Celebra-se hoje o Dia Mundial da Língua Portuguesa e, para Carlos Ascenso André, tradutor, académico e linguista, é fundamental chamar a atenção para a grandeza de um dos idiomas mais falados do mundo. O especialista em literatura clássica defende que a língua portuguesa é apenas uma e que o papel de Macau é agora outro na difusão e ensino do idioma, bem como na formação de professores
Este dia significa o quê, na prática?
Não
sou dado a dias internacionais. Acho estas efemérides importantes enquanto se
justificar chamar a atenção para o que deu origem a esses dias internacionais.
O Dia Internacional da Mulher, por exemplo, é importante enquanto houver
desigualdade de género. No caso da língua portuguesa, este dia justifica-se
para chamar a atenção, a vários níveis, para a sua importância. Deve-se chamar
a atenção de fora do universo da língua portuguesa, pois nem todas as pessoas
desse universo têm a consciência da grandeza e importância do idioma. Falo dos
países que não são falantes da língua. Mas deve-se também chamar a atenção
dentro do universo do português, porque uma grande parte dos seus falantes não
se dá conta dessa importância. Não me importa falar do lugar que ocupamos em
termos do número de falantes, mas sim chamar a atenção para uma língua que
nasceu num território minúsculo e ganhou as fronteiras do mundo. Isto é uma
coisa que merece dois sentimentos, admiração e respeito. Não tem a ver com o
passado colonial e não devemos confundir essas realidades. Ganhámos esta
grandeza e é uma língua que vai crescer muito mais do que as outras. Segundo as
últimas projecções estatísticas, se não houver nenhum cataclismo em África,
chegaremos a 2100 com mais de 500 milhões de falantes de português. Vamos
duplicar o número actual. O resto decorre tudo daqui: podemos falar das
escolas, das universidades, do crescimento da língua nos vários territórios.
Portugal é um país de escritores, mas não tanto de
leitores. Actualmente, no sistema educativo, os nossos autores são bem
ensinados e divulgados?
Não
tenho uma visão tão pessimista em relação ao número de leitores que existem
hoje. Tenho uma visão pessimista em relação à apetência por bens culturais que
se verifica na sociedade moderna, há explicações para isso. O número de
atracções é muito grande e as pessoas gastam menos tempo na leitura. Comparo os
meus netos comigo. Eu cresci numa aldeia e visitava sempre a biblioteca itinerante
da Gulbenkian, e pouco mais tinha para fazer a não ser ler. Hoje os meus netos
têm iPads, computadores, e, apesar de tudo, gostam de ler, e eu sinto-me feliz
com isso. Acho, com realismo, que é preciso fazer alguma coisa pelos nossos
leitores. Os nossos responsáveis devem preocupar-se na presença dos nossos
autores clássicos no panorama cultural e nos programas educativos. Escritores
como Eça ou Camões mereciam outro lugar nos programas educativos. Mas é preciso
que os nossos professores saibam ensinar esses escritores, para que não sejam
odiados. Camões, se não for bem ensinado, pode ser odiado. Mas não podemos
falar só de clássicos, pois a língua portuguesa tem a dimensão do mundo. Temos
o Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade. Tem o
Craveirinha e Mia Couto, em Moçambique. Estes autores precisam de ser trazidos
para a mesa do nosso convívio. Isto faz falta para termos a dimensão da língua
portuguesa e acho que esse passo não foi ainda totalmente dado.
Se olharmos para o nosso passado colonial, não há ainda a
união certa entre esses vários autores de língua portuguesa?
Há, mas uma coisa são as instituições, outra são as pessoas. Refiro-me à língua portuguesa e às culturas de língua portuguesa. Tenho essa preocupação, sobretudo agora que presido à Associação Internacional de Lusitanistas. Algumas pessoas cultas, falantes de português, não têm a noção de que a língua portuguesa é só uma. No Brasil há muita gente que não pensa assim, e é um erro. Mas as culturas de língua portuguesa são muitas. Esta é uma realidade que contribui para a nossa riqueza e é um enorme património sobre o qual é preciso alertar as pessoas desde os bancos da escola. E penso que não se faz isso.
A chegada da língua portuguesa à China foi o grande
desafio para Portugal em matéria de política externa de língua?
Está
a ser, mas não foi. Quem apostou mais forte no
crescimento da língua portuguesa no Oriente foram os chineses e não os
portugueses. Nós fomos atrás deste impulso mas não fomos os primeiros. A
China fez isso por motivos de natureza política, e na sua expansão, sobretudo
comercial, ocupou um lugar de enorme relevo nos países de língua portuguesa. O
país também quer estar na Europa e usou Portugal como porta de entrada para
isso. Precisou, assim, da língua como instrumento, exactamente como os jesuítas
precisaram do chinês para fazer a sua penetração na China. E foi graças a esse
lado comercial que o português cresceu muito no interior da China. Em 2013,
quando cheguei a Macau, havia 12 ou 14 universidades chinesas que leccionavam
português. Em 2018 havia 43, e agora são 55. Este é um crescimento fantástico.
As instituições portuguesas aperceberam-se desse crescimento e hoje há uma
aposta política e um forte investimento no desenvolvimento da língua a Oriente.
O Brasil fez esse trabalho do ensino da língua e edição
de livros mais cedo?
O
Brasil tem mais vantagens do que Portugal, nomeadamente graças aos autores, que
têm um maior potencial de leitores do que os autores portugueses. Uma das
minhas traduções do latim foi sendo publicada em Portugal com edições de mil a
dois mil exemplares, enquanto que no Brasil teve uma edição de 20 mil
exemplares. Mas gostava que houvesse um envolvimento dos países de língua
portuguesa, sem Portugal, nesta política de internacionalização da língua. Não
vejo nem o Brasil, Angola ou Moçambique a fazerem investimento semelhante como
aquele que é feito por Portugal através do Instituto Camões. Portugal é o país
mãe da língua, mas justificava-se, sobretudo do Brasil, um maior investimento.
Se o investimento do Brasil no ensino da língua e das culturas portuguesas
fosse proporcional ao número de agentes de ensino que trabalham em instituições
de todo o mundo, seguramente que estaríamos bem melhor.
No caso de Macau, considera que as sucessivas
administrações portuguesas fizeram pouco pela língua portuguesa no território,
e menos do que o que está a ser feito pela RAEM?
Não
tenho essa impressão. Portugal tem dois fortíssimos agentes em Macau que
dependem de financiamento português, que é a Escola Portuguesa de Macau (EPM) e
o Instituto Português do Oriente. O resto é feito por instituições locais. Os
outros fazem o que podem tendo em conta as necessidades do mercado, e há que
distinguir as realidades. Da parte do Governo de Macau todo o investimento
resulta de opções políticas e não de necessidades do sistema. É o honrar do
compromisso que está na Lei Básica, não precisa de ir além disso e penso que às
vezes vai bem além disso. Portugal não tem a obrigatoriedade de fornecer os
elementos que o sistema precisa, tem é de fazer uma aposta política no
crescimento da língua. Através da EPM e do IPOR, que fazem um trabalho
excelente, Portugal está a cumprir o que deve. As instituições políticas em Portugal
têm demonstrado sempre muito respeito por aquilo que é feito em Macau.
Macau vai perder relevância como plataforma no ensino da
língua?
Macau
desempenhou um papel fulcral num determinado momento, que foi o período de 2013
a 2019, que foi assumir a liderança do processo no interior da China, e peço
desculpa por falar em causa própria. Fizemos isso com o Centro Pedagógico e
Científico da Língua Portuguesa, fazendo formação de professores e reunindo com
universidades, mas estas desenvolveram-se. Mas em breve haverá um professor
doutorado em várias universidades chinesas. Chegamos a este ponto e o papel de
Macau já não é o mesmo, pois essas instituições ganharam o estatuto de razoável
autonomia e dispensam um pouco o paternalismo das instituições de Macau. O
território deve ter um papel de acompanhamento.
O que tem a língua portuguesa de mais apaixonante junto
do estudante chinês?
O
que mais atrai os estudantes é o mercado. Os chineses aprendem português porque
é um bom instrumento para ter um emprego. Sobre a cultura de língua portuguesa
há sobretudo curiosidade. Mas há duas ou três coisas que os atraem, que é o
facto de esta ser uma língua de Portugal e aberta a outras latitudes.
Fascina-os o facto de ser uma língua de outros países maiores. Fascina-os a
relação que a língua mantém com a Europa, e desde 1974 somos um país aberto à
Europa, depois do 25 de Abril. Os alunos chineses fascinam-se sobre essa
abertura. Não somos uma ilha isolada e fazemos parte da cultura mediterrânica. Andreia
Silva – Macau in “Hoje Macau”
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