Se dominasse a língua chinesa, Maria Helena do Carmo escreveria sobre Deng Xiaoping, que segundo a sua óptica mudou a China para sempre. Por enquanto, é sobre a história de Macau que se debruça. O seu mais recente livro, “Macau no tempo áureo do comércio”, conta a história de Pedro Gastão Mesnier, secretário do Governador Correia de Almeida, Visconde de São Januário, e do fim do comércio de cules
Como chegou a Pedro Gastão Mesnier, uma figura histórica
ligada a Macau e que é quase desconhecida?
Eu
também a desconhecia, até que António Aresta escreveu sobre o Pedro Gastão
Mesnier e finaliza com a frase “quem sabe se um dia Maria Helena do Carmo não
faz daqui um romance”. Fiquei intrigada. Foi um desafio, um estímulo ele
escrever isso. Fui verificar quem era o sujeito e vi que tinha morrido muito
novo, com 37 anos. Questionei-me como alguém que morreu tão novo se tornou numa
figura tão importante. Investiguei em Macau e na Biblioteca Nacional em
Portugal coisas que escreveu. Durante a pandemia tive a sorte de encontrar
online os boletins da província de Macau e Timor nos anos em que Pedro Gastão Mesnier
lá esteve. Ele era um dos escritores dos boletins. Consegui saber o que ele fez
na Índia. Soube da história anterior, da ida para Londres aos 17 anos, e que já
estudava línguas orientais ainda em miúdo. Tive acesso a extractos da sua vida,
porque ele escreveu nesses boletins sobre a viagem que fez com o então vice-rei
da Índia, que depois foi Governador de Macau, Januário Correia de Almeida,
Visconde de São Januário. Deram uma volta pela Índia e depois encontrei
testemunhos sobre tudo o que se passou em Macau. Achei extraordinário, um homem
que conviveu com o príncipe da Rússia, futuro Czar, com o rei do Sião. Mas
houve outro aspecto que me intrigou bastante.
Qual foi?
Estudei
a história de Macau desde os seus primórdios e sempre achei que Macau era uma
cidade muito pobre, mesmo já tendo entrado no negócio do ópio.
Falamos de que data?
Até
ao século XVII Macau não estava muito mal porque havia negócios de Goa para o
Japão. A partir de 1640 tudo se transformou, deixámos de ter Malaca e em Macau
começa a sentir-se um certo empobrecimento. A minha tese foi sobre a primeira
metade do século XVIII, sobre a pobreza que se prolongou até à segunda metade
do mesmo século. E estranhei que no século XIX tenha surgido imensa riqueza.
Deu-se então o “tempo áureo do comércio”, que dá nome ao
livro.
Exacto.
Os chineses que levavam uma vida muito humilde, mas alguns construíram
palacetes, e isso intrigou-me. Dei então com o comércio dos cules, que já tinha
começado em Amoy, com uma firma francesa, que, entretanto, foi seguido por
outros portos, inclusivamente por Hong Kong. Mas foi sendo proibido o comércio
por outros portos, devido aos tratados de comércio assinados com a China. Só
Macau não concluiu o tratado.
Não foi ratificado.
Sim.
E assim aproveitaram Macau para ter uma porta de escoamento dos cules. Eram
feitos contratos por oito anos, e claro que os chineses estavam interessados em
sair [do país], porque no tempo dos imperadores pagavam muitos impostos e eram
extremamente pobres. Como acabou a escravatura, a necessidade de mão-de-obra
levou os franceses a buscarem trabalhadores [chineses] com contrato de
trabalho. No início não havia problemas, mas depois quando virou negócio
encontrámos uma série de chineses a aliciarem outros, porque ganhavam com isso.
Gerou-se um caso diplomático e de violação de direitos
humanos.
Macau
era o único porto onde continuava esse comércio e aquilo começou a ser abusivo.
Havia macaenses e chineses envolvidos no negócio, donos de embarcações e com
armazéns. Nessa altura, os pobres lavradores [chineses] já iam para as
Américas, Cuba, África, sobretudo América Central, para os caminhos-de-ferro na
Califórnia. Era mão-de-obra barata. E depois começa um comércio de quase
escravatura, porque quem os recebia ficava com as suas cédulas e não os
deixavam ir embora.
Qual o papel do Visconde de São Januário para travar este
comércio, já na qualidade de Governador?
Teve
de facto atitudes muito correctas, mas não foi o primeiro a tentar formas
disciplinadas de negócio. O Visconde da Praia Grande foi talvez o primeiro. Mas
o Visconde de São Januário conseguiu terminar com o negócio dos cules.
Mas quem teve a mão mais forte para a proibição deste
comércio? Foi o Governador de Macau ou o ministro da metrópole, à época,
Andrade Corvo?
Tenho
a impressão de que os ministros aqui em Portugal não tinham muito a ideia do
que se passava noutros locais. Não estavam presentes e sabiam apenas o que lhes
era contado. É natural que tenha sido o Visconde de São Januário, através do
correio diplomático, que tenha levado à decisão de Andrade Corvo.
O comércio dos cules era uma pedra no sapato nas relações
entre Portugal e a China?
Era,
apesar de o Visconde de São Januário já acordado verbalmente em 1872… e penso
que o Pedro Gastão Mesnier também teve um papel importantíssimo porque
investigou muita coisa e foi emissário do Visconde de São Januário a Cantão, com
outros sinólogos. Fez um trabalho de investigação muito importante sobre o que
se estava a passar. E era ele que informava o Governador.
O que mais a surpreendeu na figura de Pedro Gastão
Mesnier?
O
facto de ser um aventureiro, de ser extremamente inteligente. Nunca concluiu um
curso, mas esteve cinco anos em Coimbra. Devia ser uma daquelas pessoas que
queria saber tudo. Ele retornou a Coimbra [depois de sair do Oriente] para ir
novamente com o Visconde de São Januário para as Américas, largou de novo a sua
licenciatura. Mas era um escritor admirável. Os extractos que encontrei sobre o
tufão [um dos maiores que assolou Macau] mostra como era admirável na sua
escrita. Admiro as pessoas cultas e ele era muito culto. Algumas coisas
inventei, como o amor que teve [no Japão]. Mas há um enredo amoroso verdadeiro.
O romance macaense?
Sim,
o do barão que se apaixonou pela cunhada e teve uma filha com ela. O nome dela
está registado nas Famílias Macaenses. A filha ficaria em Hong Kong órfã,
porque os pais morreram cedo, quando tinha 13 anos. E era ilegítima, o que
naquela época era igual a ser renegada. Falo da Madre Teresina, que no livro é
Teresa de Trento, e coloco-a a falar com a amante do barão. Há uma rua em Macau
com o nome Madre Teresina.
O livro acaba por abordar também como era a comunidade
macaense na época, mais conservadora.
Exacto,
e logo pelo facto de serem cristãos. Tinham posições elevadas, porque os
macaenses eram os únicos intérpretes dos europeus e nasceram na terra,
dominavam o terreno. E a maioria dos macaenses eram ricos. Na altura, muitos
chineses preferiam pertencer a Macau e serem considerados macaenses, dava um
certo estatuto. Mas claro que a China mudou imenso desde então. Admiro imenso
Deng Xiaoping. Se tivesse capacidade para ter acesso a fontes chinesas, se
soubesse traduzir, era para mim um homem excepcional [para escrever sobre].
Fala de um romance?
Não,
uma biografia. Eu vou muito para o real.
Escrever sobre Macau e a sua história continua a ser um
desafio? Ainda existem muitos temas por explorar?
De
facto, existem. Não sei se vou continuar devido a vários factores. O primeiro
tem a ver com a minha idade, a visão, a saúde. Tenho também de encontrar um
tema muito apaixonante que consiga investigar. Andreia Silva – Macau in “Hoje
Macau”
Nota: Comércio dos cules teve início em Macau nos finais da década de 40 do século XIX, consistia no fornecimento de trabalhadores chineses contratados para países que naquela altura necessitavam de mão-de-obra barata. Pedro Gastão Mesnier (de Ponsard) era filho de Raúl Mesnier de Ponsard, distinto engenheiro português, natural da cidade do Porto, São Nicolau, onde nasceu a 02 de Abril de 1849 e de Sofia Adelaide Ferreira Pinto Basto. A fama de Raúl Mesnier chegou aos nossos dias, pela responsabilidade da construção de elevadores e funiculares, estando alguns ainda hoje ao serviço, principalmente na cidade de Lisboa. Pedro Gastão Mesnier de Ponsard era irmão de Raúl Mesnier de Ponsard Júnior, D. Branca Mesnier de Ponsard Pinto e D. Alice Mesnier Ponsard Machado.
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