I
Poucos
poetas brasileiros talvez tenham sido tão incensados já na segunda idade quanto
o gaúcho Rique Ferrári (1985), elogiado que foi por nomes representativos da
literatura contemporânea, como Fabrício Carpinejar, Ronaldo Cagiano, Waldemar
José Solha, Martha Medeiros e Alexandra Vieira de Almeida, que o apontam como
um novo ícone da poesia brasileira. Isso tudo é confirmado pelos versos que
constam de Roda-gigante (Guaratinguetá-SP; Editora Penalux, 2020), seu
quinto livro, obra que se mostra renovadora na linguagem.
Para
o autor, seus poemas procuram apresentar “uma normalização das pequenas mortes
de nossas vidas”, desmistificando a ideia de que há apenas um ciclo: “em que se
nasce, cresce, reproduz e morre; como nos ensinaram quando crianças”. É um tipo
de frases filosóficas que lembra a literatura de Clarice Lispector (1920-1977)
ou mesmo a de José Saramago (1922-2010). Segundo Ferrári, seu livro “não tenta
nem quer impressionar. Quer apenas ser o que é, trazendo seu próprio leque de
percepções, despreocupado de que seja bom ou ruim”.
Para
Ronaldo Cagiano, autor do posfácio, o autor “utiliza seus artefatos para alcançar
aquilo que de mais dinâmico e comunicador pode e deve deflagar numa obra
literária, imbuída em seu compromisso estético e em sua dimensão ética”. Segundo
o romancista e crítico literário, Roda-gigante mostra o poeta “em pleno
domínio de sua arte”.
O
livro está dividido em três partes: “Linha de partida”, “Linha de chegada” e “Oroboros”.
A respeito da última parte, Waldemar José Solha, autor do prefácio, recorre à
simbologia do oroboro ou ouroboros, uma criatura mitológica, uma serpente que
engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o
infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte,
a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Dessa forma, ajuda o
leitor a melhor compreender a intenção do poeta. “Evolução voltada para si
mesma”, diz Solha. “Tendo isso em mente, criar fica muito mais difícil. Mas
Rique Ferrári cria”, acrescenta. Veja-se aqui um exemplo da forma criadora de
Ferrári neste excerto de um poema que leva o título “A hierarquia angelical”:
ver fantasmas tem sido muito comum aos
adultos / pois anjos / somente quando há falhas no sistema binário celestial: /
numa destas noites quentes de setembro / os dentes dos prédios estavam secos de
luz / e o quarto acalentou-me num son(h)o / (desses a remeter a um útero) /
assim, quando apaguei / naquele felpudo arquejar entre pós-noite e antemanhã /
creio / renasci num dos outros lados / – e na brevidade do instante – / percebi
a mais bela imagem da hierarquia de anjos / tal um picograma / gramofones
espalhados pela cena, um bando de asas / serafins, potestades, arcanjos / como
se ali reunidos, numa espécie de gaza divina-humana, forjassem o plano (...)
II
Na
contramão da poesia feita por vãs repetições que tem marcado a produção
contemporânea brasileira, a obra de Ferrári se destaca não só pela riqueza
plástica de sua palavra como também pela capacidade desta em se metamorfosear
em tempo, como dizia o poeta sevilhano Antonio Machado (1875-1939), ou seja, numa
quarta dimensão, longe do plano em que vivemos. Em outras palavras: como diria
o professor Massaud Moisés (1928-2018), durante a leitura de poemas como esses
que saem da forja de Ferrári, “ingressamos na correnteza de um tempo que
escorre aos nossos olhos, não um tempo referido mas dinâmico, “real”, uma
espécie de presente-eterno exposto à nossa efemeridade”.
Afinal,
já o título do livro, Roda-gigante, lembra ao leitor, antes mesmo de se
iniciar a leitura, essa dicotomia entre o tempo “real” e o imaginado, pois
sugere que as visões tanto podem partir de baixo como de cima, o que permite
diferentes formas de contemplação de um objeto, de uma situação ou de uma
vida.
É
de se lembrar ainda que, em 2017, Ferrári lançou Rocketman (Editora
Patuá), que reúne 39 poemas e 22 ilustrações que procuram associar os desenhos
às imagens idealizadas pelo poeta. São desenhos produzidos por tatuadores
conhecidos entre a juventude que cultua essa arte que foi trazida para o Brasil,
ao final dos anos 1950, pelo dinamarquês Knud Gregersen (1928-1983), o Tatoo
Lucky, que, durante muitos anos, teve loja instalada no coração da zona
boêmia do Paquetá, à beira do cais de Santos, a uma época em que apenas os
homens do mar se tatuavam.
Naquele
livro, Ferrári já prenunciava o estilo que amadureceui em Roda-gigante,
mostrando uma carga semântica e uma sutileza de estilo que agora se reafirmam.
Como bem sabem os amantes da boa música, o título daquele livro constitui uma
homenagem a uma obra do pianista e compositor britânico Elton John, Rocketman,
que fala de alguém que foi para o espaço e se sente muito só, com saudade da
Terra. Nos poemas de Ferrári, no
entanto, essa viagem para o espaço, sem retorno, é metafórica e assim deve ser
lida.
Já a crítica Alexandra Vieira de Almeida havia percebido isso em percuciente leitura que fez deste livro, observando que o tempo da poesia de Ferrári é dual, revelando a ambiguidade da forma. “Ele faz versos longos que ao mesmo tempo explana de forma ágil e não mecânica”, observou a doutora em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Com tamanhas referências e recomendações em mão, por certo, o leitor não perderá tempo se procurar conhecer a palavra deste jovem representante da nova poesia brasileira.
Rique
Ferrári, pseudônimo literário de Thiago Ferrari, nasceu em Bento Gonçalves-RS, mas
reside em Porto Alegre. É empresário (produtor de vinhos), sommelier (profissional
especializado em bebidas alcoólicas, especialmente vinhos), professor,
especialista em arte pré-colombiana, filósofo, neologista nas línguas
portuguesa e espanhola e dançarino. É também colecionador de antiguidades, que
tem recolhido durante suas andanças pelo mundo. Adelto Gonçalves - Brasil
Roda-gigante, de Rique Ferrari, com apresentação de Ronaldo Cagiano e prefácio de Waldemar José Solha. Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 90 págs., R$ 40,00, 2020. Site: www.editorapenalux.com.br E-mail: penalux@editorapenalux.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio
Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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