I
Livro
já considerado clássico da Literatura Brasileira, À beira do corpo (São
Paulo: Casarão do Verbo/Bookeirão, 2018), do
poeta e ficcionista Walmir Ayala (1933-1991), publicado pela primeira vez em 1964,
ganha a sua 13ª edição e merece ser conhecido pelas novas gerações. Maior
sucesso literário do autor, trata-se de um romance singular, pois, embora
considerado ficção, parte de uma tragédia ocorrida na própria vida do autor,
que o inspirou a buscar explicação para um incomensurável desatino.
Ou
seja, Ayala, quando tinha apenas quatro anos, viu a mãe e seu amante serem
assassinados a tiros pelo pai. E, como observa o romancista, roteirista e
jornalista Eliezer Moreira (1956), no texto de apresentação da obra, procurou
recriar “poeticamente a experiência traumática da infância com uma coragem e
autenticidade raras, numa espécie de catarse ou purgação”.
Um
dos escritores brasileiros mais premiados de sua geração, nos vários gêneros
literários a que se dedicou, Ayala, inspirado em Machado de Assis (1839-1908) e
o seu Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), coloca um “verme” a contar
a história do fatídico triângulo amoroso. E que começa por mostrar Bianca, uma
jovem de 17 anos, “de uma beleza cobiçada em toda a redondeza”, filha do velho
Piero, proprietário de uma chácara de pêssegos, que começa a se preparar para
as bodas com um moço pobre da vizinhança, Vicente, dono de uma ferraria.
O
enlace, um acontecimento auspicioso na pequena cidade de Vila Nova, no Rio
Grande do Sul, teria tudo para dar certo e constituir o início de uma família
muito promissora, se não fosse por uma fatalidade: a moça, antes mesmo de se casar,
seria atraída por outro rapaz, o tenente Sebastião, que já era casado. E,
depois de casada, contando com a cumplicidade e o auxílio da empregada Flora, deixando-se
levar pela paixão carnal, começa a trair o marido. Flagrada em adultério,
depois de ter sido delatada por Flora, Bianca e seu amante são assassinados a
tiros por Vicente, que, antes de tudo, havia sido encorajado pelo próprio sogro,
que lhe haveria de fornecer a arma do crime. Um drama impulsionado pelos
sentimentos de uma sociedade patriarcal e extremamente conservadora, que
acompanhara vivamente, desde o início, todos os lances daquela desdita.
O
romance vai mais além e mostra Vicente submetido a um tribunal de júri e
absolvido pelo crime cometido, pois, para aquela sociedade machista, a culpa
seria do corpo de Bianca que se mostrara incapaz de reprimir à atração pelo
sexo. Tanto que, ao final do julgamento, o assassino seria cumprimentado
efusivamente por populares.
II
Apesar de sua reputação cada vez maior de grande ficcionista, Walmir Ayala ainda não encontrou o reconhecimento que sua obra merece, talvez porque a crítica fica tomada por uma espécie de pânico, ao tentar definir a massa enorme de sua obra formada por romances, contos, poemas e ensaios críticos, especialmente no campo da literatura infantil.
Essa
falha, porém, foi parcialmente superada com o número cinco da revista Hoblicua,
de Teresina, de 2018, organizado pelo crítico literário e ensaísta Carlos
Newton Júnior (1966), que traz várias entrevistas de Walmir Ayala, cartas
dirigidas a escritores e poetas como Vinícius de Morais (1913-1980), Foed
Castro Chamma (1927-2010), Clarice Lispector (1920-1977), Carlos Drummond de
Andrade (1902-1987), Astrid Cabral (1936) e Eduardo Portella (1932-2017), entre
outros, além de poemas e um diário do
autor que vai de 1962 a 1990.
De
nota escrita por Carlos Newton Junior, ao final do volume, sabe-se de outra
tragédia que marcou a vida do poeta: aos 56 anos, dois anos antes de sua morte
por ataque cardíaco, perdeu seu filho adotivo, Gustavo, que cometeu suicídio na
casa de praia que possuía em Saquarema, no Rio de Janeiro.
Influenciado por poetas de renome como Lúcio Cardoso (1912-1968), Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles (1902-1964) e Manuel Bandeira (1886-1968), que conheceu também pessoalmente, Ayala produziu poemas em que não deixou de assinalar a sua religiosidade e seu inconformismo com o que o destino lhe reservara, como se vê no poema “Hoje me dói a vida como um cravo”, que faz parte do livro O edifício e o verbo (1961):
Hoje me dói a vida como um cravo / e morro de desejo de morrer, sinto pelo meu sangue se acender / a aurora de infortúnio em que me lavo. / Que vale desta forma receber / o dom da luz, o lídimo conchavo / de cada dia, se a carpir me agravo / no sítio onde devera florescer? / Hoje me dói o sol na córnea gasta / de tanto pranto não vertido, e adeja / a asa da solidão na minha carne. / Percorro como um louco iconoclasta / o adro de mim, e grito, sem que veja / instrumento melhor para quebrar-me.
III
Walmir
Félix Ayala, nascido em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, foi poeta,
romancista, memorialista, contista, teatrólogo, ensaísta, crítico literário e
crítico de arte. Cursou Filosofia (incompleto) na Pontifícia Universidade
Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, em 1954, publicou em 1955 seu primeiro
livro de poesia, Face dispersa, financiado por seu pai. Em 1956,
transferiu-se para a cidade do Rio de Janeiro, onde produziu diversas peças
teatrais e atuou, de 1959 e 1965, como crítico de teatro em diversos
periódicos, como o Jornal de Letras e a revista Leitura.
Colaborou
intensamente com diversos periódicos, como o Correio da Manhã, Última Hora,
O Cruzeiro e o Jornal do Brasil, como crítico de artes plásticas. Em
1970, trabalhou como assessor cultural do Instituto Nacional do Livro (INL).
Conquistou, em 1972, o primeiro prêmio no Concurso de Literatura Infantil do INL
com o livro A toca da coruja. Sua obra poética compreende os livros O
edifício e o verbo (1961), Questionário (1967), Cangaço vida paixão
norte morte (1972), Memória de Alcântara (1979) e Os reinos e as vestes
(1986), entre outros. A sua poesia vincula-se à terceira geração do Modernismo
brasileiro.
Além de À beira do corpo, publicou outros
romances, como Um animal de Deus (1967), Partilha de sombra
(1981), A selva escura (1990), As ostras estão morrendo
(2007) e livros de contos, tais como Ponte sobre o rio escuro (1974) e o
póstumo O anoitecer de Vênus (1998). Em edições póstumas, saíram ainda
os livros de poesia A viagem (2011), Caderno de pintura (2014) e Poemas
do Surf (2019), além de diversos outros de ensaio, ficção e literatura
infantojuvenil.
Organizou
a Antologia dos poetas brasileiros – fase moderna (Ediouro, 1967), em
colaboração com o poeta Manuel Bandeira, e outras sobre os poetas Gregório de
Matos (1636-1696), Mário Quintana (1906-1994), Lêdo Ivo (1924-2012), Ferreira
Gullar (1930-2016), Marcos Konder Reis (1922-2001)
e Lila Ripoll (1905-1967). Publicou,
entre outros ensaios, Vicente,
inventor (1980), sobre o pintor e poeta Vicente do Rego Monteiro (1899-1980).
Ainda
em 1967, recebeu o prêmio de Poesia da Fundação do Distrito Federal pelo livro Cantata.
Coordenou, a partir de 1975, a elaboração do Dicionário brasileiro de artistas
plásticos, pelo Ministério da Educação (MEC). Traduziu para o português
obras dos espanhóis Miguel de Cervantes (1547-1916) e Federico García Lorca
(1898-1936), além do poema “Martín Fierro”, do argentino José Hernández
(1834-1886), publicado pela Ediouro em 1992. Conquistou também os prêmios
Monteiro Lobato de Literatura Infantil, Olavo Bilac de Poesia, Érico Veríssimo
de Romance, Nestlé de Literatura e The best of the best da Biblioteca
Internacional de Munique, entre outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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À beira do
corpo, de Walmir Ayala, com texto de apresentação de Eliezer
Moreira. São Paulo: Editora Casarão do Verbo/Bookeirão, 13ª edição, 200 páginas,
R$ 34,00, 2018. Site: casaraodoverbo@com.br E-mail do editor: rosel@casaraodoverbo.com.br
Revista Hoblicua,
especial Walmir Ayala – diários, cartas, poemas, entrevista, nº 5, 2018.
Teresina-Piauí, 196 páginas. Site: hoblicua.com.br E-mails: contato@hoblicua.com.br editores@hoblicua.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os vira-latas da madrugada (José
Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder:
o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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