Romance
de Hélverton Baiano recupera a aventura vivida por professores e mateiros, na
década de 1970, num complexo de grutas no interior de Goiás
I
Se “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”, como dizia o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), a ficção é a saída para se tentar explicar aquilo que ficou no passado envolto em muitas brumas. Nesse sentido, o texto literário, sem as amarras da reportagem ou da notícia de jornal ou do vídeo da televisão ou das redes sociais, por meio do recurso da fantasia, procura trazer ao leitor o que ficou lá atrás, sem maiores explicações.
Foi o que procurou fazer o experiente jornalista
Hélverton Baiano (1960), ao buscar na ficção a melhor maneira de contar um
episódio que ocorreu em 1971, quando um grupo de professores e pesquisadores
saiu em busca de vestígios de minerais radioativos no interior de Goiás. Esse
romance, o primeiro de um autor que se já havia destacado com obras de poesia e
prosa poética, tem por por título Expedição Abissal (Astrolábio Edições,
2022) e procura reconstituir o drama que aquele grupo viveu ao se embrenhar no complexo
de grutas de Terra Ronca, em São Domingos, região Nordeste de Goiás, a 640
quilômetros de Goiânia. Aqueles pesquisadores e seus ajudantes se perderam e
percorreram, durante 46 dias, cerca de 100 quilômetros debaixo da terra, até que
chegaram à Gruta da Barrinha, em Correntina, já no Estado da Bahia.
Para contar essa trajetória e todos os seus
percalços, Hélverton Baiano utilizou uma linguagem bem regionalizada e, ao
mesmo tempo, poética, ao se colocar também como personagem-testemunha, como
assinalou no texto de apresentação Ademir Luiz da Silva, professor da
Universidade Estadual de Goiás (UEG) e presidente da União Brasileira de
Escritores (UBE), seção de Goiás, para quem a obra se trata desde já de “um
clássico de nascença”, destacando principalmente a “construção da linguagem”
utilizada. Para facilitar a leitura, o autor ainda se preocupou em colocar ao
final um glossário com palavras típicas da região. Veja-se, como exemplo, este
excerto em que conta a situação da expedição ao 13º dia:
Já fez tempo de voltar, mas, em
labirinto, todo rumo é entrada ou cafundó. Saber é nenhum. A maioria decidiu
uma saída e fomos na toada linheira, perambulando procuras, tateando locas,
acutilando brenhas, na busca de violentar espaços devolutos e sojigar fôlego de
saídas, sem ter certeza se realmente eram as saídas aqueles lugares por onde
titubeávamos (...).
II
No posfácio que escreveu para esta obra, o autor
lembra que, à época em que escreveu o romance (novembro de 2017 a outubro de
2018), apenas três dos excursionistas ainda viviam, bem como a professora Mary Baiocchi,
que era da equipe de apoio e fora a orientadora dos onze professores e
cientistas de universidades de Goiás e Minas Gerais que participaram da
expedição, ao lado de mateiros, pessoas acostumadas a explorar locais íngremes.
O objetivo seria o de fazer pesquisas nos campos da arqueologia, engenharia de
minas, geologia, geografia e antropologia.
O primeiro contato do ficcionista, porém, havia sido
com o professor doutor Altair Sales Barbosa, seu conterrâneo e amigo, que ainda
tinha na memória muitos lances daquele episódio. Segundo o autor, a intenção
dos pesquisadores seria a de colher amostras para saber se haveria a
possibilidade de existir urânio naquela formação rochosa, além de estudar a
profundidade dos seus rios subterrâneos. Ocorreu, porém, que a expedição se
perdeu dentro das cavernas, geralmente banhadas por rios, sem saber a saída.
Como conta Baiano, desorientados e com fome, os pesquisadores e os mateiros
sobreviveram comendo apenas nacos de farinha com rapadura. Foram 46 dias de
desespero.
Sem perder o entusiasmo de repórter, o autor, ainda
que tenha recorrido à ficção, visitou o complexo de grutas na Serra Geral e
imaginou a situação que lhe foi contada por aquele professor. Colocou-se no
romance como personagem e procurou contar a epopeia na primeira pessoa,
misturando a realidade com a ficção. “A história existiu, não como a contei e
nem como me foi contada. Por isso, qualquer semelhança com a ficção é mera
realidade”, avisa ao leitor.
Ao reconstituir aquele que seria o 46º dia perdidos
no labirinto subterrâneo, o autor-personagem conta o momento em que os
expedicionários descobriram que sobreviveriam:
Os rodopios de cada um em cima de
si e em seus círculos atordoados, sem ninguém atinar o que acontecia, até que o
professor Romário Arrieda conseguiu se desvencilhar da claridade e gritou,
atinando para o que acontecia: – Saímos, saímos, saímos, gente. O som desses
gritos embaralhou um pouco nossas cabeças, até que aos poucos aliamos os acomodamentos
das vistas com a paisagem, a linda e mesmo exuberante paisagem, certo que
esplendor é pouco para a visão mais bela de toda vida.
O narrador não deixa de lembrar que, enquanto os
mateiros e os pesquisadores viviam dias de angústia dentro da terra, do lado de
fora colegas das universidades, gente da prefeitura e até tropas do exército
nacional vasculharam a região, em busca de rastros dos expedicionários. Tudo
sem êxito, o que transmitia a impressão de que aqueles homens teriam se perdido
para sempre.
Aliás, à época, tropas do exército vasculhavam a
região em busca do capitão Carlos Lamarca (1937-1971), líder da facção
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que seria morto em Ipupiara, na região
de Brotas de Macaúbas, no sertão da Bahia. Como conta o autor, curiosamente, a
indicação para a saída seria dada pela intuição de um ateu, o comunista
Auriosto Gonte, que participava da expedição.
Ainda que tenha recorrido à ficção, não se pode
deixar de constatar que o trabalho de Hélverton Baiano merece a atenção daqueles
que se preocupam em conhecer a verdadeira história do Brasil, especialmente a
vivida sob o regime militar (1964-1985), que, mais de meio século passado,
ainda esconde muitos pontos obscuros, disfarçados pelos subterfúgios da
política imposta pelas classes dominantes. Sem contar que o leitor ainda haverá
de se encontrar com um romance que se destaca por sua linguagem regional e
inovadora, desconhecida, de certo modo, do grande público leitor das demais
regiões brasileiras.
III
Hélverton Baiano, nome literário de Hélverton Valnir
Neves da Silva, nasceu em 1960, em Correntina, na Bahia, e vive, desde os 15
anos, em Goiânia, onde atua como jornalista desde o início da década de 1980. Naquele
ano, iniciou também sua trajetória literária, quando ganhou o primeiro lugar no
concurso de contos do Gremi, na cidade de Inhumas, que era um dos mais
significativos de Goiás até o início da década de 1990.
Poeta, cronista e contista, é autor de mais 12 livros,
de poesia e prosa, entre os quais 69 poesias dos lençóis e da carne (Ed.
Independente, Goiânia, 1983), com Gilson Cavalcante; Confecção de Poesia
(Ed. Independente, Goiânia, 1992); História de Correntina (Ed.
Independente, 1996); Algemas de
Algodão, contos (Ed. IGL, Agência Goiana Pedro Ludovico, Goiânia, 2002); Paraíso
Profano, poesias (Ed. Independente, Goiânia, 2009); Sapituca no Furdunço,
crônicas (Ed. Pontifícia Universidade Católica-PUC-GO/Kelps, Coleção Goiânia em
Prosa e Verso, Goiânia, 2011); e Bacondê dê lê lê, crônicas/contos (Ed.
PUC-GO/Kelps – Coleção Goiânia em Prosa e Verso, 2012).
Ganhou vários concursos regionais e nacionais de
poesia e prosa e tem participação em dezenas de antologias – uma delas em
Portugal. Aguarda a publicação de dois livros vencedores da Bolsa de
Publicações Hugo de Carvalho Ramos (União Brasileira de Escritores-UBE-GO/Prefeitura
de Goiânia), de 2013 (prosa, com Bramuras), e de 2015 (poesia, com Encanto
Perverso). É também letrista e parceiro de vários compositores de música
regional goiana. Adelto
Gonçalves - Brasil
____________________________
Expedição Abissal, de Hélverton Baiano. São Paulo/Lisboa: Astrolábio Edições, 252 páginas, R$ 45,90, 2022. E-mails: geral@astrolabioedicoes.com comercial@astrolabioedicoes.com
_____________________________________
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem,
2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São
Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário