Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Moçambique - Quando é que Zeus é cão?

«(…) muito se tem estado a falar de ilegalidade de toda a espécie, sobretudo as praticadas por pessoas que deviam ter como principal obrigação precisamente manter a legalidade e por aqueles, que, valendo-se do peso do dinheiro que têm e das suas ‘costas quentes’, obtêm um estatuto especial, incluindo imunidade. Sempre em prejuízo do cidadão mais honesto e menos protegido» (Muianga, 2022: 47).

Quando me chegou às mãos o livro Zeus, quando é cão, de Francisco Muianga, que, hoje, vem a lume pela Editora Fundza, a primeira interrogação que me veio à mente foi a seguinte: quando é que Zeus é cão? É nesta perspectiva que, para tentar dizer algo conciso, mas hermenêuticamente significativo, resolvi fazer esta breve nota de apresentação, a partir dessa inquietação de fundo pragmático e ontológico.

Em princípio, parece-me que a construção do título da obra estabelece uma delicada cartografia do imaginário mitológico, arvorado na remota antiguidade grega, cujo interesse ultrapassa as preocupações de índole histórica e estético-discursiva do autor, ao mobilizar elementos simbólicos sempre incontornavelmente actuais onde emergem os próprios itinerários do homem na busca de sentido que constitui o suporte da sua existência.

É nesta medida que a convocação titular de Zeus, «a mais importante figura mitológica grega, enquanto «Deus dos Deuses» (Muianga, 2022: 16), sugere uma imagem arquetípica da divinização da natureza humana vinculando-se à natureza canina por causa da incapacidade de exercer o seu poder supremo para estabelecer a ordem e a justiça, enquanto condição da dignidade do homem, num mundo cada vez mais desencantado. Por outros termos, a minha leitura conduziu-me ao entendimento de que Zeus é cão, quando a justiça fracassa na punição dos ofensores, deixando, sistematicamente, as vítimas no estado de abandono.

Sob este ponto de vista, o livro Zeus, quando é cão recupera uma imagem-comum no conjunto da literatura e artes moçambicanas, dotando-a de renovados matizes no afunilamento diacrónico e sincrónico da significação do empobrecimento da percepção das carências do ser humano que busca a sua humanidade. Luís Bernardo Honwana, com o seu Nós matámos o cão tinhoso, deu o mote a essa metaforização do cão no discurso narrativo, cuja declinação no discurso poético permitiu outras incursões dos artistas noutros territórios do fazer artístico: na poesia – Sinopse de cães à estrada e poetas à morte, de Deusa d’África –, na música – Cães de raça, de Azagaia –, e, até mesmo, na escrita ensaística – Cinzas de Cão, de Martins Mapera.

Mas, penso que Zeus, quando é cão estabelece uma perfeita harmonia temática com Cães de raça, do rapper Azagaia, uma composição musical que se presta como interlúdio para o tratamento das relações de poder, produzidas no tecido social moçambicano, com base na raça, resultando daí uma bifurcação cultural e identitária em que a maioria é subalternizada, espoliada e desumanizada e, por isso, privada de autodeterminação por uma minoria que se pensa a si mesma como superior.

Esta análise intermediática pode ser atestada, sobretudo, no texto de abertura do livro intitulado julgamento de cães de raça, em que o narrador revela, através do diálogo entre Moisés Nyika, irmão mais novo do «sexagenário Pedro Nyika», morto pelos cães, e o escriba Jonas, que os donos dos cães de raça são «pessoas endinheiradas», como é o caso da personagem-tipo Alvim de Matos, patrão do finado, que exploram os trabalhadores e manipulam as instituições de justiça.

De modo geral, pode-se dizer que Zeus, quando é cão é uma crónica do nosso tempo que se fecha à banalização do mal numa «sociedade hipócrita». Servindo-se de uma linguagem carregada de humor, o escritor transforma a escrita num libelo de denúncia das patologias quotidianas que aniquilam a sociedade moçambicana.

De facto, nos catorze (14) textos, que concorrem para a coesão estrutural e temática da obra, Francisco Muianga retrata situações dramáticas enformadoras da vivência individual e colectiva das personagens que se movimentam nas diferentes coordenadas espaciais e temporais da(s) narrativa(s), como sejam a migração, a impunidade, a corrupção, «o nepotismo e amiguismo»,  a criminalidade, a violência armada, resultante da guerra civil e da actuação da polícia, a decadência dos valores de cuidado e solidariedade, a superstição, a prostituição, a delinquência juvenil, a pobreza.

Neste aspecto, parece-me que, ao eleger o escriba Jonas como uma das personagens protagonistas do enredo, o autor de Zeus, quando é cão desemboca na problematização da função da literatura/imprensa e do escritor/jornalista no contexto contemporâneo. Fazendo jus á sua profissão de jornalista, fica claro que o escriba Jonas é o alter-ego da voz autoral que busca, no exercício da escrita, a verdade dos oprimidos, silenciada pelas narrativas dominantes. Sobressai, daqui, uma positivação da imagem do cão por intermédio da personificação do papel dos jornalistas na sociedade: «[…] Os bons jornalistas farejam» (Muianga, 2022: 30).

Isto é, o jornalista é como um cão e esse instinto canino é um mecanismo que deve estimular a sua curiosidade, por forma a «descobrir o que poderia não estar desvendado», na medida em que «As caixas jornalísticas saem do obscuro, do limpo, do sujo, e do inimaginável ou do inesperado. De ambientes existentes, mas sem valor enquanto encobertos […]» (Muianga, 2022: 30).

Sob este ponto de vista, o livro Zeus, quando é cão entronca, igualmente, num imperativo categórico que, por via de um realismo militante, se é que se pode usar tal expressão, chama a atenção aos novos profissionais do jornalismo imprenso para a importância do trabalho investigativo, tal como o fizera Carlos Cardoso. Porque É proibido algemar as palavras, a investigação jornalística pode permitir relatar a história das vítimas num contexto em que se fala «de uma justiça corrupta», mas também de uma comunicação social camuflada nas linhas editoriais para perpetuar o cinismo dos poderes instalados.

Portanto, e como dizia Tzvetan Todorov, só desta maneira é que o escritor-jornalista pode realizar um exame crítico da nossa identidade colectiva, colocar a felicidade de outrem e a sua própria perfeição acima dos interesses individuais, e envolver-se, por isso mesmo, numa acção moral.

Dito isto, fica o convite para uma leitura mais aprofundada de Zeus, quando é cão, de Francisco Muianga, uma narrativa profundamente leve no manuseio da linguagem longe de uma estética de imitação do mundo, mas igualmente perturbador na observação atenta das vicissitudes que habitam o nosso imaginário social. Cristóvão Seneta – Moçambique in “O País”


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