas”, avaliou, em entrevista à Lusa.
Tendo
nascido em Portugal, “no pós-guerra colonial ou guerra das independências do
ponto de vista africano”, e “sendo também angolano e cabo-verdiano, que é outro
espaço de pensamento”, Francisco Vidal sente que é, ao mesmo tempo, “português,
europeu e africano”, culturas sobre as quais tem refletido, e que derramam uma
conotação histórica e política na sua obra, na qual aborda temáticas como a
diáspora africana, miscigenação cultural e identitária, e as correntes
transculturais. “Eu não vejo nenhuma diferença entre ser europeu ou africano.
Sou completamente não binário, e vejo-me como uma pessoa. Mas há artistas
brasileiros afrodescendentes que têm uma ideia completamente diferente, porque
estão mais perto dos afro-americanos, do lado de lá do Atlântico. Dizem que não
conhecem o seu passado, o nome de família, as suas raízes. Sentem um vazio
muito grande no preenchimento da sua biografia”, disse.
Francisco
Vidal também encontra no passado português ligado à ditadura um “culto do
único, do primeiro, de só poder existir um, melhor do que todos, como no tempo
do Salazar”: “Acredito que temos esta ‘síndrome Fernando Pessoa’ na nossa
cultura”, no sentido de ter de haver uma referência acima de todas as outras,
maior que todas as outras, “que inibe a cultura artística de crescer e de
evoluir, como na altura do Estado Novo”. “Ao mesmo tempo, a nossa cultura é
comum, é nossa, partilhada, e enriquece com os pontos de vista diferentes de
todos estes lugares” nas ex-colónias, sublinha o artista cuja obra está
representada em várias coleções públicas e privadas, como as da Fundação EDP,
da Fundação PLMJ e a Coleção Sindika Dokolo. In “Ponto
Final” – Macau com “Lusa”
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