Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

‘Expedição Abissal’: dias de angústia debaixo da terra

Romance de Hélverton Baiano recupera a aventura vivida por professores e mateiros, na década de 1970, num complexo de grutas no interior de Goiás

                                                                   I

Se “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”, como dizia o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), a ficção é a saída para se tentar explicar aquilo que ficou no passado envolto em muitas brumas. Nesse sentido, o texto literário, sem as amarras da reportagem ou da notícia de jornal ou do vídeo da televisão ou das redes sociais, por meio do recurso da fantasia, procura trazer ao leitor o que ficou lá atrás, sem maiores explicações.

Foi o que procurou fazer o experiente jornalista Hélverton Baiano (1960), ao buscar na ficção a melhor maneira de contar um episódio que ocorreu em 1971, quando um grupo de professores e pesquisadores saiu em busca de vestígios de minerais radioativos no interior de Goiás. Esse romance, o primeiro de um autor que se já havia destacado com obras de poesia e prosa poética, tem por por título Expedição Abissal (Astrolábio Edições, 2022) e procura reconstituir o drama que aquele grupo viveu ao se embrenhar no complexo de grutas de Terra Ronca, em São Domingos, região Nordeste de Goiás, a 640 quilômetros de Goiânia. Aqueles pesquisadores e seus ajudantes se perderam e percorreram, durante 46 dias, cerca de 100 quilômetros debaixo da terra, até que chegaram à Gruta da Barrinha, em Correntina, já no Estado da Bahia.

Para contar essa trajetória e todos os seus percalços, Hélverton Baiano utilizou uma linguagem bem regionalizada e, ao mesmo tempo, poética, ao se colocar também como personagem-testemunha, como assinalou no texto de apresentação Ademir Luiz da Silva, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), seção de Goiás, para quem a obra se trata desde já de “um clássico de nascença”, destacando principalmente a “construção da linguagem” utilizada. Para facilitar a leitura, o autor ainda se preocupou em colocar ao final um glossário com palavras típicas da região. Veja-se, como exemplo, este excerto em que conta a situação da expedição ao 13º dia:

Já fez tempo de voltar, mas, em labirinto, todo rumo é entrada ou cafundó. Saber é nenhum. A maioria decidiu uma saída e fomos na toada linheira, perambulando procuras, tateando locas, acutilando brenhas, na busca de violentar espaços devolutos e sojigar fôlego de saídas, sem ter certeza se realmente eram as saídas aqueles lugares por onde titubeávamos (...).

 

                                                        II

No posfácio que escreveu para esta obra, o autor lembra que, à época em que escreveu o romance (novembro de 2017 a outubro de 2018), apenas três dos excursionistas ainda viviam, bem como a professora Mary Baiocchi, que era da equipe de apoio e fora a orientadora dos onze professores e cientistas de universidades de Goiás e Minas Gerais que participaram da expedição, ao lado de mateiros, pessoas acostumadas a explorar locais íngremes. O objetivo seria o de fazer pesquisas nos campos da arqueologia, engenharia de minas, geologia, geografia e antropologia.        

O primeiro contato do ficcionista, porém, havia sido com o professor doutor Altair Sales Barbosa, seu conterrâneo e amigo, que ainda tinha na memória muitos lances daquele episódio. Segundo o autor, a intenção dos pesquisadores seria a de colher amostras para saber se haveria a possibilidade de existir urânio naquela formação rochosa, além de estudar a profundidade dos seus rios subterrâneos. Ocorreu, porém, que a expedição se perdeu dentro das cavernas, geralmente banhadas por rios, sem saber a saída. Como conta Baiano, desorientados e com fome, os pesquisadores e os mateiros sobreviveram comendo apenas nacos de farinha com rapadura. Foram 46 dias de desespero.

Sem perder o entusiasmo de repórter, o autor, ainda que tenha recorrido à ficção, visitou o complexo de grutas na Serra Geral e imaginou a situação que lhe foi contada por aquele professor. Colocou-se no romance como personagem e procurou contar a epopeia na primeira pessoa, misturando a realidade com a ficção. “A história existiu, não como a contei e nem como me foi contada. Por isso, qualquer semelhança com a ficção é mera realidade”, avisa ao leitor.

Ao reconstituir aquele que seria o 46º dia perdidos no labirinto subterrâneo, o autor-personagem conta o momento em que os expedicionários descobriram que sobreviveriam:

Os rodopios de cada um em cima de si e em seus círculos atordoados, sem ninguém atinar o que acontecia, até que o professor Romário Arrieda conseguiu se desvencilhar da claridade e gritou, atinando para o que acontecia: – Saímos, saímos, saímos, gente. O som desses gritos embaralhou um pouco nossas cabeças, até que aos poucos aliamos os acomodamentos das vistas com a paisagem, a linda e mesmo exuberante paisagem, certo que esplendor é pouco para a visão mais bela de toda vida.

O narrador não deixa de lembrar que, enquanto os mateiros e os pesquisadores viviam dias de angústia dentro da terra, do lado de fora colegas das universidades, gente da prefeitura e até tropas do exército nacional vasculharam a região, em busca de rastros dos expedicionários. Tudo sem êxito, o que transmitia a impressão de que aqueles homens teriam se perdido para sempre.

Aliás, à época, tropas do exército vasculhavam a região em busca do capitão Carlos Lamarca (1937-1971), líder da facção Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que seria morto em Ipupiara, na região de Brotas de Macaúbas, no sertão da Bahia. Como conta o autor, curiosamente, a indicação para a saída seria dada pela intuição de um ateu, o comunista Auriosto Gonte, que participava da expedição.

Ainda que tenha recorrido à ficção, não se pode deixar de constatar que o trabalho de Hélverton Baiano merece a atenção daqueles que se preocupam em conhecer a verdadeira história do Brasil, especialmente a vivida sob o regime militar (1964-1985), que, mais de meio século passado, ainda esconde muitos pontos obscuros, disfarçados pelos subterfúgios da política imposta pelas classes dominantes. Sem contar que o leitor ainda haverá de se encontrar com um romance que se destaca por sua linguagem regional e inovadora, desconhecida, de certo modo, do grande público leitor das demais regiões brasileiras.

 

                                                                  III

Hélverton Baiano, nome literário de Hélverton Valnir Neves da Silva, nasceu em 1960, em Correntina, na Bahia, e vive, desde os 15 anos, em Goiânia, onde atua como jornalista desde o início da década de 1980. Naquele ano, iniciou também sua trajetória literária, quando ganhou o primeiro lugar no concurso de contos do Gremi, na cidade de Inhumas, que era um dos mais significativos de Goiás até o início da década de 1990.

Poeta, cronista e contista, é autor de mais 12 livros, de poesia e prosa, entre os quais 69 poesias dos lençóis e da carne (Ed. Independente, Goiânia, 1983), com Gilson Cavalcante; Confecção de Poesia (Ed. Independente, Goiânia, 1992); História de Correntina (Ed. Independente, 1996);  Algemas de Algodão, contos (Ed. IGL, Agência Goiana Pedro Ludovico, Goiânia, 2002); Paraíso Profano, poesias (Ed. Independente, Goiânia, 2009); Sapituca no Furdunço, crônicas (Ed. Pontifícia Universidade Católica-PUC-GO/Kelps, Coleção Goiânia em Prosa e Verso, Goiânia, 2011); e Bacondê dê lê lê, crônicas/contos (Ed. PUC-GO/Kelps – Coleção Goiânia em Prosa e Verso, 2012).

Ganhou vários concursos regionais e nacionais de poesia e prosa e tem participação em dezenas de antologias – uma delas em Portugal. Aguarda a publicação de dois livros vencedores da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos (União Brasileira de Escritores-UBE-GO/Prefeitura de Goiânia), de 2013 (prosa, com Bramuras), e de 2015 (poesia, com Encanto Perverso). É também letrista e parceiro de vários compositores de música regional goiana. Adelto Gonçalves - Brasil

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Expedição Abissal, de Hélverton Baiano. São Paulo/Lisboa: Astrolábio Edições, 252 páginas, R$ 45,90, 2022. E-mails: geral@astrolabioedicoes.com comercial@astrolabioedicoes.com

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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP),  é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br





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