«(…) muito se tem estado a falar de ilegalidade de toda a espécie, sobretudo as praticadas por pessoas que deviam ter como principal obrigação precisamente manter a legalidade e por aqueles, que, valendo-se do peso do dinheiro que têm e das suas ‘costas quentes’, obtêm um estatuto especial, incluindo imunidade. Sempre em prejuízo do cidadão mais honesto e menos protegido» (Muianga, 2022: 47).
Quando
me chegou às mãos o livro Zeus, quando é cão, de Francisco Muianga, que,
hoje, vem a lume pela Editora Fundza, a primeira interrogação que me veio à
mente foi a seguinte: quando é que Zeus é cão? É nesta perspectiva que, para
tentar dizer algo conciso, mas hermenêuticamente significativo, resolvi fazer
esta breve nota de apresentação, a partir dessa inquietação de fundo pragmático
e ontológico.
Em
princípio, parece-me que a construção do título da obra estabelece uma delicada
cartografia do imaginário mitológico, arvorado na remota antiguidade grega,
cujo interesse ultrapassa as preocupações de índole histórica e estético-discursiva
do autor, ao mobilizar elementos simbólicos sempre incontornavelmente actuais
onde emergem os próprios itinerários do homem na busca de sentido que constitui
o suporte da sua existência.
É
nesta medida que a convocação titular de Zeus, «a mais importante figura
mitológica grega, enquanto «Deus dos Deuses» (Muianga, 2022: 16), sugere uma
imagem arquetípica da divinização da natureza humana vinculando-se à natureza
canina por causa da incapacidade de exercer o seu poder supremo para estabelecer
a ordem e a justiça, enquanto condição da dignidade do homem, num mundo cada
vez mais desencantado. Por outros termos, a minha leitura conduziu-me ao
entendimento de que Zeus é cão, quando a justiça fracassa na punição dos
ofensores, deixando, sistematicamente, as vítimas no estado de abandono.
Sob
este ponto de vista, o livro Zeus, quando é cão recupera uma
imagem-comum no conjunto da literatura e artes moçambicanas, dotando-a de
renovados matizes no afunilamento diacrónico e sincrónico da significação do
empobrecimento da percepção das carências do ser humano que busca a sua
humanidade. Luís Bernardo Honwana, com o seu Nós matámos o cão tinhoso,
deu o mote a essa metaforização do cão no discurso narrativo, cuja declinação
no discurso poético permitiu outras incursões dos artistas noutros territórios
do fazer artístico: na poesia – Sinopse de cães à estrada e poetas à morte,
de Deusa d’África –, na música – Cães de raça, de Azagaia –, e, até
mesmo, na escrita ensaística – Cinzas de Cão, de Martins Mapera.
Mas,
penso que Zeus, quando é cão estabelece uma perfeita harmonia temática
com Cães de raça, do rapper Azagaia, uma composição musical que se
presta como interlúdio para o tratamento das relações de poder, produzidas no
tecido social moçambicano, com base na raça, resultando daí uma bifurcação
cultural e identitária em que a maioria é subalternizada, espoliada e
desumanizada e, por isso, privada de autodeterminação por uma minoria que se
pensa a si mesma como superior.
Esta
análise intermediática pode ser atestada, sobretudo, no texto de abertura do
livro intitulado julgamento de cães de raça, em que o narrador revela,
através do diálogo entre Moisés Nyika, irmão mais novo do «sexagenário Pedro
Nyika», morto pelos cães, e o escriba Jonas, que os donos dos cães de raça
são «pessoas endinheiradas», como é o caso da personagem-tipo Alvim de Matos,
patrão do finado, que exploram os trabalhadores e manipulam as instituições de
justiça.
De
modo geral, pode-se dizer que Zeus, quando é cão é uma crónica do nosso
tempo que se fecha à banalização do mal numa «sociedade hipócrita». Servindo-se
de uma linguagem carregada de humor, o escritor transforma a escrita num libelo
de denúncia das patologias quotidianas que aniquilam a sociedade
moçambicana.
De
facto, nos catorze (14) textos, que concorrem para a coesão estrutural e
temática da obra, Francisco Muianga retrata situações dramáticas enformadoras
da vivência individual e colectiva das personagens que se movimentam nas
diferentes coordenadas espaciais e temporais da(s) narrativa(s), como sejam a
migração, a impunidade, a corrupção, «o nepotismo e amiguismo», a criminalidade, a violência armada,
resultante da guerra civil e da actuação da polícia, a decadência dos valores
de cuidado e solidariedade, a superstição, a prostituição, a delinquência
juvenil, a pobreza.
Neste
aspecto, parece-me que, ao eleger o escriba Jonas como uma das personagens
protagonistas do enredo, o autor de Zeus, quando é cão desemboca na
problematização da função da literatura/imprensa e do escritor/jornalista no
contexto contemporâneo. Fazendo jus á sua profissão de jornalista, fica claro
que o escriba Jonas é o alter-ego da voz autoral que busca, no exercício
da escrita, a verdade dos oprimidos, silenciada pelas narrativas dominantes.
Sobressai, daqui, uma positivação da imagem do cão por intermédio da
personificação do papel dos jornalistas na sociedade: «[…] Os bons jornalistas
farejam» (Muianga, 2022: 30).
Isto
é, o jornalista é como um cão e esse instinto canino é um mecanismo que deve
estimular a sua curiosidade, por forma a «descobrir o que poderia não estar
desvendado», na medida em que «As caixas jornalísticas saem do obscuro, do
limpo, do sujo, e do inimaginável ou do inesperado. De ambientes existentes,
mas sem valor enquanto encobertos […]» (Muianga, 2022: 30).
Sob
este ponto de vista, o livro Zeus, quando é cão entronca, igualmente,
num imperativo categórico que, por via de um realismo militante, se é
que se pode usar tal expressão, chama a atenção aos novos profissionais do
jornalismo imprenso para a importância do trabalho investigativo, tal como o
fizera Carlos Cardoso. Porque É proibido algemar as palavras, a
investigação jornalística pode permitir relatar a história das vítimas num
contexto em que se fala «de uma justiça corrupta», mas também de uma
comunicação social camuflada nas linhas editoriais para perpetuar o cinismo dos
poderes instalados.
Portanto,
e como dizia Tzvetan Todorov, só desta maneira é que o escritor-jornalista pode
realizar um exame crítico da nossa identidade colectiva, colocar a felicidade
de outrem e a sua própria perfeição acima dos interesses individuais, e
envolver-se, por isso mesmo, numa acção moral.
Dito
isto, fica o convite para uma leitura mais aprofundada de Zeus, quando é cão,
de Francisco Muianga, uma narrativa profundamente leve no manuseio da linguagem
longe de uma estética de imitação do mundo, mas igualmente perturbador na
observação atenta das vicissitudes que habitam o nosso imaginário social. Cristóvão
Seneta – Moçambique in “O País”
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